Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Nós, Os Ridículos

Publicado em: 19/09/2013

Depois de Rafael Draccon afirmar que não publicaria Rubem Fonseca e receber as merecidas críticas, outros próceres do mercado editorial não tardaram a sair em sua defesa. Diferentemente de Draccon, que disse o que disse por força de uma quase ingenuidade característica dos deslumbrados, os artigos em sua defesa estão premeditados para alcançar um efeito e empregam toda a técnica argumentativa que tenta esconder um absurdo óbvio (“não publicar Rubem Fonseca”) e enfatizar um novo modelo de negócio no qual a qualidade foi ressignificada e “não publicar Rubem Fonseca” é o comportamento natural dos editores.

O artigo a que me refiro foi escrito por Danilo Venticinque e publicado na revista Época desta semana. Está bem escrito e cheio de verdades óbvias, que apenas preparam o terreno para sutis maldades.

A primeira delas vem logo no começo. “Na pré-história da literatura” é a expressão que o autor, num arroubo ofensivo, usa para qualificar o tipo de literatura que se praticava há… dez ou vinte anos, época em que ainda se publicavam Rubens Fonsecas. Esta ousadia supera o nível da besteira dita por Rafael Draccon. Venticinque, como todo jovem, acredita que vive numa era mais especial do que todas, que o mundo velho não tinha importância e que o que ele faz é essencialmente revolucionário. Este é o combustível de muitos progressos, mas também de muitos erros. Mas, se Draccon afirmou que não publicaria Rubem Fonseca, Danilo Venticinque chamou todos os escritores anteriores à geração da internet e das redes sociais de “pré-históricos”. Machado de Assis, Proust, Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Ezra Pound, até mesmo talentos recentes, como Patrick Süsskind e Milan Kundera. Tudo “pré-histórico”.

Venticinque, obviamente, não diz isso de forma impensada. Ele o faz para defender Rafael Draccon, seus valores e o sistema editorial que ele representa e onde ele detém poder para publicar ou não Danilo Venticinque. Pode até ser que Venticinque discorde da ressalva feita por Rafael Draccon em sua tentativa de retratação e ainda vai além: “excetuando os gênios incontestáveis (e raríssimos), que editora preferiria um eremita das letras a um escritor que sabe vender seu trabalho?”

O argumento parece bom, mas peca em vários pontos óbvios: não há gênios incontestáveis, exceto os mortos, nem todo eremita das letras escreve bem e nem todo bom escritor é recluso. Kafka e Fernando Pessoa são só dois exemplos de autores que morreram praticamente sem reconhecimento algum. Então, o que o colunista quer dizer é que, a menos que você seja um gênio reconhecido como tal pelo sistema, você precisará saber vender o seu trabalho. Ou seja: não é pelo seu talento, é por você enquanto produto de marketing.

Reconheço que Venticinque tem razão quando diz que mudou a maneira como consumimos informações. Discordo, porém, de sua análise desta mudança. Quando diz que “na disputa pela atenção dos jovens leitores, um livro concorre com fotos de gatos, notícias de celebridades e vídeos de comédia”, ele sugere que a literatura deve aceitar esta concorrência como algo legítimo e natural e procurar assimilar uma linguagem semelhante. Isto me parece absurdo, pois o tipo de coisa que a literatura é não se confunde, na dificuldade de realização, por exemplo, com uma foto de gato ou uma notícia de celebridade. Então, é inútil (e até injusto) querer que o autor concorra contra produtos culturais levianos. Igualar-se a eles não garante a vitória nessa concorrência.

Do ponto de vista de Venticinque, é necessário travar o combate nesses termos porque o que importa é somente vender livros, mesmo que sejam vendidos para quem não os lerá. A editora não é uma casa produtora de arte, mas uma vendedora de maços de folhas impressas. A literatura deve, entre outros papéis, oferecer um tipo de reflexão social e cultural que vá além dos produtos imediatos para o consumo em massa. Mas quando se iguala com fotos de gatos e vídeos de comédia, ela está se desvalorizando. O autor que se submete a essa pantomima está denegrindo o valor do seu trabalho, e depois vai reclamar o que quando descobrir comentários grosseiros e sem sentido, feitos por gente que comprou o livro pela capa ou leu por acaso?

Penso que não há nenhum demérito em buscar divulgar o próprio trabalho, todos o fazem como podem posso. O problema está em rebaixar este trabalho, que requer mais tempo e mais cuidado, ao nível de uma foto de gato na internet, como faz o Danilo Venticinque. Eu não acho que o público das fotos de gato esteja interessado no tipo de coisa que eu escrevo, então não preciso competir com elas. Devo buscar outro tipo de público, e começo a suspeitar que não encontrarei esse público nas redes sociais.

Venticinque acha que “o silêncio é o caminho mais curto para a irrelevância”, mas ele está, obviamente, se referindo à irrelevância no “mercado” e no momento presente, porque os gênios incontestáveis que ele reconhece no passado foram, muitas vezes, silenciosos. O sistema que Draccon e Venticinque representam é o de vender livros a quilo, e o conteúdo nem tem importância. Irrelevância no mercado editoral resulta da postura resistente dos que se importam com o que escrevem. Enquanto cada vez mais editores pensam assim, escritores brasileiros começam a escrever em outras línguas, sob pseudônimo e se lançam no exterior. No Brasil, Bruna Britto estaria fadada a ser tachada de “irrelevante” por editores como Venticinque e Draccon.

Ocorre que este posicionamento me parece ser apenas outra faceta do forte preconceito que o público leitor (e os editores) têm contra o autor brasileiro. Considerado inerentemente inferior ao estrangeiro, o escritor nacional só consegue se sobressair caso se exponha, bote maquiagem na cara, encene algum tipo de arte marcial, pinte a bunda de vermelho ou pendure uma melancia no pescoço. Pelos méritos de sua obra ele nunca se criará em um mercado acostumado a publicar os best-sellers anglo-americanos de forma automática e onde qualquer subproduto de esgoto escrito primeiro em inglês sai da gráfica com tiragem de mil exemplares e uma capa bontinha. Mas assim vemos que não é que tenha mudado tanto a forma como consumimos conteúdo, é que mudou muito pouco a barreira que existe contra o nosso escritor, barreira que deriva da péssima qualidade de nosso ensino e do complexo de vira-latas, sempre denunciado por autores polêmicos que Draccon tampouco publicaria.

Digo isso porque não concordo com o julgamento generalizado nas redes sociais, de que os autores brasileiros clássicos são toscos e chatos. Eles são, essa é a sua tragédia, melhores do que os nossos leitores. Um país que tem dois terços de seus cidadãos abaixo do limite da alfabetização funcional não tem gabarito para dar valor a uma obra como o “Grande Sertão”. Nosso público não gosta do autor nacional porque foi obrigado a lê-lo na escola, não entendeu nada (porque a escola não conseguiu alfabetizá-lo perfeitamente) e ficou com esse despeito que o inculto tem por aquele que “fala difícil”. Então, se você quer atingir a esse público semi letrado, precisa pensar em fotos de gato como parâmetro de seu estilo, ou vai ser tachado de “pedante”. Aqueles que praticam uma literatura que opta por se comparar com fotos de gato tacham de “pré-históricos” autores que estão consagrados pelo tempo, são objeto de estudo em outros países e levam o nome de nosso país lá fora.

O que mudou não foi a literatura, são os valores de nossa juventude. Exibir-se para obter fama fácil é uma coisa tão comum que nem mais surpreende. Para aparecer na televisão uma mulher aceita dizer ao marido, diante das câmeras, que, antes de conhecê-lo, se prostituía em troca de cheeseburgers. Essa disposição para o exibicionismo se torna um atalho fácil para compensar a falta de talento: um livro ruim pode ser bem promovido e vender como pão quente. Há quem se prostitua por cheeseburgers, há quem tope qualquer negócio para divulgar seu livro, e esse autor é o modelo desejado pelas editoras, que pensam em cortar seus custos diante da ameaça justamente das novas formas de consumir conteúdo. Quem caminha para a irrelevância é esse modelo editoral ditador, que em seus espasmos produz figuras caricatas como o Draccon e o Venticinque. “É a evolução natural de uma geração que perdeu a vergonha de se expor para divulgar seus livros.”

O fecho do artigo resume o posicionamento do autor de uma forma lapidar: “Os escritores da pré-história achariam tudo isso ridículo. Para os novos autores, ridículo é não ser lido.”

Acho que o tema merece mais reflexões, que eu não estou disposto a fazer a essa hora da madruga, mas acredito que seja mais ridículo comparar o seu esforço pessoal com uma foto de gatinho.

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