5
setembro
há 14 anos
Isso não é nem literatura, mas desabafo de amargura de que será capaz todo ser vivo. Falta beleza, falta um motivo que me prenda as linhas, curioso. Não que tenha sido horroroso: apenas ausente de um dedo que é preciso para ser poetisa, não basta ter raiva, falta medo falta alguma coisa imprecisa que se ganha com a dor dos anos e nos faz, no fim, seres humanos. Não se faz poema triste tendo tanta alegria, nem quando você insiste. Se quer tomar poesia tome […]
5
setembro
há 14 anos
Dois escribas, preocupados com o futuro, discutiam à sombra de um juncal, à beira do Rio Nilo: — Imhotep, tu que és tão sábio, diga-me: Crês que um dia a arte dos hieróglifos terá sido abandonada? — Merhemptah, querido, temo que sim. Ela está a se perder: não vês que os sacerdotes de classes inferiores já os abreviam e corrompem, que já não se importam mais como antes com a exatidão da semântica, preferindo recorrer aos símbolos fonêmicos? Oh, temo que um dia a expressividade dos hieróglifos […]
5
setembro
há 14 anos
Já que ontem eu escrevi sobre a mula sem cabeça, resolvi aproveitar o embalo, enquanto os dados ainda estão frescos na memória, e escrever sobre o lobisomem, com que ela possui na tradição luso-brasileira, uma relação muito próxima. O lobisomem luso-brasileiro não é o mesmo lobisomem que é visto nos filmes de terror americanos e que passou a fazer parte da tradição literária europeia. Na cultura pop de hoje a comparação mais próxima que se possa fazer com ele seja a do professor Lupin, da […]
4
setembro
há 14 anos
A mula sem cabeça é um mito de origem ibérica que existe por quase todo o território nacional, e também por toda a América Hispânica (embora com menos intensidade). Um dos mitos mais ricos e complexos de nossa tradição, é também um dos mais internamente coerentes: é possível explicá-lo de forma coesa, do princípio ao fim, sob o prisma da história das ideias: essencialmente falando, a mula sem cabeça é um mito que pretende inculcar na mulher a submissão ao homem através do casamento. A […]
3
setembro
há 14 anos
Escrito originalmente em 1999 ou 2000, um de meus primeiros experimentos em prosa. Em sua calma sensualidade, a mão sobre o peito e a inocência no rosto, ela balbucia uns segredos inconclusos. Bela Adormecida tão recentemente apresentada à ingratidão do mundo, murmura festividades verbais inconsequentes que flutuam sem compor ordem na confusão improvisada de seus pensamentos. Ela não sabe, mas sente, que as palavras são armadilhas em que sempre caímos. Há tão pouco tempo ela atingira a feminilidade que ansiosamente desejava, há tão pouco tempo […]
2
setembro
há 14 anos
O feiticeiro se debruçava sobre os incunábulos, obcecado com os astros, sentindo a passagem dos decanatos enquanto aguardava o momento propício para dar prosseguimento à sua Grande Obra, quando uma batida à porta se fez ouvir, interrompendo a sua concentração. Praguejando contra dezenas de gerações de habitantes daquela miserável cidade, aonde fora esconder o seu focinho da ignorância supersticiosa dos inquisidores, abandonou o contemplar dos planetas na noite límpida de inverno e desceu as escadas penosamente até a porta de madeira firme, cuja aldraba em […]
2
setembro
há 14 anos
Nenhum pretexto tolo justifica não dormir uma boa noite de sono. Não há culpas, não há pendências, nem trabalho por fazer que valha o repouso. Porém dormir não é tão simples quanto parece. Parece haver uma conspiração contra o meu sono. O dia inteiro aguardo a noite, na esperança de poder ouvir algum silêncio depois que meus vizinhos forem dormir, minha mulher enfim virar para o canto e mergulhar nos seus sonhos de classe média, as crianças estiverem brincado com fadinhas e bonecas em seu […]
1
setembro
há 14 anos
Uma lua aveludada acarinha minha solidão e amortece mais o som cavado e longínquo da sinceridade em meu coração e respiramos em silêncio a luz de anêmona, desta luz-feitiço que reveste a noite de um pensamento iníquo.[^1] Você trouxe uma taça de licor quando entrou e dominou-me pensamentos, palavras, atos e omissões. A noite depois se dobrou sobre nós e vento bateu as janelas e derrubou o livro pelo chão. Corujas piaram na escuridão, o vago e incriado exterior, contamos os minutos no relógio ouvindo […]
31
agosto
há 14 anos
José Tranquilo não era chamado assim por escolha de ninguém. Era seu sobrenome, mas não sua vontade e nem o seu destino. Tinha sido metalúrgico em uma fábrica em uma grande cidade, ganhara algum dinheiro e vivera aventuras, mas tivera que voltar, com o rabo entre as pernas, justamente porque perdeu a calma — e por um triz não perdeu também a alma. Voltou para nossa cidade trazendo na bagagem um uniforme azul com o emblema da Volkswagen e foi ser mecânico de automóveis no […]
31
agosto
há 14 anos
O cobertor de nuvens me envolve e amortece os sons enquanto eu me estendo sonolento ao lado de meu amor que respira bem suave e a lua sobe.[^1] A noite continua, eu fecho a porta e deixo o livro pelo chão: a escuridão se põe em morros calmos, a estação mudou e o vento é morno. Criaturas se levantam, outras dormem. Retenha os seus sonhos, sonhos fogem. Ao gramado chega uma chuva fria que anuncia um amanhecer dourado. E o som do novo dia ergue-se […]