Não Me Acusem

Não me acusem de saber muito, só porque tenho as mãos lisas. Não é que eu estudei a fundo, é que eu tenho tido outra vida. Porém não pensem que ignoro tudo que um homem deve. Minha vida inteira eu estudo, para algo certamente serve. Uns saem de casa, certos do saber e acham modos de moldar o mundo ao que Deus lhes disse antes. Eu saí ignorante e andei entre abismos e vazios. Quando cheguei aqui me estranharam. Não porque ensinasse, mas porque sonhava. […]

Confissões de um Sonhador

Sou um dos sonhadores derradeiros, talvez o último a fazer sentido, embora seja o que menos me interesse e o que tem menos horas ou motivos. Tenho tentado dormir pouco, mas as imagens me alcançam acordado: lembranças de lugares a que não fui, pessoas que nunca conheci. Sou do tipo pior dos sonhadores, os que dedicam seu sonhar unicamente a espécies de sonhos que sempre fenecem diante do dia claro, a espécies que só sobrevivem no silêncio da cama e nem são perfeitamente transpostas ao […]

Ode ao Palhaço

Um homem extremamente infeliz não consegue nunca crer na profundidade do abismo. A infelicidade necessariamente induz ignorância: somente esquecendo um pouco é que se pode tolerar a pressão das lágrimas que a alma exige, mas que os olhos não querem dar. Melancolia é diferente, há uma tristeza pouco aparente entre não ser alegre e não ser feliz. Pouca gente sabe, mas existem infelicidades muito alegres. O homem vivendo no extremo da felicidade aprende a fingir: somente quem finge consegue sobreviver ao espelho quando ele é […]

Um Buraco em Forma de Deus

Vestimos a vida, roupa desconfortável e apavorados vivemos no mundo. Andamos sem rumo querendo salvar-nos de vaidades, perigos e segredos.[^1] Espíritos tensos, buscamos sem onde o fio que nos liga a nós mesmos. Somos palhaços no meio da praça, rindo, felizes, de quem mal nos trata. Espíritos e carnes densamente pensam a essência que justifique tudo isso, aspiramos ao alto mais alto e o vemos cair como uma ameaça sobre nós. Corpos retesos e mãos impotentes, acenamos na noite em busca daquilo, somos virtude e […]

Aos Espíritos

Eu esqueci quem fostes, fantasmas do passado. Esqueci todos os beijos e as tépidas noites de outono. Estou aqui pensando e me tenho perdido como nos maus velhos tempos, com as mesmas palavras gastas repetindo antigos erros. Gastei demais o meu tempo gostando de coisas banais, depois veio a seca da vida e uma espécie de ressaca que teima com gosto amargo e este vento intrépido me faz sentir os pecados e pensar em coisas sem nexo. Tenho sido alguém sem sentido, tenho seguido caminhos […]

Amores Que Perdi

Gosto mais de escrever para amores que perdi do que para amores que ainda ouço em mim. Não é porque o passado seja confortável; mas há mais motivos na saudade que na vida e ser poeta é ser triste, a sensibilidade é frágil e nos quer mergulhando em abismos que outros veem à distância e apenas acham belos. Da próxima vez que for feliz, haverá mais música, mais beijos e mais certezas. Mas também vou esquecer minhas promessas porque o amor é exigente e arisco. […]

S.P.A.M.

Não quero moedas verdes, já sei qual foi o dia de meu casamento. O de minha morte, não sou Idi Amin para querer saber. Não quero convites para o Novo, não preciso de alongar meu pênis, não me interessa comprar pílulas azuis e nem retirar, sem pagar a dívida, o meu nome do SPC. Eu quero é paz de espírito — ah, se vendessem isso a quilo! Eu quero saber apenas o que todo mundo sabe, mas que EU ainda não sei. Gosto de coisas […]

Os Mortos

Se os vivos ferem, não tenhas pranto, não queiras tanto acidentes: por enquanto não resolvem lágrimas. Seque-as em outros portos porque tudo se conserta quando partem: todos são felizes quando sobram e ninguém odeia os mortos.