Uma das coisas mais viciantes do mundo é o sono. Quando você se acostuma a dormir bem, depois não quer parar mais. No começo está tudo bem, você dorme cinco horas agitadas cada noite, acorda e se firma de pé a a poder de muito café e vai trabalhar. Mas um dia qualquer resolve dormir mais cedo porque está entediado ou se sente um pouco mal, então passa dez horas na cama a ressonar como um monstro mitológico e só desperta com o marretar de […]
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A Alma Nua
Acordei de um sono pesado e sem sonhos, sentindo a boca seca devido a muito tempo sem beber água, e os músculos algo doloridos de tanto ficar deitado. Depois de um breve suspiro, que não me aliviou muito por causa do ar opressivo do quarto, dei-me conta de que a cama estava anormalmente dura, certamente porque dormira em uma casa alheia — coisa que raramente faço. Tentando entender onde estava e o que me acontecera, levei a mão direita à cabeça, um gesto muito característico […]
Ai de ti, Literatura Brasileira
Que a maioria dos jovens que pretendem ser escritores carece de significativo talento para escrever, isso eu sempre soube (e frequentemente me incluo nesse grupo de medíocres que se diverte escrevendo, mas nunca vai a lugar algum). O que eu não sabia é que esse problema, ao se fixar e agravar com o tempo, começasse a comprometer até mesmo a capacidade de tais jovens em serem leitores. Fatos ocorridos hoje no grupo “Escritores ajudando outros escritores”, no Facebook me mostraram que se certo tipo de […]
Yuri e Natasha
Enquanto pesquisava sobre música soviética, em relação àquele post maluquinho sobre a música do jogo Super Mario World ter sido baseada no Hino da União Soviética, fui tendo contato com o universo musical comunista e entendendo como era sufocante a vida cultural então. Certamente nem eu e nem você gostaríamos de viver aquilo. Imaginemos então o nosso herói, o Yuri, um exímio guitarrista, que estudou guitarra clássica no conservatório e atravessou a adolescência ouvindo discos contrabandeados de Black Sabbath, Beatles, Bee Gees, Pink Floyd e […]
A Pessoa Amada
Rodrigo mirou Amanda nos olhos com uma fúria que ela ainda não conhecia. Mas em vez de um tapa ou de um grito ele derramou uma solitária lágrima enquanto apertava na mão um inimigo imaginário, com tanta força que as unhas feriram a palma e os músculos retesados demais começaram a doer. — Fica assim, então, Amanda. — Você vai se arrepender, Rodrigo. Não faça isso comigo. — Não me arrependerei, Amanda. Nada me fará arrepender porque eu acabei de ver que não poderia mais […]
O Preço da Passagem [3]
Não percebi quantos dias passei naquele lugar. Dizem-me que foram cinco. Nos primeiros dois ou três o homem do quepe tentou extrair de mim alguma informação sobre as pessoas com quem estivesse envolvido. Mas de alguma forma, segundo consta dos relatórios a que hoje tenho acesso, graças ao habeas data, eu apenas circulava em torno da ideia de ter entrado em algum barco em companhia da falecida Jurema, de ter saído sozinho e a deixado lá. Assinado um tal Tenente Cavalcanti.
O Preço da Passagem [2]
Tardou ainda por algum tempo incontável, mas não demasiado que nos desesperasse. Soou uma outra buzina de navio indo para o mesmo lado do primeiro. Ouvimos o já conhecido chapinhar de pás, sentimos o farfalhar das roupas da multidão, talvez ansiosa, acendeu-se a trêmula luz vermelha de uma lanterna e o batel encalhou na areia. Desceu o barqueiro vestido da mesma maneira monacal que os anteriores, o rosto recoberto pela sombra de uma dobra de tecido — e dentro dela um brilho desagradavelmente avermelhado e solitário.
O Preço da Passagem [1]
A última coisa que vi na noite escura de 26 de abril de 1967 foram luzes azuis e vermelhas no retrovisor. “Malditos milicos, nos acharam!” — pensei e acelerei na vã esperança de fugir, mas logo perdi o controle em uma curva fechada da estrada para Araruama. Jurema gritou e se encolheu, o carro atingiu a sebe com um baque e um farfalho, tudo muito rápido, e caímos pela ribanceira. Apenas tive tempo de pensar que muitos anos depois da ditadura talvez nos considerassem mártires estudantis e dessem indenizações a nossas famílias. A ironia disso me fez suportar tudo sorrindo, enquanto o rádio do Aero Willys tocava Beatles rumo ao abismo: *She’s got a ticket to ri-i-i-de, but she don’t care…*
A Serpente com Asas
Dedicado +Félix MaranganhaConfesso que tive durante muito tempo uma certa resistência preconceituosa contra a tatuagem. Coisa de marinheiros, de presidiários, de maconheiros, de nefelibatas, de mafiosos japoneses que amputam os próprios dedos. Nada que caiba no quadrado perfeito em que inscrevo minhas opiniões. O tempo, porém, foi me educando mais a respeito do tema e eu fui percebendo que há tatuagens e tatuagens… Algumas eu posso apensa desconsiderar, outras são realmente desprezíveis, algumas eu devo temer e a maioria é simplesmente sem sentido.
Guardai-nos do Mal
Prólogo para um romance de ficção científica iniciado em 1999, que eu nunca procurei terminar porque descobri que J.G. Ballard já havia escrito uma história parecida demais. As ruas são perigosas. Sair de casa envolve sempre riscos. Por isso procuramos fortalezas, compartimentos isolados para nossos sonhos estanques. Moro em um edifício preparado para isso. Nele moram comigo cerca de mil pessoas, mais ou menos, todas em apartamentos parecidos, de duas ou três peças. Moramos aqui há mais de quinze anos e mesmo depois aqui ainda […]