20
agosto
há 14 anos
Eu costumava ter gato. Adorava acarinhar aquele bicho, mas ele não tinha muito gosto por afagos. Um dia ele morreu, nem lembro do que, e eu comecei a esquecer. Nunca mais pude ter gatos. Quando cresci fiquei alérgico e fui viver num apartamento. Passo o dia fora e não tenho quem cuide de bichos para mim e detestaria deixá-los cagando soltos. Lembro com saudades do bichano, mas tudo que tenho para me consolar são meus livros. Os livros são mais ou menos como gatos. Você […]
20
agosto
há 14 anos
Tii era um funcionário exemplar e se orgulhava disso. Num país de camponeses que tinham de estragar as mãos na dureza do trabalho para poderem extorquir da terra o seu pão, sentia-se feliz por ter um trabalho afastado da faina e do sol: era escriba. Trabalhava para Hátor num templo de província, a administrar os cereais. Devia manter sob rigoroso controle o estoque de grãos que sempre devia estar à disposição do povo nos anos de seca, para grande lucro da deusa e gratidão da […]
19
agosto
há 14 anos
Eu esqueci quem fostes, fantasmas do passado. Esqueci todos os beijos e as tépidas noites de outono. Estou aqui pensando e me tenho perdido como nos maus velhos tempos, com as mesmas palavras gastas repetindo antigos erros. Gastei demais o meu tempo gostando de coisas banais, depois veio a seca da vida e uma espécie de ressaca que teima com gosto amargo e este vento intrépido me faz sentir os pecados e pensar em coisas sem nexo. Tenho sido alguém sem sentido, tenho seguido caminhos […]
19
agosto
há 14 anos
Eu encontrei o amor de passagem por uma cidade estranha. Não fui ingrato de não lhe dar um sorriso, mas não estou conseguindo pensar direito mais desde aquele fatídico instante em que ele me rendeu como um assalte à sua vítima e levou de mim o único juízo que eu tinha. Margarida também percebeu, mas não tinha no bolso arma com que se defender do sorrateiro e acabamos terminando a noite dizendo bobagens um ao outro. Fizemos promessas que agora teremos de cumprir, despedimo-nos com […]
18
agosto
há 14 anos
“Não há uma história para contar” — disse o homem depois de olhar nos olhos os amigos que o rodeavam. “Lá em cima é frio e solitário, não há nada para ver e aquele vento que vem não te traz nenhuma sensação além do desespero. Não há nenhuma sensação mística, nenhuma experiência espiritual.” E desceu, ainda com as botinas molhadas de orvalho, carregando nas costas a enorme mochila de acampamento. Os demais permaneceram ao pé do monte observando o acúmulo de nuvens brancas em torno […]
17
agosto
há 14 anos
Augusta estava deitada quieta, nua, olhando para o teto, com o suor do corpo ainda evaporando após o amor, aquela sensação fresca, aquela preguiça, aquele formigamento… — Venha morar comigo. Assim, de repente, foi que Humberto pôs no ar a frase, solta e súbita. Mesmo a princípio se sentindo agredida, ela reagiu com moderação. — Não é assim, Humberto. Não faz ainda nem cinco meses que a gente se conheceu. — Por que não? Cinco meses me bastaram para querer você. Não devemos nada a […]
16
agosto
há 14 anos
Estávamos bebendo cerveja e jogando conversa fora. Assunto vai e assunto vem, acabamos chegando a falar sobre a dubiedade do caráter humano. Aí algum humorista presente à mesa em dia de péssimo humor atalhou: — O ser humano também devia ter cauda. Assim ficaria mais fácil identificar o prazer, a alegria, a dor, a contrariedade ou o cansaço. Não ia ser tão frequente esse sofrimento de decepcionar ao outro por não saber como reagir. — Quem tem cauda é cachorro, ó João. Deixe de ser besta porque […]
15
agosto
há 14 anos
Dia desses eu vi uma cena deprimente. Saindo do banco vi um pastor pregando na praça. Ele tinha uma bíblia esgarçada, um terno puído e uma gravata vários números maiores que o dele pendendo do pescoço magro. Eu conheço esse pastor, é um homem solteiro e solitário, já além dos quarenta anos de idade, que trabalha como marceneiro. Todos os domingos e eventualmente durante a semana ele pega sua velha bíblia, um caixote de madeira e seu terno preto já quase perdido e vai para […]
13
agosto
há 14 anos
Brega não ama, apaixona-se perdidamente. Brega não tem filhos, tem “amores”. Brega não se casa, “encontra uma alma gêmea”. Brega não ouve música, “põe um som.” Cerveja brega precisa estar “estupidamente gelada.” Verão brega tem sempre um “calor de rachar.” Brega quando dança “faz o chão da terra tremer.” Brega não sai na noite, sai na “night”. Beijo de brega é eletrizante. Coração de brega fica despedaçado com qualquer decepção. Aliás, nenhuma decepção de brega é “qualquer”, todas são traições. Uma multidão de bregas é […]
13
agosto
há 14 anos
Gosto mais de escrever para amores que perdi do que para amores que ainda ouço em mim. Não é porque o passado seja confortável; mas há mais motivos na saudade que na vida e ser poeta é ser triste, a sensibilidade é frágil e nos quer mergulhando em abismos que outros veem à distância e apenas acham belos. Da próxima vez que for feliz, haverá mais música, mais beijos e mais certezas. Mas também vou esquecer minhas promessas porque o amor é exigente e arisco. […]