Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

A Morte de uma Pessoa Admirada

Publicado em: 28/10/2008

Mentir se tornou tão essencial, em grande parte graças à facilidade com que se mente impunemente, que até mesmo o sucesso se tornou uma mentira. Não, não quero aqui dizer que o sucesso seja uma ilusão, mas que as pessoas de sucesso, muitas vezes, não o são. A difusão da mentira por todas as instâncias da vida chega a trazer desvantagens a quem resolve agir de forma honesta, tal como os alunos que realmente fazem suas redações que, não é raro, recebem notas menores do que aqueles que as colam da Internet ou então pedem a estranhos que as façam. A mentira tem mais resultados do que a sinceridade porque não é possível premeditar a verdade adequada ao contexto.

Diante deste estado de coisas, resistir à tentação de mentir se torna uma obrigação moral, uma forma de resistência à degradação dos valores, à erosão daquilo que nossos pais chamavam de “vergonha na cara”. Resistir, porém, se torna o caminho para o fracasso.

Aleixo não tem “vergonha na cara” nem projetos seus: tem um salário e o hábito de humilhar os que ganham menos. Prefere pisar em quem prefere fracassos totais ou parciais enquanto se esmera em evitar realizar qualquer coisa arriscada em que possa fracassar. Faz isso porque não suporta pessoas que realizam coisas: sucesso para ele é status que se herda, não situação que se adquire.

Não tem ambições, mas cobiças estruturadas, soluções rápidas e mágicas que, no fundo, ocultam algo mais do que mera incompetência: a inapetência pelo aprendizado. Se fosse possível viver sem ter aprendido a respirar, talvez Aleixo gostasse. Sua posição lhe permitia um orgulho estranho, compartilhado com raros e enojados amigos: “Em toda esta vida, gente boa, eu nunca tive a obrigação de fazer nada por ninguém.”

Sua vida inteira é baseada em mentiras. Colou na prova durante a escola primária, “passou” em um vestibular fajuto de uma faculdade privada desesperada por alunos, foi aprovado graças a manter em dia o carnê das prestações da compra do diploma. Depois que obteve uma graduação rasa qualquer em um curso de “negócios”, caracterizado por pouco rigor acadêmico, passou a colecionar especializações inúteis cursadas em fins-de-semana ou à distância e usou seus belos certificados para rechear um currículo sempre superior à sua competência.

Depois de fracassar na gestão de seu próprio negócio, tornou-se consultor de mercado e “coach” de investimentos. Acabou obtendo contratos de assessoria para um órgão público durante o mandato de seu pai como prefeito. Quando o fato foi denunciado por uma CPI, deixou o ramo de consultoria e “passou” num concurso para assessor parlamentar na Assembleia Legislativa e logo obteve a indicação de uma diretoria de estatal. Foi nessa época em que se casou com a rica e insana filha de um milionário paulista. Para manter o casamento, teve de aceitar as orgias da moça e batizar os filhos do casal sem questionar, mas graças aos chifres estoicamente suportados se tornou membro do conselho diretor da empresa do sogro, cargo em que se esmerou em retiradas pro-labore.

Segundo a avaliação da maioria dos brasileiros, Aleixo, que esta semana chegou aos 40 anos, é um exemplo de sucesso, porque a mentira se tornou uma verdadeira obsessão de nossa era. Pervade o poder, as relações, as artes, tudo, mas principalmente a imprensa, onde Aleixo pontifica com seus ternos bem cortados, sua língua rápida e a facilidade com que opina sobre diversos assuntos, graças ao fato de não ser especialista em nenhum. Rei em terra de cego, é míope e tem um olho só.

Sob a ótica dos valores apressados de nossa época, Aleixo quase se aceita como gênio da raça, capaz de tudo, menos ser genuíno. Esta semana, porém, Aleixo não se suportou mais e acabou se declarando ao office-boy que lhe servia o cafezinho.

Aliás, Aleixo já se diferenciava dos demais diretores, e atraía comentários, por não ter uma secretária escultural nem ter escolhido uma copeira com cara de tarada.

Estavam os dois sozinhos no escritório. O garoto tinha jeitão efeminado e delicado, andava sempre bem vestido e penteado. Isso bastou para que Aleixo o entendesse como “fruta” e o tivesse vigiado, apaixonadamente, por quase três meses antes de, enfim, criar coragem.

— O garoto conhecer Parati?

— Não, senhor. Nunca fui lá.

— Tenho um lugar ali, onde às vezes me reúno com amigos. Quando estiver a fim, posso dar um jeito de lhe encaixar.

Infelizmente para Aleixo as coisas não saíram como previsto: Naninho recuou dois passos ao ouvir isso e se conteve, entre assustado e receoso. Saiu da sala rapidamente.

Aleixo o demitiu, claro, inventou uma justa causa qualquer que maculasse o currículo do rapaz e lhe retirasse qualquer credibilidade, para que nunca qualquer indiscrição sua fosse levada a sério.

No entanto, a dor da saudade foi mais forte e Aleixo resolveu perdoar tudo que Naninho não fizera. Sacou vinte mil reais e foi até o distante subúrbio onde morava o rapaz de olhos grandes e jeito suave que lhe roubara o coração. Pagaria a indenização pelo emprego e talvez conseguisse, afinal, levá-lo a Parati.

Ainda a caminho, passou-lhe uma mensagem de texto, quase ousada:

Caro Alexandre. Quero ter a oportunidade de me desculpar pelo que houve. Foi um grande mal-entendido e gostaria de lhe compensar pela perda do emprego.

Estou a caminho, devo chegar dentro de quarenta minutos. Estarei à sua espera em meu carro. Você sabe qual é.

Poderia me dar essa chance.

Era o máximo a que se podia permitir. Qualquer coisa, diria que tivera o telefone clonado. Mas os vinte mil reais estavam no bolso, e o coração tamborilava como um tarol abafado, cada vez mais rápido.

Ao parar à porta viu-o saindo de casa de mãos dadas com uma morena de um metro e noventa de altura, aos beijos e abraços. Ambos usavam uniformes de artes marciais, ele com faixa marrom, ela com a vermelha. Andavam pela rua descuidadamente, aos beijos e trocando olhares.

Aleixo não suportou a dor de ver a cena e voltou para a firma quase aos prantos, mesmo sendo já noite. Trancou-se no escritório e tomou uma dose cavalar de veneno e se atirou do oitavo andar para ter certeza de não escapar.

Morreu ainda na calçada, infelizmente antes que pudesse ver a morena de um metro e noventa fazendo ponto na esquina.

Arquivado em: crônicas
Assuntos: morte sinopses