Gosto de Cidades Pequenas

A simples sensação de estar em uma cidade muito grande me assusta um pouco. Juiz de Fora é a maior cidade onde consigo me locomover sem ser acometido pelo pavor existencialista de subitamente deixar de existir, graças a uma facada no escuro, um carro bomba ou uma bala perdida. Cidades grandes têm trânsito confuso, motoristas nervosos que, do nada, podem descer de seus carros brandidos símbolos fálicos e ejaculando em projetis sua impotência diante do imenso pé da cidade, que os pisa e achata contra […]

Assombrações

A memória especial de a ter beijado um dia se apagou de mim sem pressa e sem pensar. Rostos pálidos pintados em paredes brancas, fadas esqueléticas que voam nuas pelo ar — o passado é só mais uma entrega que faltou. Eu podia ter perdido toda esta carne um dia, e podia ter vendido até a vida desta casa, mas só deixei levarem os meus sonhos embora em embrulhos secos, cortados em pedaços — se eu esquecesse tudo em que cria então talvez eu poderia […]

Uma Noite em 1993

Era 1993 e eu estava voltando da faculdade, tarde da noite. Havia um burburinho de flamenguistas em um bar assistindo Boca x Flamengo. Os argentinos ganhavam por 1 x 0. Aproximei-me receoso para ver o placar e justo quando cheguei os argentinos marcaram. Gritei Goooooooooooooool e de repente me vi cercado de olhares ferozes. Algumas pessoas se levantavam da cadeira. Sebo nas canelas. Mas era difícil correr gritando— Felizmente sobrevivi para contar a história, e sobrevivi feliz!

O Tempo no Caminho

O velho relógio bate nove e quinze no peito sorrindo para um piano que tocou meu lábio como o som áspero da morte que vem perto. Como ando provisoriamente vivo, e vivo reto, procuro um desvio que retarde a sorte certa que aguarda os relógios, lábios e pianos. Quando achar um caminho errado destes, escondo minutos da espera que não quero. Aqui comigo nesta sombra, nesta névoa, a ilusão feliz de que tudo ainda é e nada era.

Saudades

Eu a ouvi ontem à noite e senti aquele punhal de novo em minha carne, tive saudades suas como tenho saudades dos pedaços que fui perdendo.1 Tenho saudades de ter sido sozinho, de ter atravessado sábados sofrendo. Aquele silêncio antigo me faz falta porque há dias em que não quero falar e outros em que precisava de fugir, achar um lugar entre as montanhas para poder me distrair. Tenho saudades de quem me enganou, quanto maior a mentira, maior a dor, maior a falta, poderia […]

Coisas do Baú: Camel em Cataguases e “José Geraldo, Repórter por um Dia”

Este post foi escrito originalmente no sábado, mas agendado para hoje, domingo, para não encavalar com o outro que já havia sido escrito ontem. Mas tive de escrevê-lo logo após porque o assunto era urgente, não podia ficar para hora melhor, não havia hora melhor. Ontem, sábado, assisti de novo uma peça perdida de meu passado: o dia em que entrevistei Andy Latimer. Vamos por partes. Andy Latimer, para quem entende de rock progressivo, é um dos nomes mais queridos e importantes da história do […]

Morros Pelados, Corações Ressecados

Hoje estive visitando o sítio de meu pai, em Itamarati de Minas. A viagem foi deprimente, não só porque meu velho não anda muito bem de saúde, mas também porque a natureza não está. Dói-me ver tantos morros pelados, a terra exausta de sucessivos incêndios e descuido, revelando-se como derme escarificada, vermelha entre os tufos secos de capim. Dói-me ver tantos topos de morros calvos pela ação estúpida do homem, que hoje pensa em depredar rapidamente antes que o governo queira proteger, tal como o […]

Para Escrever uma Autobiografia

Estávamos conversando despreocupadamente entre uma cerveja e outra quando o meu amigo me olhou, pensativamente, e disse, com a gravidade de quem profere um aforisma de Nietzsche:  — Acredito que você precisa começar a pensar em escrever a sua autobiografia. A frase, assim dita, me pegou de surpresa. Nunca pensara em tal possibilidade, muito embora, na imaginação das pessoas da família e da maioria dos amigos, todas as histórias que escrevo são autobiográficas — o que prova que sou mesmo louco. — Não posso, Flávio. A minha […]

Descobri que sou um caipira

Quando eu era criança, ser chamado “caipira” era praticamente um xingamento. Equivalia a ser chamado de “ignorante”, “abobalhado” ou “ingênuo”. Piadas de caipira eram muito mais fortes que as de português. Talvez isso se explique pelo fato de que nós, os habitantes da Zona da Mata de Minas Gerais sermos descendentes de colonos provenientes, principalmente, das terras fluminenses, gente mais ligada à “Corte” e ao exterior. Nós da Zona da Mata de Minas Gerais vivíamos de costas para Belo Horizonte e o resto do estado, […]

Pensamentos Sobre o Silêncio

Nenhuma música até hoje escrita faz jus à riqueza do silêncio. As notas musicais podem ser capazes de evocar os mais estranhos sentimentos, mas não conseguem oferecer ao ouvido e à alma a sensação de delicioso esvaziamento que só se obtem na profundidade do silêncio. Afirmo isso a partir da experiência de ser um raro privilegiado: não conheço muitas pessoas que possam, como eu, orgulhar-se da experiência do silêncio real. Não, não me diga que você já o conseguiu. Pelo menos não antes de refletir […]