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Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Novos Céus, Nova Terra

Publicado em: 17/10/2011

Jesus desceu de seu alto trono na cidade de Jerusalém, a Nova Jerusalém, noiva de Deus, calçou as suas antigas sandálias de pescador galileu e saiu a caminhar pelas ruas pavimentadas de jaspe e ônix, ocultando sua glória em um manto de humildade.

Por toda a cidade reinava um clima de eterna festa e todos os cidadãos iam vestidos à mesma maneira e com idêntico corte de cabelo. Todos levavam nos rostos uniformizados o brilho de um mesmo sorriso muito limpos, de dentes muito alvos.

Não havia nenhuma imundície no chão ou nas paredes, porque lá não mais se comia e nem mais se excretava, e todos os animais imundos que chafurdam na sujeira haviam sido deixados de fora dos Portões da ressurreição. Pairava sempre pelo ar os aromas suaves de folhas de cedro e de azeitonas maduras.

Mas Jesus não se sentia bem, enojava-se daquele perfume leve, que embebia a tudo e todos. Em meio ao jorro terno de alegria inócua e inocentada, sentia um deslocamento indefínvel. Eram passadas setenta e sete semanas desde o Triunfo eterno contra Satanás e seus demônios e, desde então, nada mais acontecera; nada de importante, pelo menos. Talvez por causa de todo esse tédio e sua previsão de eternidade Jesus começou a se lembrar com saudade, muitos milhares de anos, aspectos quase apagados de sua existência na carne, coisas simples e ternas, como uma taça de vinho morno, o pão ainda quente, uma brisa a arrulhar às margens do lago à tarde, o perfume do cabelo preto e longo de uma certa Maria Madalena.

Ela certamente estava na Nova Jerusalém, entre as milhares de pessoas indistinguíveis e felizes que Ele ali pusera. Difícil era saber onde estaria, perdida entre tantas faces iluminadas pela Glória, igualadas na bem-aventurança, com suas memórias terraplenadas e suas vestes lavadas no sangue do Cordeiro. No novo mundo não havia porque possuir uma casas, porque não se dormia, não se preparava alimento e nem se fazia mais o amor. Sendo todos eram angélicos e ausentes de carências, tudo que podiam fazer; além de contemplar o amor a Javé, Eterno e Todo Poderoso; era perambular numa imensa e instável multidão. Nem haveria porque haver a própria cidade, ostentação sem sentido e sem finalidade, pensava Jesus, metáfora gasta da existência terminada, eis que nem a carne nem o sangue herdaram o Reino. Puros e inócuos, os que habitavam no Seio de Javé não sabiam o que era choro e nem sabiam quem haviam sido. Tudo que ainda sabiam era ser parte daquela massa que oscilava, o grande mar de cabeças pelas ruas de uma cidade sem paredes.

A caminho de onde tentaria encontrar Maria Madalena, Jesus se deparou com Zaqueu, em meio a um bando de seres que parecia à procura de guma porta. Aquele que tinha sido o judeu baixinho e de pequeninas preocupações estava tão mudado que ninguém o teria reconhecido, somente Aquele que era uno com o Pai teria sido capaz de separá-lo de diversos outros que pareciam ser e tinham se tornado iguais.

— Zaqueu, amigo, há quanto tempo!?

— Quem sois vós? — indagou um belo e insípido ser.

— Sou alguém que no mundo tu conheceste como mestre e que a ti chamou de amigo.

Zaqueu fitou o rosto de Jesus com olhos inexpressivos e não o reconheceu. Jesus, mesmo conhecendo o Motivo, ficou triste ao perceber, outra vez, que o Enxugamento de Toda Lágrima trazia a perda da lembrança do instante ou circunstância em que fora chorada. Das de Zaqueu, muitas eram daquele dia quando o povo o humilhara por sua altura e ele não teria podido ver a Jesus quando passava.

Havia sido apagada a memória de todos os resgatados, para que pudessem ser limpos de todo pranto e de toda lágrima. Somente assim, sem lembranças, viveriam isentos de toda dúvida e sem motivo de sofrimento. Somente o esquecimento lhes assegurava a liberdade para eternamente adorar a Deus, sem culpa e sem a preocupação pelos que não estavam. Se não esquecessem, teriam algum amigo de quem sentir falta, alguém a quem tivesse amado sinceramente. Jesus o sabia muito bem, porque sua mão firmara a Antiga Lei, que os que ali faltavam certamente se achariam na Fornalha de Fogo, com o Dragão que era chamado de Satanás, ou de Lúcifer.

Nesse momento Jesus se esqueceu de Madalena. De que adiantava encontrá-la naquele estado vegetal e ambulante? Seria somente uma ilusão e não lhe saciaria as saudades. Ergueu os olhos ao céu e acompanhou, do zênite ao horizonte, a listra escura do fumo que subia de Geena e se dissolvia rapidamente no azul. O poço imenso de piche e de betume, de fogo e enxofre. Era onde os corpos e almas dos Danados sofreriam a eterna tortura e as preces não seriam mais ouvidas.

Único ser na Nova Jerusalém que não tivera o coração limpo de toda lágrima… e lembrança, Jesus teve um calafrio ao pensar no inominável horror que teria lugar no fim do penacho escuro de fumaça que brilhava da direção de onde nascia o sol, como um dia brilhara diante do acampamento israelita um outro, que guiava pelo deserto. Se um pilar anterior levara o povo até a Terra Prometida, aonde levaria aquele, até mais brilhante?

Certamente alguns dos que lá estavam tinham feito por merecer certo castigo grave. Alguns haviam sido piores que o próprio Lúcifer e os demônios. Jesus ainda lembrava como, no começo, os anjos caídos tinham asco daquelas almas que baixavam à sua morada provisória, como elas os corromperam. Porém havia lá muitos condenados por razões pequenas, ladrões de galinhas na Lei de Javé. Tantos caprichos da lei que ninguém nunca notara e tanta regra esquecida pela humanidade. Hábitos alimentares, festivais do calendário e preferências sexuais que não tinham mais nenhum sentido no estado angélico. Muitos lá estavam por apenas por não terem amado a Deus com suficiente abandono. Os mornos, como se diz. Por outro lado, ainda incomodava a Jesus a presença na morada do Pai, na Nova Jerusalém, de demasiados trabalhadores da undécima hora, que a muito custo tinham sido lavados.

A breve conversa com Zaqueu o fizera esquecer Madalena. Teria sido inútil encontrá-la, de qualquer maneira, pois ela já não se lembraria dos antigos dias às margens do Genesaré, comendo figos frescos com mel e ouvindo as belas fábulas que um Jesus de barba ainda não cerrada lhe contava. Entediado, voltou ao seu Trono de Glória, tentando se divertir ainda com o ritual preciso das louvações dos querubins, dos serafins e dos vinte e quatro anciões. Por um momento conseguiu, mas então, dentro do mar de vidro, surgiu uma sombra que lhe nublou a mente e o fez pensar de novo no fogo e no enxofre. Quem estaria lá?

Abandonou o trono no meio da louvação dos anjos e santos e se aproximou da janela para observar de novo a coluna negra. Uma lágrima de sangue se formou no seu olho direito ao ver aquela chaga feia a maculava a limpeza perfeita do horizonte da Nova Terra e do Novo Céu.

— Meu Deus, Meu Deus, por que os abandonaste?

Ele perguntou, num cochicho que ribombou através das esferas, rompendo a harmonia da música celeste.

Então a sala foi invadida pela suave fragrância de rosas, que lembrava sua Mãe. Mas era Gabriel, o perdigueiro de Deus, com sua obediência inarredável e persistência imparável. Não era nem necessário que algo fosse dito. Se ele viera, então já se envolvia algo importante, mas Jesus não estava interessado no que quer que ele trouxesse de novidadee. Jesus sempre tivera desconfianças daqueles olhos brancos. Deixou Gabriel a falar com os anciões, pegou para si um par de asas angelicais e foi a flanar pelos ares limpos daquele mundo tocado pela Graça.

Geena, o poço do abismo, o lago de enxofre e de fogo… lugar que assombrara a imaginação dos povos por centenas de séculos ali estava, uma bocarra negra escancarada na face da terra, a cicatriz deixada pela ira divina e que nunca seria fechada.

Aquele rasgo infernal desgraçava a uniformidade do globo novo e belo, recoberta de deleitosos paraísos. Felizmente, para os salvos, não se podia ali chegar senão voando e a eles não era permitido voar — nem sair da Nova Jerusalém.

A disforme fenda vomitava continuamente uma fumarola espessa, com um cheiro forte de carne queimada e de carvão que faria o olho arder, se seres celestiais tivessem olhos. A fumarada no ar pairava pesada e se espalhava com dificuldade, subindo com lentidão e acumulando em torno da cratera da Segunda Queda de Satanás. Parecia que somente um poder sobrenatural conseguia arrancar o pus daquele tumor e esguichá-lo até o espaço, para impedir que aquela pústula gangrenasse o mundo.

Pousado à borda, revestido de seu poder para resistir à forte pestilência emanando da chaga imunda da Terra, Jesus engoliu seco e criou coragem para descer lá. Aquela vez era subversão que o movia, porém Ele ir visitar o lugar era parte do Plano, fosse qual fosse. Era parte ritual semanal de humilhação dos anjos desgraçados e dos que com eles padeciam pela eternidade a culpa por uma efêmera transgressão.

Desceu a pé as trilhas traiçoeiras, a espiralar por dentro da cratera e abaixo em direção ao fundo da Terra. Percorrendo as cenas terríveis e inimagináveis daqueles lugares, lembrou-se do suave aroma das flores de sicômoro na primavera. Com isso, deixou cair outra lágrima e teve saudades de ser só a criança Yehoshua’ bar Yossêph, na Galiléia de tantos milhares de anos antes. Aquela criança que nada ainda sabia da enormidade dos pecados da terra e do céu.

No nono e mais profundo dos abismos encontrou-o. Judas estava nu e carbonizado, sangrava através da pele calcinada, coberta dos odiosos insetos, especialmente criados para habitarem nas profundas cavernas do Inferno.

— Judá, és tu?

— Sim, ainda sou. Apesar de toda a tortura das eras. Não me apagaram as lágrimas, nem as lembranças.

Yehuda’ bar Yonathan, sicário que um dia fora o melhor amigo do menino Yehoshua’ ali estava, acorrentado entre as fezes e os vermes. Mas tentou se recompor, endireitando a espinha por um momento e tentando reter o pranto interminável que estava, sempre, ardendo sem lágrimas em sua face, pois aos condenados à pena extrema não se permite que chorem.

— Que lástima, Judá.

Jesus teve a sensibilidade de mais nada dizer. Aproximou-se e fico em silêncio. Por fim, abraçou-o fraternalmente e disse:

— Como me arrependo de tudo, Judá.

— Não tenho por que me arrepender, Jesus. Nunca soube o que estava fazendo.

As amargas palavras retornaram à mente de Jesus: “…pois não sabem o que fazem.”

O que restava fazer? Enquanto pensava, usou de seus poderes e prerrogativa para sustar, temporariamente, os ardores e dores do amigo, que apareceu ali nos horríveis porões do mundo como um homem quase grisalho, magro e de expressão assustada.

— Não, Jesus. Por que o fazes?

— Porque não suporto ver-te assim.

— E achas que eu suporto ver-me, quando não estás me vendo?

Jesus deixou pender a cabeça, derrotado pela lógica do amigo, que ainda conservava a racionalidade, mesmo depois de longos anos naquelas masmorras impiedosas.

— Um alívio temporário, uma graça de efeito apenas estético e fútil. Tu me tiras de meus grilhões para que não vejas como estou destruído, mas quando me abandonas aqui a estas bestas, e à saudade de dias alegres que vivemos na Terra, o alívio se parece mais com uma tortura porque me devolve a capacidade de entender a enormidade da dor que me aflige sem me matar.

Diferente dos salvos, os Condenados ainda mantinham intacta a lembrança de quem tinham sido, o que só lhes causava mais uma dor, de saudade, para piorar a tristeza de sua sentença. Mas isto ainda lhes permitia ter um pouco de humanidade e assim eram companhias melhores que os alegres tolos que habitavam a Nova Jerusalém, esvaziados de si e condenados a mover-se como as peças de um relógio inexorável, permanentemente louvando o Trono de Javé. Como tantas outras coisas, isso fazia Abba-Pai parecer, às vezes, tão padrasto…

Jesus então afastou o seu poder. As chamas e a lava retomaram seu lugar sobre a pele de Judas, que chiou e estalou à medida que densa crosta de carvões e sangue a cobriu e crestou outra vez. O pobre diabo soluçou a contragosto, tentando segurar as agonias. Tentou dar ao rosto a expressão de uma beatitude que não lhe pertencia. Mas ali, entre as chamas do Abismo, não se pode mais expressar arrependimento e nem angústia moral, é só a dor física que se pode mostrar. No inferno é impossível ter reflexões ou tomar decisões, é como estar eternamente preso a um momento isolado da vida, o pior de todos, é claro.

Jesus, finalmente, se enfadou daquilo, ou não suportava mais. Saiu de lá e foi se sentar sobre o Monte Líbano para observar de longe a água azul-aço do Mediterrâneo e os planaltos secos da sua saudosa Galiléia, agora deserta e vazia, deserto entre os desertos do mundo, dominado de longe por um brilhante cubo dourado com doze portas negras de basalto, que não serviam de entrada nem saída. Por fim, em um momento de inexprimóvel dor e incontida ânsia, ergueu os punhos ao Céu e gemeu:

— Abba-Pai, por que te revelaste mau?

Um silêncio agônico se fez pelo mundo, como se alguém tivesse matado todos os passarinhos e acorrentado o mar. Jesus rasgou suas vestes brancas e quebrou nos joelhos a espada. Por fim, golpeou contra uma pedra com a sua coroa de ouro puro, pedras preciosas e prata de lei. A coroa se partiu, a pedra também.

— Abba-Pai, por que te revelaste injusto?

O silêncio se fez nas esferas e o ar parou como se ninguém no planeta respirasse mais. Então Jesus, descalço, com as vestes rasgadas e os cabelos em desalinho, desceu do Monte Líbano em direção a Jerusalém. Para escândalo dos anjos, feria seus pés divinos nas pedras do caminho, mas isso lhe dava alegria. Por toda a curva do céu os anjos revoavam como abutres vigiando a carniça, mas não ousavam pousar.

Quando chegava à planície de Megido, o escândalo já alcançara a todas as potestades, todos os tronos e querubins e serafins que habitavam na presença do Pai. Gabriel, com uma flamejante espada à destra — a mesma que, um dia, expulsara Adão e Eva do Paraíso — liderava uma hoste trêmula diante dos portões. Vendo a aproximação de Jesus, enviou ao seu encontro um anjo diplomata, para parlamentar.

O anjo veio a caminhar, respeitosamente evitava o voo. Estava vestido para a guerra, como nos tempos do Apocalipse, e Jesus adivinhou que o esperava:

— Diz-me quem o manda!

— Eu venho por ordens de Gabriel!

— Mentes, ou ignoras?

— Não minto nem ignoro, venho por ordens de Gabriel.

— Vens dizer-me o quê?

— Venho indagar de seus propósitos?

— Por acaso o rei deve satisfações a alguém, para entrar na cidade onde tem o seu Trono?

As palavras de Jesus foram pronunciadas com tamanha ira que o anjo sentiu seus joelhos a chocalhar e retrocedeu, empurrado pela glória de Jesus, deixando o chão marcado pelo arrasto de seus calçados.

— Por favor, mestre, por que rompes a harmonia do mundo?

— Porque não há, inocente, nenhuma harmonia no mundo. Agora escolhe se tua espada luta comigo ou contra mim.

O anjo balbuciava as palavras com dificuldade:

— Perdoe-me, mestre, não ouso estar contra o Cordeiro, mas não posso enfrentar as hostes do Céu.

— Tu és fraco, e o teu destino é a desonra.

A um gesto de Jesus, a espada e as asas do anjo desapareceram no pó do deserto. Indefeso e agora inofensivo, aquele anjo de luz por lá ficou a chorar sua desgraça.

— Mestre, não me deixes. Havia harmonia no mundo. Por acaso eram mentira os cânticos de louvor que nos acalentavam a cada noite?

— Eu os conheci e odiei desde o primeiro dia. Porque não há há sinceridade onde não há escolha. Nem amor sem liberdade.

— Vós e o Pai sois um. Como poderia ter surgido desarmonia?

Jesus olhou teve pena da criatura, imagem e semelhança de um efebo andrógino, que chorava, coberto de poeira, sob o brando sol de um mundo incapaz de ferir.

— Aguarda-me

Então olhou para cima, como se quisesse ver Javé surgir entre as nuvens, mas Ele não estava lá. Finalmente chegou a uma das doze idênticas portas, pela primeira vez aberta. Diante dela, Gabriel estava em trajes de luta, gládio e elmo a postos.

— Gabriel, tu que odeias o erro e amas a verdade. %%% Vem comigo para que possamos destruir o engano e suplantar a mentira.

— Não, Jesus. Estou aqui em nome do Pai. Eu ajo por sua vontade e para sua vontade é que eu existo. A vontade que me criou foi a de conservar a ordem no mundo, destruindo e punindo o mal. Sou a espada de Deus e a minha missão é servi-Lo e proter Sua obra.

— Eu e o Pai somos um. Não podes obedecer-lhe sem igualmente obedecer-me.

— Certamente que não. Pois somente os que estão de acordo com o Pai podem ser um com ele. Neste momento, eu e o Pai somos um.

— Então, Gabriel, haverá guerra no Céu outra vez, como já houve outras vezes, e esta será pior, será mais longa e destruirá mais.

Gabriel tomou sua espada à cinta e avançou uma perna sobre o caminho que Jesus manifestara a intenção de tomar. Em vão, pois Ele o afastou com um aceno da mão que fez o anjo recuar sobre a poeira, dizendo:

— Não me confunda com outro Satanás, Gabriel.

— Certamente que não — disse-lhe o anjo, com um sorriso torto na boca. Bem sei que és mais poderoso, mais antigo nos modos do pai e mais determinado a agir segundo o que entendes por certo. Mas igualmente sei que estás sozinho e tens tuas fraquezas.

— E devias saber que não vim a Nova Jerusalém para entrar, mas para fazer sair dela quem assim deseje.

— E alguém em sã consciência desejaria deixar a Cidade dos Eleitos?

Jesus não lhe respondeu. Em vez disso, abriu os braços e impostou a voz sobre o portão entreaberto, fazendo-a ecoar pelas avenidas e vielas da cidade:

— Ó vós que sofreis a maldição do apagamento de toda lágrima, eu vos restituo a memória para quem sofrais a dor e encontreis a verdade, e na verdade, a liberdade.

Por um momento nada aconteceu. Mas no instante a seguir um clamor se ouviu dentro dos herméticos muros da cidade, um alarido de vozes revoltadas, um murmúrio de gente indecisa, um burburinho de pessoas desorientadas. A dor da lembrança devastou tantos corações que o pranto deles preencheu o ar.

— O que fizeste!? — exclamaram os anjos, assustados.

— Justiça, apenas.

— É justo que eles sofram, é justo que vaguem pelo mundo sem destino, sem ter o que fazer?

— Qualquer coisa é mais justa do que a escravidão.

A força da palavra foi como uma bofetada no rosto de Gabriel, que sentiu-se queimando por dentro e por fora:

— Blasfêmia!

— É a segunda vez que me acusam disso. Como da vez anterior, sou inocente.

Batidas surdas se ouviram nos portões gigantescos, por todos os lados. Eram os remidos que não mais se suportavam, que odiavam os rituais diurnos, a interminável luz acesa no centro de tudo.

— Esqueça-me, Gabriel. Você terá muito trabalho para manter toda esse gente presa, ainda que eles não possam ter asas.

E assim Jesus deixou Jerusalém e seguiu de novo rumo a sudeste, em direção a Geena, o lago de fogo aonde lançaram o Dragão.

Sua intenção era, caso ainda fosse possível, erguer a voz à borda das línguas de labaredas, e dizer:

— Ó vós que sofreis no ventre da terra, nas chamas de Hinnon. Sede libertos das cadeias que vos prendem e da dor que vos petrifica. Estais perdoados, mesmo vós que um dia fostes chamados de “demônios.”

Depois, convidaria a todos a ocupar os imensos vazios da Terra e do Céu, com novas e engenhosas aventuras e descobertas, ao menos enquanto o pai permitisse. E enquanto caminhava, Jesus dizia para si mesmo:

— Antes de qualquer outra coisa, é imperioso que se separe a luz das trevas, o dia da noite, o claro do escuro.

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