Na minha cidade havia uma casa enorme, mansão dos tempos dos barões do café, que estava abandonada e tinha um jardim também impressionante. O jardim ficava detrás de altos muros e estava tomado já de ervas, depois de décadas de esquecimento. Mas quando olhávamos pelas gretas do portão, víamos lá dentro aquelas árvores exóticas, aquelas fontes onde já não jorrava água, cobertas de mato. Havia uma dignidade, uma disposição artística ali. Algo que o descuido não apagava. Era um desafio comum em minha infância saltar […]
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A Última Noite do Velho Poeta
Vou andando sozinho pela escuridão da noite. Volto para casa com os ouvidos amortecidos e com amargura na boca pela décima vez no mês numa noite morna de outubro ou novembro. Subitamente eu me dou conta de estar imerso num silêncio sibilante e imenso que apenas raros carros cortavam. Com passos duros e pernas doloridas, cruzo a Ponte Nova e subo em direção à praça, onde já quase não há ninguém agora, salvo três fregueses de uma lanchonete comendo cachorros quentes e um bêbado gritando […]
O Flautista
Amaralina tinha sido uma cidadezinha qualquer, com casas entre bananeiras, mulheres entre laranjeiras, pomares e amores para quem quer que soubesse vivê-los. Seguia sua vida besta bem devagar, entre montanhas bem altas, rios suficientemente traiçoeiros e solo providencialmente pobre de qualquer coisa que o bicho-homem pudesse querer arrancar à força de máquinas e dor. A gente de lá era arredia e desconfiada de estranhos. Colonos tricentenários, muito pouco acostumados a quem não tivesse o falar líquido que eles tinham aprendido com os índios e os […]
Sobre Cães e Esses Bichos Esquisitos, Seus Donos
Estávamos bebendo cerveja e jogando conversa fora. Assunto vai e assunto vem, acabamos chegando a falar sobre a dubiedade do caráter humano. Aí algum humorista presente à mesa em dia de péssimo humor atalhou: — O ser humano também devia ter cauda. Assim ficaria mais fácil identificar o prazer, a alegria, a dor, a contrariedade ou o cansaço. Não ia ser tão frequente esse sofrimento de decepcionar ao outro por não saber como reagir. — Quem tem cauda é cachorro, ó João. Deixe de ser besta porque […]
Dislexópolis
Com toda a equipe do Laboratorium reunida no Sanctum sanctorum do Magisterium universalis, o Magister maximus tomou a palavra no tom pausado e pastoral que a todos fascinava e irritava e começou a decretar. — Ausculta fili — ele se dirigia a Ignatius, novamente envolto em conspirações e guerras — temos de ser justos e temos de permanecer justos diante das tribulações. — Sim, mestre. — Temos tido sucesso em permanecer isentos de toda culpa por tudo o que fizemos nos últimos séculos e milênios, […]
Tio Gumercindo e o Horto
Tio Gumercindo morreu. A notícia chegou pelo telefone, casual como uma chuva na manhã de sábado. Há pessoas que vão morrer na linda manhã de um sábado de inverno: não é uma escolha. Há pessoas que preferem as madrugadas chuvosas e quentes do verão. Tio Gumercindo morreu, e fazia dois anos e meio que eu não o via, mesmo ele vivendo a menos de trinta quilômetros de onde vivo. Saí de casa com outra desculpa. Tinha de fazer tanta coisa na rua, no mundo. Mas […]
Na Descida da Serra da Vileta
Era alta noite e eu estava na estrada, ouvindo uma rádio que oscilava e chiava de interferências, enquanto o carro escavava um túnel na escuridão da serra. Meus pés doíam de acelerar há tantas horas, os pneus roncavam na irregularidade do asfalto e eu me sentia profundamente só. De repente uma estação estranha interferiu com a rádio comercial: um som eletrônico longo e agudo irritou-me o suficiente para que levasse a mão ao controle para desligar. Tomei um choque ao fazê-lo e levei a mão […]
A Crueldade da Internet
Existe algo de muito cruel na Internet: ela nos expõe demais, cedo demais. Quando eu tinha dezesseis anos eu também escrevia e me achava uma reencarnação de Rimbaud (fazia poemas, lógico). A diferença é que minhas pobres páginas datilografadas não iam muito longe. Xerox era caro, mimeógrafo, trabalho. Os jornais da cidade só publicavam as coisas que os caras ricos escreviam, por mais bosta que fosse. Bosta de rico é perfume. Então só me sobravam as gavetas e a esperança. As gavetas foram enchendo e […]
S.P.A.M.
Não quero moedas verdes, já sei qual foi o dia de meu casamento. O de minha morte, não sou Idi Amin para querer saber. Não quero convites para o Novo, não preciso de alongar meu pênis, não me interessa comprar pílulas azuis e nem retirar, sem pagar a dívida, o meu nome do SPC. Eu quero é paz de espírito — ah, se vendessem isso a quilo! Eu quero saber apenas o que todo mundo sabe, mas que EU ainda não sei. Gosto de coisas […]
Detesto Viajar
Odeio terminais rodoviários, o cheiro de gente e de óleo diesel derramado, os banheiros sem qualquer traço de personalidade, as pessoas exclusivamente preocupadas em retornarem ou irem, andando de um lado para outro com suas malas. Detesto ônibus, trens e aviões. Detesto estações e aeroportos. Custa-me pôr em movimento a minha vida, ter de retirar meus pés do chão. Tornei-me meio árvore, tanto tempo estando nesta mesma cidade e nesta rua mesma. Quando escuto os veículos que passam levando gente atrás de seus destinos, lembro-me […]