Há uma teoria segundo a qual o brasileiro urbano de classe média de antigamente era embalado, desde o útero da mãe, pelo barulho de um motor de combustão interna. Quando nascia, o aroma de lubrificantes e combustíveis se impregnava em suas narinas com a mesma intensidade do cheiro materno. Quando aprendia a falar, desde cedo entendia, pelas conversas dos mais velhos, que o automóvel seria um membro da família. Não é nada surpreendente que a vida sobre rodas seja, fosse desde há muito tempo, um […]
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Aquele que eu não fui
John me ligou da Austrália através dos oceanos. “Como está?” — ele me perguntou numa voz tão sonolenta quanto a minha. Eu resmunguei que não sabia, e estava tão confuso que não consegui lhe explicar que não o reconhecera, mas que, sim, sabia como estava. Ele riu de mim e começou a metralhar uma história sobre voltar para o Brasil em breve. Então o reconheci. “Caralho! John!” “Não tenho grana para falar durante muito tempo. Passa-me teu email, um celular, qualquer coisa.” “Tá, eu passo.” — Rapidamente […]
Antes Que Ele Falasse…
Ah, o velho “abóbora”, nascido em 1982 em São Bernardo do Campo e pintado de verde-claro por fora, forrado de vinil e napa por dentro. O cheiro dos bancos de vinil era inigualável, uma mistura de mofo, pêlo de morcego e perfume entranhado de antigos passageiros. Inesquecível lata-velha com aquele buraco no chão do lado do carona, onde certa vez enfiei o pé durante um exercício romântico. O carro em que era impossível fazer baliza porque só tinha retrovisor de um lado. Aquele carrinho de […]
A Persistência
Minhas lista de links chamou-me a atenção hoje pela coincidência de quase todos os membros dela, exceto o infatigável Sérgio Ferrari, do blog “Astro Miau”, estarem encerrando as atividades. Félix Maraganha já havia abandonado a literatura há cerca de um ano, em um episódio triste, que incluiu jogar no lixo todos os seus originais inéditos e os exemplares de suas obras publicadas. Episódio de que não restou registro porque agora o seu “Calango Abstrato” é um blogue privado. Felipe Holloway não atualiza o “Estou numa […]
Por Causa do Mau Tempo
Fechou-se o céu e eu me sentei para lembrar, ouvindo a água calma pipocando impulsos grossos no papel surdo que esqueci debaixo da goteira. Em algum lugar Jacinto se despede, insípido como consegue, e Fabiana está em casa retocando unhas e atormentando os pelos. Todos esperam que esteja um dia lindo quando o sol cantar nos galhos e as asas dos anjinhos ruflarem pela igreja, assustadas com o arrastar arrítimico do zelo apressado. Amanhã se casarão depois de dar-se as mãos por tanto tempo que […]
Os Melhores Momentos Acontecem Depois
Fernando Pessoa escreveu em 1914 um poema chamado “Uns Versos Quaisquer”, que pode ser interpretado como um breve ensaio sobre a saudade, ou ainda melhor, sobre a “saudade falsa”, este sentimento que tanto faz parte da minha poesia (nem tanto da dele). Vive o momento com saudade dele Já ao vivê-lo… Barcas vazias, sempre nos impele Como a um solto cabelo Um vento para longe, e não sabemos, Ao viver, que sentimos ou queremos. A ideia de que o momento já deva ser vivido com […]
Marina
Marina leva a xícara aos lábios e, ao vê-los refletidos no café negro, se despe da dureza que vestiu nos últimos meses. “Que falta me faz a Luísa” — confessa em voz alta, sabendo que não há ninguém perto para ouvir. O último diário de Luísa jaz sobre a mesa do café, ainda lacrado. Justamente neste momento Marina está refletindo sobre o que ainda não leu, enquanto lembra o que viveram. Um mês da morte de Luísa. A gente não se acostuma com isso, acho […]
Pequenas Manias Inofensivas
Frequentemente me pego repetindo em cochicho o que acabei de dizer em voz alta, se a pessoa a quem disse não continua por perto. Porque se ela estiver, então, costumo dizer a mesma coisa duas vezes, com poucos minutos de intervalo, para enfatizar o que estou dizendo. Geralmente uso uma frase para conectar, e então repito o que havia dito antes, com palavras ligeiramente diferentes, com poucos minutos de intervalo, só para enfatizar o que dizia.
Nuvens
O homem triste vinha caminhando pela rua, com seu pesado terno de dois mil reais ao mês e sua lista de responsabilidades para penar. Consultava mentalmente em qual próxima casa teria de incomodar quando ouviu as crianças sentadas na calçada, curtindo o vento fresco do fim de tarde:
Mudança de Vocabulário
Eu juro Sou de um tempo passado, em que cupcake se chamava bolinho, blush se chamava ruge, van era furgão sale era liquidação. Nunca me ocorreu chamar meu amor de love, nem referência de benchmark, nem interessado em stakeholder, nem artigo de paper e nem discurso de keynote. Hoje vivo perdido comendo cigarrette em vez de enroladinho. Nunca mais vi jogarem bola ao cesto e nem futebol de salão. Acho estranho quando chamam stickers de adesivos e entrega em domicílio de delivery. Especialmente se houver […]