Apontamentos avulsos e incompletos encontrados datilografados sobre o verso de páginas contendo alguns poemas. Tanto os poemas quanto esses apontamentos haviam desaparecido de minha lembrança. A data (dos poemas) é 1994, a destes apontamentos deve ser um pouco depois (um ano, no máximo). Trata-se aqui do texto mais antigo cuja forma original não tem influência alguma de revisões posteriores. Uma verdadeira relíquia da época em que eu ainda estava aprendendo a tentar escrever. Mais do que isso, parecem ser apontamentos para um glossário que ficaria […]
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O Lobo do Leme
Nos encontramos em um bar imaginário, durante uma digressão sonambúlica. Tentei assaltá-lo com uma pergunta, mas ele é refratário a tais abordagens e sempre reverte a tentativa com uma proposição inesperada. Ontem, por exemplo, quando lhe perguntei quem eram as pessoas cujos nomes ele me recomendara conhecer, ele ignorou o que eu dissera e me perguntou se eu tenho escrito. Reconheço que é inútil tentar conduzir a conversa quando se trata dele, então acabei aceitando a pergunta, na esperança de que as dobras do assunto acabassem por esbarrar na resposta do que eu queria descobrir.[…]
O Mundo Não Vai Acabar
Quando ocorre uma tragédia de grandes dimensões humanas, algo infelizmente frequente, há muitos que se apressam em dizer que “este mundo está é perdido” e que nós vivemos o suposto “final dos tempos”. Quem estuda a História da humanidade a fundo sabe muito bem que jamais deixou de haver este conceito tão popular, de que o mundo “está acabando”, mas apesar de tudo o mundo segue aí, firme e forte em sua marcha rumo ao caos. Podem me acusar de insensível, mas a verdade é […]
Quanto Você Quer Pagar?
Quanto você pagou pelo seu dia de hoje? Nada? Tem certeza? Provavelmente você está enganado, tanto quanto eu estive durante décadas perdidas de minha vida. Cada dia que você vive está pago, e muito bem pago, com uma moeda cujo valor subjetivo é maior que o do dólar e o do iene: a liberdade. É com liberdade que você paga por lhe terem deixado vivo mais um dia. Com ela você comprou, indiretamente, o pão e o café que o prepararam para outra jornada. Esta, […]
O Cãozinho Pequinês
Ao mesmo tempo oriental e desorientado o cãozinho deu no jardim e ficou parado pela morte que se apanha no mínimo tato. Deram-lhe bola ou a comeu por destino. A meia-noite chegou cedo, chegou dura com estrelas demais e sem promessas. Assoviaram de algum lugar no escuro, o silêncio dos olhos empoçados não se alterou nem de leve. O silvo passou no ar como uma outra pedra. Originalmente escrito em 1997. Direto do “Túnel do Tempo”
Chega de Anjos
Teobaldo tentava esquecer. Poderia ser na próxima golada de cachaça, ou na quinquagésima; tinha medo que não fosse nunca. Por via das dúvidas, entornava para dentro da goela a décima oitava enquanto ouvia Sílvio Luiz esculachando algum centro avante que perdia um gol: “Pelo amor dos meus filhinhos, esse até a minha sogra fazia!” As imagens vacilavam com a interferência da geladeira, o som vacilava com a interferência da gritaria, sua mente vacilava com a interferência de uma arma fria que levava no bolso. Ninguém […]
O Louco e Seu Deus
O louco dançava à beira do rochedo, desafiando as ondas com seus versos: — Vamos para o céu, ou talvez… pulem, pulem! Andem logo, ele espera. Vocês não tem escolha! Pulem, pulem para os braços do dragão que esconde suas asas e seus dentes na maciez das ondas. Os homens continuavam construindo o barco sobre o gramado. Enquanto as mulheres colhiam frutas e preparavam carne-seca — provisões para a viagem. O louco observava e cantava seus versos desafinados: — Vocês não tem escolha, as velas serão rasgadas […]
‘Tá Dominado, ‘Tá Tudo Dominado!
Em 2003 já era difícil ter paz sonora neste mundo em que o ruído supre a carência de atenção do indivíduo face à indiferença de uma sociedade numerosa e apática. Sete anos depois, mesmo o horrendo sucesso «musical» tendo sido esquecido, as ideias e os sentimentos continuam atuais como nunca: O meu vizinho de frente comprou um toca-discos. Seria um acontecimento banal se hoje em dia este simples eletroeletrônico não se tivesse transformado num equipamento perigoso que pode ser usado para o mal. E infelizmente […]
O Lobisomem Brasileiro
Já que ontem eu escrevi sobre a mula sem cabeça, resolvi aproveitar o embalo, enquanto os dados ainda estão frescos na memória, e escrever sobre o lobisomem, com que ela possui na tradição luso-brasileira, uma relação muito próxima. O lobisomem luso-brasileiro não é o mesmo lobisomem que é visto nos filmes de terror americanos e que passou a fazer parte da tradição literária europeia. Na cultura pop de hoje a comparação mais próxima que se possa fazer com ele seja a do professor Lupin, da […]
Mula Sem Cabeça
A mula sem cabeça é um mito de origem ibérica que existe por quase todo o território nacional, e também por toda a América Hispânica (embora com menos intensidade). Um dos mitos mais ricos e complexos de nossa tradição, é também um dos mais internamente coerentes: é possível explicá-lo de forma coesa, do princípio ao fim, sob o prisma da história das ideias: essencialmente falando, a mula sem cabeça é um mito que pretende inculcar na mulher a submissão ao homem através do casamento. A […]