Não me acusem de saber muito, só porque tenho as mãos lisas. Não é que eu estudei a fundo, é que eu tenho tido outra vida. Porém não pensem que ignoro tudo que um homem deve. Minha vida inteira eu estudo, para algo certamente serve. Uns saem de casa, certos do saber e acham modos de moldar o mundo ao que Deus lhes disse antes. Eu saí ignorante e andei entre abismos e vazios. Quando cheguei aqui me estranharam. Não porque ensinasse, mas porque sonhava. […]
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Confissões de um Sonhador
Sou um dos sonhadores derradeiros, talvez o último a fazer sentido, embora seja o que menos me interesse e o que tem menos horas ou motivos. Tenho tentado dormir pouco, mas as imagens me alcançam acordado: lembranças de lugares a que não fui, pessoas que nunca conheci. Sou do tipo pior dos sonhadores, os que dedicam seu sonhar unicamente a espécies de sonhos que sempre fenecem diante do dia claro, a espécies que só sobrevivem no silêncio da cama e nem são perfeitamente transpostas ao […]
A Noite com Johnny Walker
Uma das noites que lembro com mais carinho é uma noite perdida no tempo, entre 1990 ou pouco depois, em que houve uma noite de música no teatro do Colégio, sob o pretexto de comemorar o Halloween — essa absurda tradição anglo-saxônica que nosso servilismo nos está levando a adotar. Pouco lembro do que aconteceu naquela noite, exceto que tocaram muito da boa estirpe de uma outra absurda tradição anglo-saxônica que nem o meu pretenso nacionalismo pôde evitar que eu adotasse — o rock’n’roll. Depois […]
O Almoço de Um Solteiro
Cheguei em casa sentindo-me esquisito hoje e preciso ouvir uma canção bem triste, para arruinar meus nervos e me pôr deitado tragicamente em minha cama a lamentar minha sorte errante e as trevas que se impõem contra mim. Diante do fogão ainda está a poça de gordura que entornei ao preparar o meu almoço de solteiro. Dentro do banheiro a mecha de pêlos que se acumula no ralo de plástico, denunciando que há dias que não o limpo. As paredes acumulam mofo e teias de […]
A Última Noite do Velho Poeta
Vou andando sozinho pela escuridão da noite. Volto para casa com os ouvidos amortecidos e com amargura na boca pela décima vez no mês numa noite morna de outubro ou novembro. Subitamente eu me dou conta de estar imerso num silêncio sibilante e imenso que apenas raros carros cortavam. Com passos duros e pernas doloridas, cruzo a Ponte Nova e subo em direção à praça, onde já quase não há ninguém agora, salvo três fregueses de uma lanchonete comendo cachorros quentes e um bêbado gritando […]
O Flautista
Amaralina tinha sido uma cidadezinha qualquer, com casas entre bananeiras, mulheres entre laranjeiras, pomares e amores para quem quer que soubesse vivê-los. Seguia sua vida besta bem devagar, entre montanhas bem altas, rios suficientemente traiçoeiros e solo providencialmente pobre de qualquer coisa que o bicho-homem pudesse querer arrancar à força de máquinas e dor. A gente de lá era arredia e desconfiada de estranhos. Colonos tricentenários, muito pouco acostumados a quem não tivesse o falar líquido que eles tinham aprendido com os índios e os […]
História de Amor Sem Amor
Augusta estava deitada quieta, nua, olhando para o teto, com o suor do corpo ainda evaporando após o amor, aquela sensação fresca, aquela preguiça, aquele formigamento… — Venha morar comigo. Assim, de repente, foi que Humberto pôs no ar a frase, solta e súbita. Mesmo a princípio se sentindo agredida, ela reagiu com moderação. — Não é assim, Humberto. Não faz ainda nem cinco meses que a gente se conheceu. — Por que não? Cinco meses me bastaram para querer você. Não devemos nada a […]
Sobre Cães e Esses Bichos Esquisitos, Seus Donos
Estávamos bebendo cerveja e jogando conversa fora. Assunto vai e assunto vem, acabamos chegando a falar sobre a dubiedade do caráter humano. Aí algum humorista presente à mesa em dia de péssimo humor atalhou: — O ser humano também devia ter cauda. Assim ficaria mais fácil identificar o prazer, a alegria, a dor, a contrariedade ou o cansaço. Não ia ser tão frequente esse sofrimento de decepcionar ao outro por não saber como reagir. — Quem tem cauda é cachorro, ó João. Deixe de ser besta porque […]
Por Causa de Valéria
Por causa de Valéria estou perdido. Agora pouco me resta fazer, a não ser ficar sentado à janela esperando que alguma coisa no horizonte me responda qual o sentido de minha vinda ao mundo. Não tenho mais amigos, a casa de meus pais está longe e é apenas uma questão de tempo que seja privado até mesmo de minha liberdade, único bem que me restou.1 Tenho arrependimento em mim. Não só por estar em vias de perder tudo, mas também por não ter sabido transformar […]
Amigos, Amigos
Filipe achou-se inconsolável na semana seguinte à mudança de Amadeu para Janaúba. Acho estranho ter um sentimento assim então. Porque no dia que soubera da promoção do amigo, condicionada à transferência, aconselhara-o positivamente no sentido de aceitar. Ajudara-o a fazer as malas e mantivera vivo o seu entusiasmo nos momentos de incerteza em que pensava na distância da família e dos amigos e na necessidade de refazer tudo em uma cidade estranha. Não pensara que sentiria tanta e tão súbita saudade. Haviam sido sete anos […]