Nenhuma atividade humana me parece menos adequada ao relaxamento do que pescar. Dizem que é bom para enfrentar o nervosismo, mas só se você quiser enfrentá-lo num ringue de artes marciais. Pescar de vara, anzol e linha é algo que só é concebível se você já sai de casa completamente relaxado, sem sombra alguma de nervosismo. Começa pelo fato de que — ao contrário de ioga, meditação ou drogas — pescar envolve um longo e demorado deslocamento até o meio de lugar nenhum onde os […]
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A Virgem do Sabá
Jovita embalava a menina nos braços e Jerônimo as contemplava, entre embevecido e desconfiado. Lembrou da noite em que a conhecera, não teve receios nem remorsos — sentiu-se, na verdade, cheio de orgulho de ter sido tão homem e recostou na cama, arfando o peito como se os pulmões inflassem dentro de uma estreita gaiola enferrujada e dezenas de navalhas subissem com a respiração. Fechou os olhos, ignorou o cheiro dos remédios e dos chás, e sentiu-se de novo na noite da Serra dos Caramonos.[…]
Tempo de Semear, Tempo de Colher
Estas montanhas têm uma história, desde os tempos dos índios, desde antes do primeiro português cortar a primeira árvore. Eles vieram, viveram, morreram, viram o mal que havia e se foram, ficaram apenas alguns pobres puris isolados, entocados quase como bichos. Vieram os emboabas a caminho das minas, tentaram fixar-se aqui, mas não ficou nenhuma vila, queimaram todas as casas, sumiram no tempo como se nunca tivessem pousado, e a estrada real passou ao largo.
Em Nome dos Mortos
A Zona da Mata Mineira vive hoje uma crise – humana, econômica e ecológica. Por toda parte onde se vá, encontramos a descaracterização cultural, a perda das tradições orais, o esquecimento do artesanato (e da própria história) e, mais grave que tudo, uma absurda destruição da natureza que, de tão arraigada, deixou de significar apenas a remoção da vegetação nativa e agora está chegando à remoção do próprio solo e das montanhas: percorrendo a região vemos morros pelados, terra aparente, erosões, cursos d’água assoreados. A […]
Morros Pelados, Corações Ressecados
Hoje estive visitando o sítio de meu pai, em Itamarati de Minas. A viagem foi deprimente, não só porque meu velho não anda muito bem de saúde, mas também porque a natureza não está. Dói-me ver tantos morros pelados, a terra exausta de sucessivos incêndios e descuido, revelando-se como derme escarificada, vermelha entre os tufos secos de capim. Dói-me ver tantos topos de morros calvos pela ação estúpida do homem, que hoje pensa em depredar rapidamente antes que o governo queira proteger, tal como o […]
Coisas de Minha Terra
Apontamentos avulsos e incompletos encontrados datilografados sobre o verso de páginas contendo alguns poemas. Tanto os poemas quanto esses apontamentos haviam desaparecido de minha lembrança. A data (dos poemas) é 1994, a destes apontamentos deve ser um pouco depois (um ano, no máximo). Trata-se aqui do texto mais antigo cuja forma original não tem influência alguma de revisões posteriores. Uma verdadeira relíquia da época em que eu ainda estava aprendendo a tentar escrever. Mais do que isso, parecem ser apontamentos para um glossário que ficaria […]
Velocípede
Uma semelhança entre a realidade e sonho é que as duas coisas não tem começo. Da mesma forma como não nos recordamos das primeiras cenas de um sonho, tampouco nos recordamos das primerias coisas que vimos, sentimos, cheiramos, bebemos, pensamos. Cada um de nós vive como em um interminável sonho, do qual talvez acordemos um dia bêbados do cansaço da noite. E se morrer em meu sonho, o que acontecerá comigo na invisível cama na qual, calmamente, eu repouso? Eu não sei exatamente quem sou. […]
Manézim, o Lacônico
Manézim era a maior preocupação dos pais. Já tinha quatro ano o moleque e não falava nada ainda, só ficava quieto no seu canto com os brinquedos. Mas ele tinha um jeito assim estranho de olhar. Mirava nas pessoas os seus oinhos e abria um pouco a boca, como se tivesse bebendo o que falavam. Mas naquele tempo a gente pobre da roça não tinha muito recurso de médico, então o tempo ia passando e Manézim não falava e a família só se preocupava. Era […]
O Lobisomem Brasileiro
Já que ontem eu escrevi sobre a mula sem cabeça, resolvi aproveitar o embalo, enquanto os dados ainda estão frescos na memória, e escrever sobre o lobisomem, com que ela possui na tradição luso-brasileira, uma relação muito próxima. O lobisomem luso-brasileiro não é o mesmo lobisomem que é visto nos filmes de terror americanos e que passou a fazer parte da tradição literária europeia. Na cultura pop de hoje a comparação mais próxima que se possa fazer com ele seja a do professor Lupin, da […]
Mula Sem Cabeça
A mula sem cabeça é um mito de origem ibérica que existe por quase todo o território nacional, e também por toda a América Hispânica (embora com menos intensidade). Um dos mitos mais ricos e complexos de nossa tradição, é também um dos mais internamente coerentes: é possível explicá-lo de forma coesa, do princípio ao fim, sob o prisma da história das ideias: essencialmente falando, a mula sem cabeça é um mito que pretende inculcar na mulher a submissão ao homem através do casamento. A […]