O que fizemos foi muito belo, mas foi uma loucura sem sentido. O sonho é uma peçonha aparecida apesar do que somos nas manhãs. Estávamos lá entre coqueiros e sol, bonitos e molhados de mar, e até a porca que passou na praia mereceu entrar em um poema. — Mas como foi sem sentido, se sentimos tanto não ter sido eterno? Aquela noite ganhou cores, aqueles dias ficaram sólidos na alma e ainda hoje o teu perfume purifica-me. O que eu sei de sentidos é […]
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‘Tá Dominado, ‘Tá Tudo Dominado!
Em 2003 já era difícil ter paz sonora neste mundo em que o ruído supre a carência de atenção do indivíduo face à indiferença de uma sociedade numerosa e apática. Sete anos depois, mesmo o horrendo sucesso «musical» tendo sido esquecido, as ideias e os sentimentos continuam atuais como nunca: O meu vizinho de frente comprou um toca-discos. Seria um acontecimento banal se hoje em dia este simples eletroeletrônico não se tivesse transformado num equipamento perigoso que pode ser usado para o mal. E infelizmente […]
Queridos Filhos da Pátria Amada
Vão dizer que sou viúva da Ditadura só por eu dizer isso, mas a verdade é que tenho saudades dos antigos desfiles do Sete de Setembro, dos desfiles que havia quando eu era moleque de escola lá em Cataguases. Eram os tempos da Ditadura, sim, e muita gente sofria, mas eu era criança e não tinha que saber disso. O que me importa nessa saudade é que, naquela época, o Sete de Setembro era algo bonito de se ver, e não esse espetáculo desorganizado e […]
Aprendiz de Feiticeira
Escrito originalmente em 1999 ou 2000, um de meus primeiros experimentos em prosa. Em sua calma sensualidade, a mão sobre o peito e a inocência no rosto, ela balbucia uns segredos inconclusos. Bela Adormecida tão recentemente apresentada à ingratidão do mundo, murmura festividades verbais inconsequentes que flutuam sem compor ordem na confusão improvisada de seus pensamentos. Ela não sabe, mas sente, que as palavras são armadilhas em que sempre caímos. Há tão pouco tempo ela atingira a feminilidade que ansiosamente desejava, há tão pouco tempo […]
O Jardim Secreto
Na minha cidade havia uma casa enorme, mansão dos tempos dos barões do café, que estava abandonada e tinha um jardim também impressionante. O jardim ficava detrás de altos muros e estava tomado já de ervas, depois de décadas de esquecimento. Mas quando olhávamos pelas gretas do portão, víamos lá dentro aquelas árvores exóticas, aquelas fontes onde já não jorrava água, cobertas de mato. Havia uma dignidade, uma disposição artística ali. Algo que o descuido não apagava. Era um desafio comum em minha infância saltar […]
A Última Noite do Velho Poeta
Vou andando sozinho pela escuridão da noite. Volto para casa com os ouvidos amortecidos e com amargura na boca pela décima vez no mês numa noite morna de outubro ou novembro. Subitamente eu me dou conta de estar imerso num silêncio sibilante e imenso que apenas raros carros cortavam. Com passos duros e pernas doloridas, cruzo a Ponte Nova e subo em direção à praça, onde já quase não há ninguém agora, salvo três fregueses de uma lanchonete comendo cachorros quentes e um bêbado gritando […]
Tio Gumercindo e o Horto
Tio Gumercindo morreu. A notícia chegou pelo telefone, casual como uma chuva na manhã de sábado. Há pessoas que vão morrer na linda manhã de um sábado de inverno: não é uma escolha. Há pessoas que preferem as madrugadas chuvosas e quentes do verão. Tio Gumercindo morreu, e fazia dois anos e meio que eu não o via, mesmo ele vivendo a menos de trinta quilômetros de onde vivo. Saí de casa com outra desculpa. Tinha de fazer tanta coisa na rua, no mundo. Mas […]
A Crueldade da Internet
Existe algo de muito cruel na Internet: ela nos expõe demais, cedo demais. Quando eu tinha dezesseis anos eu também escrevia e me achava uma reencarnação de Rimbaud (fazia poemas, lógico). A diferença é que minhas pobres páginas datilografadas não iam muito longe. Xerox era caro, mimeógrafo, trabalho. Os jornais da cidade só publicavam as coisas que os caras ricos escreviam, por mais bosta que fosse. Bosta de rico é perfume. Então só me sobravam as gavetas e a esperança. As gavetas foram enchendo e […]
S.P.A.M.
Não quero moedas verdes, já sei qual foi o dia de meu casamento. O de minha morte, não sou Idi Amin para querer saber. Não quero convites para o Novo, não preciso de alongar meu pênis, não me interessa comprar pílulas azuis e nem retirar, sem pagar a dívida, o meu nome do SPC. Eu quero é paz de espírito — ah, se vendessem isso a quilo! Eu quero saber apenas o que todo mundo sabe, mas que EU ainda não sei. Gosto de coisas […]
Cruzar a Ponte
Quando passo pela ponte sinto uma vertigem que me atrai em direção à água. É um instante de terror em que quase me imobilizo. Não posso correr, pois isso me desequilibraria. Tenho de ir devagar, medindo os passos e ignorando o rio ao mesmo tempo em que mantenho o olhar fixo em suas águas regurgitantes. Cruzo a ponte todos os dias para ir ao trabalho. Se não me causasse tanta vergonha minha vertigem eu poderia encontrar algum meio de evitar cruzar a pé, mas de […]