Os Cabeças Chatas

Uma das coisas mais curiosas das últimas décadas foi a difusão do terraplanismo, a crença estúpida de que o mundo seria plano. Acompanha-o de perto outra ideia, menos estúpida, porém não menos incorreta, segundo a qual os povos antigos todos creriam em um mundo literalmente chato. Muitos povos antigos realmente acreditavam que o mundo era uma grande bandeja, com uma cúpula por cima e repousando sobre diversos tipos de suportes. Termos como “firmamento” e “pilares da terra” entraram na linguagem literária exatamente porque os antigos […]

Meu Nome Está… Errado

Muita gente pronuncia meu sobrenome errado, mas isso não me incomoda tanto porque nossa língua é bem dialetada e pronúncias divergentes são aceitáveis. Então tanto faz se você me chamar de “Gouvêa”, “Goveia”, “Gouveia”, “Govêa” etc. Desde que não pratique o velho hábito de alternar entre “ou” e “oi” eu vou entender e perdoar. O problema é a escrita. Parece-me inaceitável que quase ninguém consiga escrever direito o meu sobrenome. Tudo bem, as pessoas estão acostumadas a escrever “Gouveia” e podem estranhar não haver um […]

O Pior Presente Que Se Pode Ganhar

Os piores presentes que alguém poderia lhe dar incluem uma gravata, se você, como eu, não tem o hábito de usar, meias, que sempre serão menores que o necessário, caso sejam presenteadas, e também aqueles agasalhos de lã feitos em casa por uma de suas tias, sempre empregando duas cores absolutamente discordantes. Bem, minto. Há um presente pior que qualquer destes: canetas. Tentarei explicar. Canetas não são muito úteis hoje em dia, em que as pessoas normalmente escrevem mais em teclados ou superfícies sensíveis ao […]

Teste de Mineiridade

Entrando na onda dos testes de personalidade que fazem furor no Facebook, concebi o seguinte teste, para apurar o grau de mineiridade (real ou espiritual-metafísica) que está contido em seu corpo. A regra do teste é simples: vá lendo as perguntas e anotando suas respostas. Depois compare com o gabarito e some os seus pontos (nada de automatismos aqui, que isso é frescura de paulista, some na calculadora se não tiver caneta e papel à mão). Pontuação negativa significa que você não só não tem […]

Phantasmagoria

Guilherme construíra a sua casa sobre as ruínas desconhecidas que ocupavam um excelente terreno urbano. Doze trabalhadores com suas máquinas removeram os restos, arrancaram os arbustos e aplainaram cada metro de chão. A construção teve percalços porque havia quem achasse certa importância histórica no lugar, mas não foi longe a questão: a casa estava esquecida, parecia impossível de recuperar e tinha uma fama de assombrada.

Rebola e Dá um Gritinho

Bem, sacode o negócio agora, menina (sacode o negócio) Rebola e dá um gritinho (rebola e dá um gritinho) Vem, vem, vem, vem cá, menina (vem cá, menina) Vem cá fazer a coisa se mexer (fazer a coisa se mexer) Bem, fazer a coisa se mexer (fazer a coisa se mexer) Você sabe que você é muito boa (é muito boa) Você sabe que você me bota para andar (me bota para andar) Do jeito que eu sabia que andaria (eu sabia que andaria) Bem, […]

Mascarados Dialogando de Dia

O prédio das repartições municipais era bonito, histórico, razoavelmente bem depredado e detestável. Entrei pela porta de madeira bruta, entalhada a machado, em busca do departamento de arrecadação do imposto predial e territorial urbano, onde deveria tentar obter, pela quarta vez em trinta dias, uma certidão negativa que me habilitasse a hipotecar a minha própria casa para poder custear o tratamento da doença terminal de minha mulher. Um dia falarei sobre isso, sobre a obrigação que temos de dilapidar o futuro dos filhos para fingir que tratamos da morte inevitável dos vivos, tudo porque a sociedade nos culpará se sobrarmos razoavelmente ricos depois de uma desgraça na família.

Mudança de Vocabulário

Eu juro Sou de um tempo passado, em que cupcake se chamava bolinho, blush se chamava ruge, van era furgão sale era liquidação. Nunca me ocorreu chamar meu amor de love, nem referência de benchmark, nem interessado em stakeholder, nem artigo de paper e nem discurso de keynote. Hoje vivo perdido comendo cigarrette em vez de enroladinho. Nunca mais vi jogarem bola ao cesto e nem futebol de salão. Acho estranho quando chamam stickers de adesivos e entrega em domicílio de delivery. Especialmente se houver […]

Os Idiotas Eram Sós…

…ou não andavam tão bem acompanhados. Era um mundo melhor, no qual você não se fazia ouvir nem na esquina, mas podia pelo menos desfrutar da doce sensação de que as suas ideias não seriam incompreendidas e ridicularizadas por idiotas. O ser idiota é um ser coletivo, gregário, agremiado, associado, mesmo que informalmente. Ninguém consegue ser realmente um idiota quando está sozinho porque o eco das paredes nos dá a estranha sensação de que não somos geniais ou, ainda pior, de que nossa genialidade nunca […]

Atentado Violento ao Leitor

Dei-me conta disso por causa de um desses movimentos literários altruístas e anticapitalistas que surgiram por aí. Acho que o nome é “Doe um Livro”, ou coisa parecida. Eu estava esperando em uma fila de banco, ocasião em que o bom gosto fica seriamente comprometido e você pode se pegar lendo com interesse o verso de sua fatura de cartão de crédito ou uma brochura publicitária esquecida por um cliente que foi embora. Estava eu justamente desesperado em busca de letras para ler quando uma […]