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Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

A Poder de Remédios

Publicado em: 30/03/2013

Os gânglios linfáticos de Teresa doíam do esforço de simplesmente deixar o carro e andar até a soleira da porta. O sol estava forte, o vento estava seco e ninguém parecia se importar. Vivia sozinha fazia tempo, nunca se importara. Só a companhia do câncer mudara isso: tinha medo de morrer só, de ser encontrada putrefata na sala, com ratos dentro da barriga e vermes lhe saindo dos olhos. Mesmo morta não se imaginava feia: queria que sua última imagem fosse a da beleza que guardava congelada na foto, mas isso não aconteceria. Não morrera jovem para gozar da juventude eterna, morreria na meia idade, acometida de uma doença que a faria sofrer e enfeiar.

Deixou a chave cair, os dedos estavam fracos também. Antes do câncer tivera a tendinite. Aposentara cedo de um serviço estúpido e pensara em ganhar a vida. Quarenta anos apenas, ainda com a cara bonita e o corpo mais ou menos no lugar: queria ter ido mais à praia, mas veio o câncer tão cedo, ó merda. Morreria antes de gozar do prejuízo que causava ao fundo de pensão que confiara em sua saúde. Bem feito para ela, o fundo de pensão ficaria com seu saldo para pagar as aposentadorias de pessoas feias ou bonitas, tristes ou alegres, que morreriam cedo ou tarde, de câncer ou de tédio. Recolheu a chave sentindo dor nas costas: aquela merda se propagava por todos os seus nervos. Abriu a porta, entrou carregando a sacola cheia de remédios e verduras e sentou na sala na frente da televisão mordendo uma cenoura e pensando em engolir um comprimido maior que uma cebolinha em conserva. Ou pelo menos tão difícil quanto.

Era engraçado que comesse tanta verdura sabendo que ia morrer. Só comera porcarias durante metade de sua vida. Agora que estava apodrecendo rapidamente tinha vontade de chupar laranjas, comer caqui, provar carambola, tomar suco de graviola, pôr coentro e açafrão no arroz, beterraba no feijão, pimenta calabresa nos tomates. Mas a gente muda muito quando sabe que a morte finalmente vem, é hora de acertar as contas. Era hora de todo o alimento ser puro e natural, porque “os vermes da terra apreciam um corpo legal.”

Mas Teresa não contou para ninguém. Tem medo de que venham ter pena de sua dor, mais medo ainda de que venham tripudiar de seu sofrimento: foram muitos anos zombando dos carolas, que adorariam contemplar pessoalmente a vingança de deus contra a ímpia. Tinha comprado um quadro com a foto de um homem barbudo, uma figura que ela não conhecia, talvez um escritor ou filósofo de um passado perdido. Pendura aquela exibição gratuita de pelos em um prego qualquer. Gostava de contemplar aquele quadro e imaginar que o sujeito de cabelos abundantes e barba comprida, que aparecia como um chumaço de algodão naquela imagem em preto e branco, era ele mesmo, o divino. Era contra ele que descarregava a sua frustração, sua impotência:

— Você é um velho de merda, que me roubou quarenta anos que eu poderia ter aproveitado muito melhor!

Às vezes, imaginava que os olhos da figura que olhava para a frente e para baixo enquanto segurava um charuto eram curiosos e vivazes, e quase ouvia daqueles lábios cobertos de pelugem como um rio de floresta alguma resposta:

— Por que você queria viver mais quarenta anos, Teresa? Onde foi parar aquela história de morrer jovem e ficar bonita para sempre?

Nas vezes em que o barbudo lhe respondia, caía triste, comia outro chocolate e ligava a televisão em algum filme louco. Ou ligava para um número aleatório na lista para xingar. Não se importava que a reconhecessem: o que poderia alguém fazer? Vir até sua casa para tirar satisfações? Seria engraçado, cruelmente engraçado ver a decepção no rosto desta pessoa hipotética ao descobrir que os lábios que xingavam eram os de uma pobre mulher doente, prestes a morrer.

Mais uma vez cochilou sentada no sofá, talvez pelo poder dos remédios que ainda faziam efeito. Acordou sobressaltada, a sala estava ainda limpa, a televisão ligada em um canal que não conhecia, e parecia ser tarde, bem mais tarde, como se tivesse dormido até depois de anoitecer. Uma gata gemia sobre o muro uma solidão premente, sem nenhum macho para se importar com o seu cio.

A primeira coisa que viu foi a expressão irônica do homem barbudo pendurado na parede com seu charuto. Ele quase parecia saltar da armação dos óculos com dentes e dedos prontos para apontar-lhe e sorrir-lhe.

Levantou-se rápido, com uma agilidade que só lhe restava a poder de remédios. Fechou a porta, acendeu a lâmpada e foi à cozinha tomar água. A casa estava muito quieta e parecia que a noite acabava de cair com uma preguiça de interior.

Sentia-se mal de novo, vontade de vomitar, ou de morrer, ou de transar quarenta horas sem parar. Qualquer das três coisas lhe faria o mesmo mal, e o mesmo bem.

— Deus, como eu queria foder gostoso hoje!

Pensou em Rafael, o ex marido. Era um sonhador inútil e dado a mulherices, com seu brinco de argola na orelha e seu violão mal tocado. Mas era adorável. Xingou novamente, lembrando que ele praticamente saíra com metade das mulheres solteiras do bairro, a ponto de ter que se mudar de cidade para fugir de pais e parentes ensandecidos. Mulherengo e bobo, mas que gostoso era, que merda se preocupar com um violão desafinado e os fuxicos das amigas! Queria que Rafael estivesse naquela noite, com seus dedos finos de músico, e seu caralho grosso e quente. Sentia tanto tesão por ele que quase pingava no chão. Mas, que merda, por egoísmo mandara o maldito embora. Nunca mais o vira. Onde estaria o pobre? Será que apareceria para assinar o divórcio? Teresa pensou que gostaria de pedir-lhe perdão, e de lhe dar assim que possível.

Guardou os remédios, fechou o armário e foi à sala desligar a televisão. Antes de chegar até lá, porém, recuou assustada ao ouvir mexerem na fechadura. Por azar estava em um corredor devassado demais: quem abrisse a porta da sala veria todo o percurso até a cozinha. Não poderia ir lá buscar uma faca, não adiantaria.

A única coisa que poderia usar era um pesado troféu que recebera no serviço, antes da aposentadoria. Agarrou-o como pôde, encostou-se à parede e ficou ouvindo. A porta se abriu gentilmente: ninguém a arrombou. Esperou que alguém aparecesse no corredor para ter a cabeça arrebentada pelo troféu, mas não apareceu ninguém. Um longo silêncio foi acontecendo cada vez mais profundamente, até que ela teve a certeza de que não poderia haver ninguém na casa. Entrou na sala e verificou que, de fato, não havia ninguém lá, e a porta estava tão fechada quanto antes.

Dirigiu-se ao quarto dos fundos, onde gostava de dormir. Naquela noite preferiu deitar no tapete grosso de palhinha, enrolada no edredom. Assim acordava sonhando que era criança ainda, que os móveis ficavam muito altos e que tinha muita vida pela frente. Para poder sonhar esses dois segundos, valia a pena passar a noite no chão duro.

Quando já estava bem enrolada, pronta para dormir, lembrou-se e algo assustador: conferira a sala, mas não o quarto da frente! E se alguém houvesse entrado sorrateiramente e se refugiado lá? Era perigoso dormir, alguém poderia vir de lá no meio da noite e… matar-lhe? Riu disso: seria uma coisa boa. Quase teve vontade de dormir à espera de um furtivo fio de náilon no pescoço, uma bala ou um golpe qualquer. Deixara o troféu esquecido sobre a mesa da copa, logo ela que era tão meticulosa em manter tudo tão organizado! Era o começo, talvez, da degeneração. Logo seria incapaz não apenas de arrumar as coisas, mas de lembrar de arrumá-las, e um dia sequer perceberia a necessidade de arrumar alguma coisa.

Saiu do conforto morno do edredom e foi, descalça mesmo, ver quem haveria no quarto da frente. Pegou o troféu consigo e foi planejando o que fazer se houvesse mesmo alguém lá dentro. Daria ao bruto a chance de se mostrar? Ou o mataria rápido, com um golpe na têmpora com a quina do pesado metal? Resolveu que não valia a pena: melhor provocar o monstro, para que, talvez, enfurecido, ele a estrangulasse e acabasse com tudo aquilo. Então, empurrou a porta com o pé bem devagar, sem que ela, porém, deixasse de ranger como as portas de casas assombradas, e atirou o troféu obliquamente em direção à cama. Depois entrou no quarto de sopetão para ver o que havia.

Era o Rafael. Estava de cuecas, acuado como uma ratazana que o gato encontrou no fundo do beco. De costas para a parede, os braços abertos, a respiração curta como a de um cão, puxando a coberta para si, sem no entanto se cobrir. Olhava para o troféu caído misteriosamente sobre a cama, mas não via Teresa. Via a porta que se abrira sozinha, para deixar entrar o objeto misterioso que lhe acertara na barriga enquanto cochilava.

— Quem está aí? Quem está aí? Quem está aí?

Ainda tinha a mesma mania de repetir perguntas em série quando ficava nervoso, era tão engraçadinho. Teresa sentiu a umidade descendo por suas pernas novamente, uma jovialidade que só as noites lhe traziam. Lembrou do caralho grosso do Rafael entrando por dentro de seu corpo, fazendo-a gozar. Perdoou imediatamente as escapadelas dele. Perdoaria tudo, não tinha por que se sentir mal. Se fosse preciso, ele que trouxesse as vadias para casa, mas só as limpinhas, para Teresa ter certeza de que não havia risco.

Aproximou-se da cama, pé ante pé, com vontade de tirar a camisola e se atirar sobre ele, implorar-lhe que a comesse com vontade, que lhe enfiasse a pica adentro até encostar no colo do útero. Começou a puxar a coberta. Rafael se encolheu ainda mais, olhando o movimento do pano como se fosse a fragmentação do universo. Ele não tentou segurar a coberta, em vez disso deixou que fosse tirada de si, como se a temesse tanto quanto a um dos
cobertores de Amherst.

Finalmente Teresa o teve à sua mercê, mas estranhava que ele não a olhasse. Levou a mão até sua virilha, para tocar o membro rijo que subitamente tinha vontade de chupar. Mas ele estava murcho como uma folha que sofre ao sol do verão. O toque de seus dedos foi recebido com um recolhimento ainda maior de Rafael, como se ainda fosse possível chegar mais perto da parede àquela altura. Quando Teresa fez menção de puxar-lhe a cueca ele, então, perdeu o controle e berrou de uma maneira tão atroz que ela quase caiu para trás.

Só então se deu conta de que ele não a olhava nunca. Que seus olhos percorriam avidamente o quarto, olhando para todos os lados como quem procura. Mas não a viam.

As imagens começaram a ficar borradas, Teresa sentiu uma vertigem potente, como se todas as coisas que conhecia estivessem se desmanchando. Então, subitamente, deu-se conta de Rafael nunca deixara aquela casa, ela é que o fizera um dia, a bordo de um veículo branco. Mas eventualmente voltara, voltara ao lugar que lhe pertencia, ao quarto que lhe pertencia.

Correu para o jardim batendo as portas atrás de si. O pobre Rafael delirava no quarto e discava números aleatórios no celular, como se precisasse buscar alguém.

Lá fora, sob a calma lua, Teresa tentou chorar e não conseguiu.

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