Mudança de Vocabulário

Eu juro Sou de um tempo passado, em que cupcake se chamava bolinho, blush se chamava ruge, van era furgão sale era liquidação. Nunca me ocorreu chamar meu amor de love, nem referência de benchmark, nem interessado em stakeholder, nem artigo de paper e nem discurso de keynote. Hoje vivo perdido comendo cigarrette em vez de enroladinho. Nunca mais vi jogarem bola ao cesto e nem futebol de salão. Acho estranho quando chamam stickers de adesivos e entrega em domicílio de delivery. Especialmente se houver […]

Será que Somos Tão Sofisticados?

Será que somos tão sofisticados assim? A maioria dos autores celebrados por nossa crítica pratica um tipo de prosa quase ilegível, caracterizado pela exploração intensa, quase joyceana, tanto da sintaxe quanto da semântica, aliado a um ângulo narrativo sempre oblíquo e a uma sequência fragmentária. Os autores que praticam uma narrativa mais tradicional não são tão valorizados, não são considerados mais como geniais, mesmo que suas obras exalem competência, como se o seu estilo estivesse ultrapassado, mas o Finnegans Wake já passou de oitenta anos […]

Contato Mais ou Menos Imediato

Apareceu de repente um barui estrãe no motor do caminhão, chamano a atenção do Remundo, que cochilava no banco de carona pro Jailso dirigir. Tava de madrugadinha e era lua minguante, num dava para ver nada no escuro daquele fim de mundo. — Jajá, para o caminhão. Encostar ali era perigoso: ês tava no meio do nada, estradinha de terra. Canavial dum lado e dotro. Não tinha nenhuma luz de cidade apareceno no céu. — O que foi, Mundim? — Um barui no motor. — […]

Bloqueio Criativo vs Desafio Inatingível

O bloqueio criativo é um dos fantasmas que assombram os que se pretendem escritores. Amadores ou profissionais, todos já se viram algum dia cheios de vontade — ou de necessidade — de escrever e não podiam porque a coisa simplesmente «não fluía». Alguns culpam a falta da «inspiração», outros a falta de talento, outros a falta de assunto. O que é certo é que ninguém pode se gabar de «sentar para escrever» quando quer — não entre os que escrevem coisas que prestam para ler. […]

O Mundo Fantástico de Howard Phillips Lovecraft

Edição independente de uma coletânea de algumas das obras mais significativas do mestre americano do horror cósmico. Participei com as traduções de cinco contos: A Busca de Iranon, Um Sussurro nas Trevas, O Inominável, O Depoimento de Randolph Carter e O Habitante das Trevas. A Edição da Clock Tower é um projeto ousado, movido apenas pelo trabalho de voluntários (tradução, revisão, ilustração, projeto gráfico, catalogação) e com a proposta de venda a um grupo fechado de compradores, ele dá à luz um volume que deve, […]

Beijo Frio

Estava escuro ainda quando Manoel acordou. A cerração ainda recobria as encostas da serra e as estrelas estavam sumidas no meio de tanta umidade no céu. Mas tinha ficado difícil continuar dormindo, e ele não sabia porque. Dentro da barraca o frio não entrava tanto, o saco de dormir isolava bem a umidade, mas de alguma forma ele acordou e foi se sentar, ainda enrolado nos agasalhos que catou da mochila. Acendeu o fogareiro e começou a esquentar água para preparar um café solúvel. Reparou […]

“Garoto” no Quilômetro 101

Não houve julgamento formal. Ficou semanas preso, comendo do péssimo pão e da pior sopa. Bateram-lhe um pouco, mas não excessivamente. Um dia, por fim, puseram-no dentro de uma viatura no fim da madrugada, depois de lhe terem dado uma última sova, e o levaram por uma estrada de terra, solto e aos solavancos dentro do porta malas. A princípio parecera que seria morto em alguma clareira de floresta à beira da estrada, mas não foi o que aconteceu. O carro parou em um cruzamento […]

Onde Fica a Praia do Sossego?

Quando eu comecei a escrever o romance “Praia do Sossego” eu nem sabia que havia um lugar com esse nome, apenas imaginei que existiria e tratei de escrever a história de alguém em busca de paz que acabava indo para lá. Então um belo dia a minha então namorada me disse que uma amiga dela tinha uma casa em um lugar que tinha exatamente esse nome. Tive de ir lá, não apenas para passar uma semana sozinho e namorando à beira-mar, mas também para conhecer […]

Ismaël

“O passado nos condena, Ismaël.” Ainda posso ouvir rasgando minha alma essas palavras pro­fe­ri­das pelo velho, com seu porte de capitão Ahab, como se estivesse à amurada de um velho navio con­tem­plando o mar absoluto, à espera de alguma incompreensível fera. Chamo-me real­mente Ismaël, mas ele não se chamava Ahab, e não estávamos embarcados em navio algum, mas per­di­dos nas montanhas poeirentas do Teto do Mundo, fugitivos da impiedosa inquisição de um inimigo invisível e quase incompreensível. Eu piso o chão destas montanhas, e Ahab […]