Comecei tendo os primeiros sintomas quando era ainda estudante. Vivia longe da família numa cidade distante e demorei a me enturmar com os meus colegas da faculdade: eles zombavam de meu dialeto, me chamavam de caipira e não compreendiam os meus valores. Isto me afastava das festas das repúblicas e progressivamente me empurrou para longe da vida social: aluguei um apartamento no centro da cidade e tinha um emprego de meia jornada. Posteriormente eu me formei e o meu chefe me ofereceu o emprego em […]
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Obras de ficção curta
Fausto de Souza
Estava concluindo o terceiro volume da tetralogia épica sobre uma sociedade secreta maçônico-judaica-ocultista que se refugiara no Brasil durante a colonização portuguesa. Conceber e detalhar os rituais mesclando o Antigo Rito Escocês com outras influências cabalísticas lhe custara meses de pesquisa e o amor de Rafaela, que não suportara mais as longas horas de ausência perambulando por sebos e bibliotecas, não aceitara perder outro dos três quartos do apê para mais prateleiras de livros. Estava ali imerso em seu mundo particular e em contas a […]
Nada Demais, Só a Chuva
Publicado em 1999 na Revista da Associação Nacional de Escritores, é um dos pontos altos de minha primeira fase depressiva e pessimista (1994–1998) e deve ter sido, provavelmente, escrito em começos de 1998. As gotas de chuva eram pouco para vencer o calor que se empoçara na cidade prematuramente em nosso agosto, subia um vapor queixoso e sibilante dos canteiros ainda não inteiramente encharcados e Berenice cruzava a praça sem guarda-chuva. Eu estava em um ponto de ônibus, recém-saído de meu dia de trabalho e […]
Você Pensa Demais?
Tudo começou inocentemente. Comecei a pensar quando frequentava certas festas, de vez em quando, como uma maneira de me enturmar. Inevitavelmente, porém, um pensamento levava a outro e não demorou que eu me tornasse mais do que um pensador social. Comecei a pensar sozinho — “para relaxar”, conforme acreditava, mas eu sabia que isso não era verdade. Pensar se tornava cada vez mais importante para mim, até que eu comecei a pensar o tempo todo. Eu comecei a pensar enquanto trabalhava. Eu sabia que pensar […]
O Tesouro de Sérgio
Eu sou dos que não sentiram nunca pelo Sérgio nenhuma afeição especial. Na verdade eu pouco menos que o desprezava desde que o conheci. Mal lhe dava motivos para chamar-me de amigo. Mas ele me chamava assim, talvez por falta de verdadeiros. Era seu jeito auto-suficiente o que mais me indignava. Não era dado a intimidades, raramente sabia dizer palavras simpáticas e parecia que tinha prazer em desdenhar de tudo. Mas aos poucos foi-se consolidando entre nós um certo tipo de amizade que a convivência […]
A Menina Que Gostava de Ouvir Histórias
Gabriela era uma menina comum, filha de pais bem comuns, que morava numa casa bem comum numa cidade qualquer. Como quase todas as meninas ela gostava muito de histórias e não passava uma noite sem pedir que seu pai ou sua mãe lhe contassem uma antes de dormir. Infelizmente os pais de Gabriela não sabiam muitas histórias. Eles eram pessoas ocupadas e sem paciência, passavam seus dias trabalhando e reclamando da vida — não tinham muito tempo para divertir-se e muito menos para ler livros […]
Chega de Anjos
Teobaldo tentava esquecer. Poderia ser na próxima golada de cachaça, ou na quinquagésima; tinha medo que não fosse nunca. Por via das dúvidas, entornava para dentro da goela a décima oitava enquanto ouvia Sílvio Luiz esculachando algum centro avante que perdia um gol: “Pelo amor dos meus filhinhos, esse até a minha sogra fazia!” As imagens vacilavam com a interferência da geladeira, o som vacilava com a interferência da gritaria, sua mente vacilava com a interferência de uma arma fria que levava no bolso. Ninguém […]
Antinatal
A camponesa apertou os lábios para protegê-los contra o frio, maldizendo-se pela ideia péssima de subir ao alto daquele monte. Puxou para baixo as abas de seu chapéu de pele de lebre e tratou de esconder a cara morena com a da manta de lã. Estava uma noite bem pouco amável nas colinas da Gaulanítide, mas as promessas da bruxa grega a haviam convencido. Sozinha, persistia subindo o monte, apesar da neve que começava a cair a partir daquela altitude. Encontrou então o início de […]
O Sarau do Valdir
>Texto classificado para a fase final do II Festival Cultural Banco do Brasil — Mulher, não é justo. — O que não é justo, Valdir? — Tinha que chover? Justo hoje, agora!? A mulher deu de ombros, conformada: — Paciência. Marque para outro dia. — Como assim? «Marque para outro dia»? Vendi convites, reservei bar. Não dá para desmarcar em cima da hora e «marcar para outro dia». Vai ser um fiasco. — Então enfrente, homem. — É o que vou fazer. Então Valdir deixou a mulher em casa com as crianças […]
[Tradução] Uma Voz na Noite (W. H. Hodgson)
Era uma noite escura e sem estrelas. Estávamos em uma calmaria no Pacífico Norte. Nossa exata posição eu não sei porque o sol estivera oculto, durante toda uma semana cansativa de trabalho, por uma névoa fina que parecia flutuar acima de nós, pouco acima da altura de nossos mastros, às vezes descendo e envolvendo o mar ao redor. Como não havia vento, prendêramos o leme e eu era o único homem no tombadilho. A tripulação, que consistia de dois homens e um garoto, dormia em […]