Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Alguns Não Podem Ser Belos

Publicado em: 27/04/2014

A beleza é algo fundamentalmente polêmico. Sendo questão de gosto, é impossível definir um padrão que agrade a cada ser humano. Por isso não há unanimidade nem mesmo em relação a obras de arte consagradas (há quem ache a Mona Lisa feia, por exemplo) e o consenso, quando existe, é mais o produto de um condicionamento cultural do que de uma escolha racional.

Esta semana tivemos uma prova do quanto o condicionamento cultural amortece o julgamento e, quando contestado, revela cavilosos sentimentos que as pessoas normalmente escondem.

Alguma revista americana que eu nunca tinha sequer ouvido falar resolveu estampar na capa que a atriz mexicano-queniana Lupita Nyog’o seria a mulher mais bonita do mundo. Todo ano existe uma pá de eleições de mulher mais bonita do mundo, todas elas altamente discutíveis, mas quase todas resultando na escolha de uma beleza convencional (ainda que demograficamente minoritária), com traços europeus, latino-americanos ou leste-asiáticos. Estas eleições sempre despertam questionamentos comedidos por parte de quem tem opinião diferente: “Ah, mas Fulana de Tal é mais bonita que essazinha aí.” Normal isso. Ocorre que, por um motivo “estranho e incompreensível” (ahã), especificamente desta vez em que elegeram uma mulher tão preta quanto possível (e muito bonita, diga-se de passagem) surgiu essa grita toda na internet, com direito à opinião de um bando de gente sobre o caso, como se fosse um sinal do apocalipse alguém achar que uma negra retinta é bonita.

O problema não é questionarem a eleição da Lupita Nyong’o. Já disse que todos os anos qualquer que seja a “mais bela das belas”, sempre há muita gente que discorde, simplesmente porque beleza é questão de gosto e é impossível, portanto, encontrar uma que seja a mais bela para todos. Mas não é “estranho” que essa polêmica sobre a mais bela não ser a mais bela só ganha proporção quando escolhem uma negra. Lembra do furdunço que a Miss Universo angolana causou? Bem, eu não acho nada estranho na questão, acho o questionamento muito óbvio e esperado: vivemos em uma sociedade atavicamente racista que considera a pele negra como essencialmente incompatível com a beleza, e quanto mais preta a pele, mais impossível a aceitação. Imagina então se a moça não tivesse aqueles traços afilados (típicos dos negros do leste africano) e ostentasse um nariz largo, lábios grossos, qualquer traço ainda mais desviante do modelo padrão!

Os questionadores tentam se justificar com esse ceticismo seletivo, típico de quem quer sentar no próprio rabo para apontar o alheio: concurso de beleza é sempre uma bobagem (mas ele é mais lembrado como bobagem quando elegem uma negra). Não obstante nada dizem quanto a sucessivas edições desses concursos (formais ou não) que apontaram venezuelanas, filipinas, americanas, inglesas, espanholas, italianas ou mexicanas. Afinal, enquanto o resultado do concurso case com a percepção de beleza do senso comum, não há porque fazer disto uma bandeira.

Na tentativa de desqualificar o concurso quando ele aponta uma vencedora que não convém, surgem os argumentos mais “estranhos” (para eles, não para mim, que os acho previsíveis). O vlogueiro Filipe Neto, que tem “milhões de seguidores no YouTube” aproveitou para se compadecer da exposição a que a atriz seria submetida por ter sido. Ele não achou “justo” a usarem para uma posição política. Deve achar que a atriz é uma ingênua que se deslumbrará achando que o mundo a acha bonita só porque a revista a apontou como tal. Ou que é uma tola emocionalmente carente que precisa acreditar que é a “mais bela das belas” para se sentir bem. No entanto, Filipe Neto não acha estranho que todos os anos diversas outras jovens sejam apontadas como mais belas, expondo-as igualmente a tal julgamento.

Na verdade, Filipe Neto sabe que o julgamento ao qual as misses e belas são submetidas é relativamente brando quando elas têm o padrão “certo” de beleza. Por isso ele só se compadece da Lupita, porque, no fundo, ele sabe que ela, sim, será apedrejada por ter sido escolhida.

Para não aparecer como racista ao questionar a eleição da atriz (que, afinal, embora bonita, não é tão bonita assim, eu particularmente acho a Sade Adu muito mais sexy) o Filipe resolve mostrar sua [complacência com a beleza negra](http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/08/deixar-de-ser-racista-nao-e-comer-uma-mulata.html) exibindo como exemplo de mulher negra mais bonita que a Lupita uma garota, chamada Raquel, que trabalha com ele. Ao fazer isso, Filipe comete um deslize de proporções épicas, praticamente carimba na testa um aTESTAdo de racismo: pois a jovem que ele escolhe como exemplo é uma humilde auxiliar de serviços gerais que, entre outras coisas, lhe serve o café. A jovem entra em cena arredia, com dificuldade para se expressar, é preciso que Filipe a estimule, que a ensine como se portar. Esse é o modelo de beleza negra que Filipe Neto endossa. Uma jovem que, embora realmente bonita, lhe é subalterna tanto socialmente (por lhe servir o café) quanto intelectualmente, por precisar ser ensinada por ele como deve falar diante da câmera. E se forem ver o vídeo dele para comentar, notem também que Raquel é menos “retinta” que a Lupita. É negra, mas sua pele tem um tom achocolatado, em vez do negro luminoso da atriz mexicano-queniana.

Assim, o querido Filipe Neto, ao tentar mostrar que “não é racista” para poder se legitimar a questionar a eleição de Lupita Nyong’o, exibe abertamente como ideal de beleza negra um modelo exatamente racista e atávico: negra bonita é aquela com uma pele “não tão preta” e que tem um comportamento socialmente submisso. Negra bonita é a “morena” que serve café e precisa ser orientada para falar diante da câmera. Já Lupita, empoderada pelo reconhecimento, articulada por sua cultura e formação, essa não é uma negra “adequada”, e já que é retinta, sua beleza é “polêmica”.

E o mais curioso é que justamente esse pessoal que difunde esse conceito racista de beleza pretende inverter a lógica e acusar os que denunciam seu racismo como “censores” ou contrários à liberdade de expressão. Que liberdade é essa que só pode funcionar quando é expresso o consenso? Qualquer mulher pode ser chamada de “mais bela das belas”, desde que não seja negra.

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