Deus caminha leve nos jardins de uma estrela escura e fria.[^1] Desconhecendo o pó que se apega às dobras de sua roupa, Deus assinala no barro, marca-o no molde, Andando nos campos noturnos de uma guerra perdida Em uma estrela que há muito esfriou. Deus pisa brilhante onde há ossos de coisas esquecidas, Pálido de esplendor como a geada de uma praia banhada de luar, Deus vê as tumbas à luz de Sua face, Ele treme ao ler as runas lá gravadas, e Sua sombra […]
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Poesias escritas por mim.
Um Hai Kai Gastronômico
Quem come ostra e camarão
come qualquer coisa,
menos escorpião.
O Julgamento
Tradução de um trecho avulso de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll (obra que se acha em domínio público, tradução feita por mim, ao improviso, já aviso). Com um título novidadoso, homenageante aos recentemente condenados. Dedicado aos que foram condenados, independente de serem ou não culpados, não pelo que fizeram, mas pelo que são. Disse-lhe o gato ao rato: “Venha logo seu bobo jogarmos um jogo: Vamos ambos à lei. Eu lhe serei promotor e tu réu. Venha agora o tribunal não demora. […]
Pequenas e Grandes Coisas
Tenho pouca paciência com as coisas grandes. Minha vida é tão pequena, e o mundo também. Tantas coisas grandes só servem para espremer-nos, Obrigar-nos, coagir-nos. Uma das vantagens de se fazer versos É que quando as linhas ficam assim, Umas encima das outras, Você pode dizer pequenos absurdos E as pessoas leem com seriedade. Os grandes absurdos, porém, estes não, Não cabem nas linhas curtas dos poemas. Para estas obscenidades que matam e que ferem São necessários ensaios e romances. Deixem em paz, portanto, os […]
Mudança de Vocabulário
Eu juro Sou de um tempo passado, em que cupcake se chamava bolinho, blush se chamava ruge, van era furgão sale era liquidação. Nunca me ocorreu chamar meu amor de love, nem referência de benchmark, nem interessado em stakeholder, nem artigo de paper e nem discurso de keynote. Hoje vivo perdido comendo cigarrette em vez de enroladinho. Nunca mais vi jogarem bola ao cesto e nem futebol de salão. Acho estranho quando chamam stickers de adesivos e entrega em domicílio de delivery. Especialmente se houver […]
Assombrações
A memória especial de a ter beijado um dia se apagou de mim sem pressa e sem pensar. Rostos pálidos pintados em paredes brancas, fadas esqueléticas que voam nuas pelo ar — o passado é só mais uma entrega que faltou. Eu podia ter perdido toda esta carne um dia, e podia ter vendido até a vida desta casa, mas só deixei levarem os meus sonhos embora em embrulhos secos, cortados em pedaços — se eu esquecesse tudo em que cria então talvez eu poderia […]
Tristeza Nova
A tristeza deste século que chega será de não haver mais horas mortas e nem fantasmas nelas. Um mundo iluminado, limpo e organizado, sem espaço para transgressões. A melancolia será subterrânea e todos acuados, teremos de ter e de ostentar. Os seres tristes sorrirão também e se atracarão às luminárias em busca de pé no remoinho. A agonia que haverá na nova era será o som do mundo ininterrupto acima da perspectiva do infinito, mais forte que o pulsar dos corações. Um mundo preenchido, pleno […]
O Tempo no Caminho
O velho relógio bate nove e quinze no peito sorrindo para um piano que tocou meu lábio como o som áspero da morte que vem perto. Como ando provisoriamente vivo, e vivo reto, procuro um desvio que retarde a sorte certa que aguarda os relógios, lábios e pianos. Quando achar um caminho errado destes, escondo minutos da espera que não quero. Aqui comigo nesta sombra, nesta névoa, a ilusão feliz de que tudo ainda é e nada era.
Saudades
Eu a ouvi ontem à noite e senti aquele punhal de novo em minha carne, tive saudades suas como tenho saudades dos pedaços que fui perdendo.1 Tenho saudades de ter sido sozinho, de ter atravessado sábados sofrendo. Aquele silêncio antigo me faz falta porque há dias em que não quero falar e outros em que precisava de fugir, achar um lugar entre as montanhas para poder me distrair. Tenho saudades de quem me enganou, quanto maior a mentira, maior a dor, maior a falta, poderia […]
Absolutamente
Temo ferir o teu viço
com os espinhos que adquiri.
Porém a dor, talvez a faça
adquirir um pouco cedo
o que tão tarde descobri:
não há salvação sem a verdade,
não há destino sem partilha
e não há felicidade,
absolutamente.