“O passado nos condena, Ismaël.” Ainda posso ouvir rasgando minha alma essas palavras proferidas pelo velho, com seu porte de capitão Ahab, como se estivesse à amurada de um velho navio contemplando o mar absoluto, à espera de alguma incompreensível fera. Chamo-me realmente Ismaël, mas ele não se chamava Ahab, e não estávamos embarcados em navio algum, mas perdidos nas montanhas poeirentas do Teto do Mundo, fugitivos da impiedosa inquisição de um inimigo invisível e quase incompreensível. Eu piso o chão destas montanhas, e Ahab […]
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Descobri que sou um caipira
Quando eu era criança, ser chamado “caipira” era praticamente um xingamento. Equivalia a ser chamado de “ignorante”, “abobalhado” ou “ingênuo”. Piadas de caipira eram muito mais fortes que as de português. Talvez isso se explique pelo fato de que nós, os habitantes da Zona da Mata de Minas Gerais sermos descendentes de colonos provenientes, principalmente, das terras fluminenses, gente mais ligada à “Corte” e ao exterior. Nós da Zona da Mata de Minas Gerais vivíamos de costas para Belo Horizonte e o resto do estado, […]
O Blog de Um Milhão de Reais
Maria Bethânia atraiu uma grande reação quando “se soube” que ela teria apresentado ao Ministério da Cultura um projeto para desenvolver um *blog* de poesia e obtido uma licença para captar R$ 1.300.000,00 (coloquei assim, com todos os zeros, para que vocês possam tentar visualizar melhor a cifra). Seguiu-se grande indignação pilotada pela mídia amestrada (aquela que abana o rabo quando lhe mostram o osso de uma polêmica) e surgiram desmentidos e explicações. […]
A Arte de Ser Ridículo
Aonde quer que vá, tudo sempre igual: pessoas agindo comicamente e ele, aliviado por não ser bobo como elas, sentindo por dentro a nódoa de inveja pela felicidade irresponsável que podem ostentar enquanto ele arrasta a solidão, apenas ocasional e temporariamente minorada por relacionamentos passageiros. Impossível, por exemplo, brincar o carnaval. Basta um bloco de sujos para sentir até vontade de rir daquelas fantasias e caretas estúpidas que fazem. O “Bloco das Piranhas” não lhe faz apenas vontade de rir: dá-lhe horror ver aqueles marmanjos […]
Chega de Anjos
Teobaldo tentava esquecer. Poderia ser na próxima golada de cachaça, ou na quinquagésima; tinha medo que não fosse nunca. Por via das dúvidas, entornava para dentro da goela a décima oitava enquanto ouvia Sílvio Luiz esculachando algum centro avante que perdia um gol: “Pelo amor dos meus filhinhos, esse até a minha sogra fazia!” As imagens vacilavam com a interferência da geladeira, o som vacilava com a interferência da gritaria, sua mente vacilava com a interferência de uma arma fria que levava no bolso. Ninguém […]
Pastoral aos Descrentes no Amor
Tudo bem, agora que a paixão esfarrapou e o perdão nos violou. Agora que temos a paz com as mentiras queridas. Se o amargo de antes não vem à tua boca, e nenhuma secura sobe de teu ventre vazio com acusações fatais. Agora que montamos com sobras e refugos de sentimentos falidos esse teatro de sombras. Compraram-te na quinta oferta que lhe fizeram e achaste meritório ter resistido devidamente às quatro primeiras. Agora estás vendida e satisfeita com o preço, ou pelo menos precisa crer […]
Considerações Sobre a Imobilidade
Eu devo ser uma das pessoas mais inquietas desta cidade. Não por ser irrequieto: não sou nenhum «azougue» (palavra herdada de minha avó que eu guardava numa bonita caixa e fiquei anos tentando encaixar numa crônica, até finalmente conseguir). A questão é que eu preciso estar constantemente com a minha mente ocupada de algo. Nenhuma pessoa leva tão a sério que a mente vazia é a «oficina do demônio» (e olha que eu nem creio nele). Pensar é imperativo. Se eu não tiver algo sério […]
Multiplicai-vos e Crescei
Nada saiu como planejado, e Selena engravidou da primeira vez que ficou com Marcelo. Ele teria entrado em pânico se compreendesse o que estava por vir, mas não tinha malícia suficiente para perceber. A agitação do Natal o consumia, o clima de festa o distraía de tudo e logo viria o Ano Novo, com suas novas prioridades, que o afastariam de mais coisas. Afinal, precisava escapar de todas as armadilhas de fase que a vida nos impõe, até o chefão final. Selena não notou tampouco, […]
Comerciamante Triste das Horas Rasas
O amor de Noêmia é súbito e simples, alívio de dívidas e dúvidas que doem. Espera que açoitemos sua carne rude com nossas vontades incultas e cruas. Sua passagem aromática pela praça traz promessas e segredos aos jovens e somos expostos ao beijos que esparge, complexas gotas de trevas que escapam de seu sorriso assimétrico e rígido e escorrem por suas carnes estreitas pelas descontinuidades e curvas. O amor de Noêmia é nota de amargo e seu sorriso, incensado e insincero. Nota-se desespero no cálculo […]
Sentidos
O que fizemos foi muito belo, mas foi uma loucura sem sentido. O sonho é uma peçonha aparecida apesar do que somos nas manhãs. Estávamos lá entre coqueiros e sol, bonitos e molhados de mar, e até a porca que passou na praia mereceu entrar em um poema. — Mas como foi sem sentido, se sentimos tanto não ter sido eterno? Aquela noite ganhou cores, aqueles dias ficaram sólidos na alma e ainda hoje o teu perfume purifica-me. O que eu sei de sentidos é […]