Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Impressões da Leitura de Contos de Philip K. Dick

Publicado em: 27/12/2014

Há muito tempo Philip K. Dick figura na minha lista de autores favoritos, por causa da mirabolante confusão que são os seus contos. Aproveitando o tempo livre das férias, resolvi pôr em dia a leitura de vários livros adquiridos nos últimos dois anos e que estavam em minha estante criando poeira. Entre estas leituras, a de duas coletâneas de contos de PKD, um de meus autores favoritos: “O Vingador do Futuro” — coletânea oportunista lançada pela Editora Paulicéia na época do filme de mesmo nome e adquirida em um sebo — e “Realidades Adaptadas” — edição recente da Aleph que não deixa de ser, também, ligeiramente oportunista ao selecionar os contos pelo critério de terem sido usados como base para filmes. Em comum, ambas se iniciam com o conto que deu origem ao filme (e aqui cabe fazer uma comparação entre ambas as traduções).

A edição da Aleph, feita por Ludmila Hashimoto, traduziu “We Can Remember It For You Wholesale” como “Lembramos para você a preço de atacado”, a edição da Paulicéia, feita por Ricardo Gouveia, preferiu “Recordamos para você por atacado”, um título que ficou perfeito pela economia e por encontrar um sinônimo de “Remember” que também começa com a letra erre. A não ser pelo título, que Gouveia captou melhor que Hashimoto, em minha opinião, não é possível dizer que uma tradução seja melhor que a outra. Cada uma tem seus fortes e fracos, mas em geral a tradução de Ludmila Hashimoto me parece mais coloquial e menos poética que a de Gouveia, sinal dos tempos transcorridos entre as duas publicações.

O conteúdo da edição da Aleph é o seguinte:

“Recordamos para você por atacado” (nunca vou desistir de promover esta versão do título, muito obrigado pela sua opinião) tem pouquíssimo a ver com o filme de Paul Verhoeven (“O Vingador do Futuro” no Brasil, “Desafio Total” em Portugal), que dele retirou pouco mais que a ideia de um operário que sonha em visitar Marte e contrata uma empresa que implanta memórias falsas apenas para descobrir que ele, de fato, já estivera no planeta vermelho, em uma missão secreta, e tivera a sua memória apagada para a sua própria segurança.

Verhoeven tomou inúmeras liberdades com o roteiro, que alteram substancialmente o significado original da história e as suas implicações filosóficas. No filme, Quaid não vai até Marte porque é muito caro e sua mulher não o autoriza a fazer tal despesa, ele então busca a “Total Recall” para obter memórias falsas por um preço baixo. Durante o procedimento o soro de verdade que lhe é aplicado faz aflorarem memórias de uma viagem real, os funcionários da empresa lhe indenizam, mas ele vai embora ainda assim acreditando que as suas memórias, agora conscientes, são fictícias. Os agentes do governo que o haviam originalmente mandado a Marte (para investigar um grupo rebelde) começam a persegui-lo (entre eles sua mulher) e ele resolve viajar até lá para desvendar seu destino, tornando-se um herói no processo (embora a todo momento surjam pessoas dizendo que tudo é uma ilusão de sua mente). Esta afirmativa de que a verdade é uma ficção não passa de uma versão aguada dos conflitos existenciais de Philip K. Dick, pois no conto o ruído é muito mais intenso, apesar do final fraco. Comecemos que no livro a viagem a Marte é uma impossibilidade prática: não há turismo para lá e somente funcionários do governo podem fazer a travessia. Quaid não pode viajar porque é um civil, embora tenha o dinheiro necessário (o implante de memória custa quase o mesmo preço que a viagem custaria, se ele pudesse obter uma autorização para ir). A partir desta discrepância fundamental, as versões escrita e filmada divergem cada vez mais radicalmente até o ponto em que deixam de sera a mesma história. Isto ocorre após a briga de Quaid com a mulher.

No geral, embora o filme tenha criado uma história de herói quase tradicional, com uma leve pitada da insanidade de PKD, podemos dizer que o conto é inferior em execução por causa do seu final, que viola a suspensão de descrença ao desafiar a probabilidade. Isso, claro, em minha opinião.

O segundo conto da edição da Aleph é “Segunda Variedade”, que serviu de base ao roteiro do filme “Assassinos Cibernéticos” (em Portugal: “Gritos Mortais”) — é também o conto mais longo do livro, ocupando mais de sessenta páginas. Também aqui os realizadores do filme produziram alterações em relação ao argumento do conto — e com isso desfiguraram a natureza do dilema moral abordado por PKD. No filme, temos mineradores transformados em soldados, tentando retomar um planeta alienígena das mãos de sua população civil rebelada por motivos ecológicos, usando para isso máquinas autorreplicantes dotadas de inteligência artificial (os “screamers”). No conto temos um estágio final de uma guerra total entre duas potências hegemônicas da Terra, uma das quais, o “bloco americano” está em vias de exterminar a outra, os “russos” (os nomes não são oficiais, mas gírias entre os soldados) usando os “screamers” após uma guerra nuclear (vencida pelos “russos”). Enquanto no filme temos um grupo de militares lutando pela própria sobrevivência — ao desconfiarem que os seus comandantes resolveram abandoná-los por causa da disseminação da radiação, da poluição química e de outros fatores — no livro temos um grupo de soldados que enfrenta a possibilidade de extinção da própria vida humana.

Em ambos os casos, porém, temos a síndrome do Aprendiz de Feiticeiro, com a humanidade tendo de enfrentar as suas próprias criações para tentar sobreviver. E como se trata de PKD, esta luta envolve questões como “quem sou eu”, “quem é o meu inimigo de fato”, “o que é real e o que é ilusão” e outras que fazem derreter o cérebro.

Embora ainda não tenha me satisfeito plenamente, este conto me pareceu, em uma primeira leitura, ser nitidamente superior a “Recordamos para você por atacado” porque, embora partindo de uma premissa menos interessante, ele tem uma realização mais regular e o final não exige do leitor um grau excessivo de suspensão da descrença. O filme, porém, é uma bobagem que perverte totalmente a qualidade da história imaginada por PKD.

Em seguida temos “Impostor” (o filme de mesmo nome é tremendamente obscuro e eu não o vi para poder comparar se o argumento de PKD foi minimamente respeitado). O conto é primoroso e, embora exija um alto grau de suspensão da descrença, ele funciona sem problemas porque a suspensão de descrença é construída de forma gradual e só é exigida uma única vez. Com apenas vinte páginas, é o conto mais curto — e também o mais coeso do livro (se é que “coesão” pode ser menciona em relação ao autor).

A narrativa é, como quase sempre acontece nas obras de PKD, em ordem cronológica (ainda que, nas melhores de suas obras, a cronologia rapidamente passe a ter pouquíssimo sentido) e, como deve acontecer em um conto de boa qualidade, não tem interrupções de fluxo. Começamos a acompanhar o cientista Spence Ollham quando ele desperta e o seguimos até a manhã do dia seguinte. Não há idas e vindas temporais (embora nesse intervalo haja tempo para ele ir à lua e voltar). O argumento é relativamente simples (para os padrões de PKD): estamos em guerra com uma civilização alienígena que possui armas ofensivas superiores às nossas em quase todos os aspectos, mas a Terra possui escudos de energia, entre outras armas de defesa, muito superiores. Neste momento a Terra está prestes a construir uma arma ofensiva que pode virar o fluxo da guerra — e Ollham é parte disso até ser preso pela polícia secreta com uma acusação chocante: a de não ser ele mesmo, mas um impostor alienígena.

O conto seguinte é “Relatório Minoritário”, que deu origem ao famoso filme com Tom Cruise. A leitura deste conto explica muita coisa sobre o porquê de Hollywood ser uma indústria moralmente falida, hoje incapaz de produzir filmes sérios. Como foi possível pegarem esta obra estranha, obscura, cínica e absolutamente amoral e transformá-la em um filme de mocinho contra bandido e um final feliz para cada gosto, como em novela mexicana?

As diferenças entre o que PKD escreveu e o que se filmou naquela aberração superproduzida são tão gritantes que é quase impossível mencioná-las sem dar spoilers do conto — o que venho tentando fazer até aqui. Como no filme, temos o conceito de um órgão policial que prende as pessoas que supostamente virão a cometer crimes, com base em predições feitas por “mutantes prescientes” (PreCogs, no conto) e cujo diretor é incriminado de um crime que supostamente cometerá. A partir daí praticamente já nada coincide entre as duas versões.

Comecemos pelo fato de que no filme o dilema central é a luta do chefe de polícia Anderton para evitar ser preso porque acredita ser inocente. No conto, Anderton imediatamente acredita que sua acusação foi resultante de uma manipulação do sistema, uma conspiração para afastá-lo (ele, o fundador da Divisão Pré-Crime) e pôr em seu lugar um substituto favorito do governo (Witwer). No filme temos uma motivação egoísta (Anderton não quer ser preso porque acha que é inocente), no livro a motivação é totalmente altruísta (Anderton acredita que o sistema foi corrompido e se a conspiração for bem sucedida o governo passará a usar a corrupção do sistema como uma ferramenta para eliminar os indesejáveis).

Analisando friamente, o dilema moral abordado por PKD é muito mais significativo e corajoso. No filme existe uma crença inerente no sistema: a acusação é um erro e Anderton deseja inocentar-se (ainda que saiba que se conseguir ficar sem cometer o crime isso destruirá a credibilidade da Pré-Crime). No conto, existe uma preocupação latente com o abuso: o sistema é corrupto por natureza (o governo é corrupto, o exército é corrupto e a repressão é generalizada na socidade, embora “branda”) e a Divisão Pré-Crime é supostamente “limpa” porque sua precisão interessa ao governo (que deseja manter a sociedade livre de crimes para poder assegurar o conformismo). Mais do que isso, o Anderton do conto não pretende inocentar-se, mas desvendar uma interferência indevida no trabalho da Divisão Pré-Crime (o que, acidentalmente, significaria inocentá-lo).

Este parágrafo contém spoilers A diferença de qualidade entre a versão filmada e a original reside na previsibilidade. Enquanto no filme todos mais ou menos sabemos que Anderton conseguirá provar sua inocência — e para isso tem a ajuda benevolente de gente de dentro do sistema — no conto não existe nenhuma certeza disso porque as variáveis se alternam o tempo todo: aliados trocam de lado e a cada página Anderton tem de refazer sua interpretação dos fatos. No final, PKD nos oferece uma conclusão filosófica absurda, mas que se revela verdadeira nos termos em que ele a coloca: a injustiça é a única forma real de justiça, pois a tentativa de implantar justiça formal redundaria em mais violência e na prática generalizada de injustiças e isto reinterpreta toda a cadeia de eventos do conto. Anderton, mesmo determinado a provar a própria inocência, comete o crime para legitimar a divisão Pré-Crime, e o faz para evitar que o exército dê um golpe de estado e reimplante a antiga lei formal baseada na presunção de inocência; pois acredita que instituições corrompidas, como o exército do conto, só se propõem a fazer o bem quando desejam utilizá-lo como pretexto para fazer o mal. Fim dos spoilers

Nem preciso dizer que “Relatório Minoritário” foi o conto que mais gostei, entre os desta coletânea, mas o conto seguinte, “O Pagamento”, também é muito bom, e só perde a primazia por se tratar de uma história envolvendo viagem no tempo — tema pelo qual eu tenho notável aversão. Só que, quando se trata de PKD, uma viagem no tempo não é qualquer viagem no tempo, e isso ajuda a superar minha dificuldade de digerir o tema.

“O Pagamento” — que deu origem a um filme dirigido por John Woo, o que deve significar muita ação coreografada e um ritmo alucinante, mas sem reflexões — começa com uma premissa interessante: um eletrotécnico chega a Nova Iorque em um avião particular, ao final de um contrato de trabalho de dois anos, para receber o seu pagamento. Ao chegar à sede da empresa, descobre que, conforme seu desejo, em vez de dinheiro a empresa lhe entregará como pagamento um saco de pano contendo sete misteriosos objetos: uma chave codificada, um canhoto de ingresso de cinema (e não um canhoto de passagem, conforme erroneamente traduzido), um recibo de depósito bancário, pedaço de fio metálico, a metade de uma ficha de cassino partida ao meio, uma tira de pano verde e uma passagem de ônibus.

Acontece que Jennings, o eletrotécnico, não se lembra de ter feito tal pedido, e não se lembra de nada do que fez durante os dois anos de seu contrato: sua memória referente ao período foi apagada e ele não sabe nem o que fazia e nem porque escolheu tais díspares objetos. Para piorar as coisas: logo ao sair da sede da empresa ele é preso pela polícia secreta, que deseja saber o que ele fazia durante seus dois anos de contrato. Spoilers adiante. Gradualmente, Jennings percebe que os sete objetos não são aleatórios e nem inúteis: na verdade eles vão se tornando gradualmente mais importantes, inicialmente apenas salvando a sua vida de forma imediata, mas progressivamente ajudando-o a realizar façanhas cada vez mais grandiosas. Fim dos Spoilers.

Existe um forte subtexto político neste conto, e tal subtexto se mostra tão profético e atual que até nos assusta, especialmente aqueles que têm acompanhado o desenrolar da política na Europa e nos Estados Unidos. No futuro distópico de PKD (todos os seus futuros parecem sê-lo) o regime democrático já não existe: o governo é uma ditadura, endurecida periodicamente por novos golpes de estado. Neste contexto a vida e a liberdade dos cidadãos já não têm garantias, somente a autonomia das grandes empresas ainda é respeitada, porque os governos dependem delas para obter fundos e recursos materiais. Isto leva à irônica cena em que Jennings conclui que para se proteger ele precisa estar sob a égide de uma grande companhia. À primeira vista este status quo parece benigno, pois a Construtura Rethrick, para a qual ele trabalhou, parece uma empresa voltada para o bem e, afinal, as empresas parece que protegem seus empregados. Gradualmente essa certeza vira fumaça, à medida que conhecemos o caráter de Earl Rethrick, suas lealdades e seus objetivos. No fim percebemos que nenhum dos personagens merece nossa torcida, afinal.

O conto mais perturbador e polêmico do volume é “O Homem Dourado” — inspirador do filme “O Vidente”, que eu também não vi e sobre o qual, obviamente, não posso falar. Publicado em 1954, esse conto parece ter sido a fonte de todo o conceito dos X-Men e dos argumentos de suas primeiras histórias. Certamente, se PKD não vivesse em um mundo tão particular, tão raramente interagindo com o nosso mundo real, ele teria percebido ou teria se importado em processar Stan Lee. Ou talvez simplesmente ele não pudesse fazê-lo, pois as leis americanas de direito autoral eram, até recentemente, bastante desfavoráveis aos autores.

Ambientado em um momento indefinido do futuro (a tecnologia não é radicalmente diferente da nossa, apenas existem alguns objetos “novos”), o conto se passa uma ou duas décadas após uma guerra nuclear que “contaminou” a humanidade e desencadeou o surgimento de “desviantes” — humanos mutantes de aspecto quase sempre repulsivo e dotados de habilidades diversas. A humanidade rejeita os “desviantes” de uma maneira radical: uma vez identificados, todos são levados para centros de pesquisa onde são estudados por algum tempo e depois sofrem “eutanásia”. Isto ocorre por causa do temor de que eles, ao possuirem maior aptidão evolutiva (ainda que dependente de nichos) acabem por substituir a humanidade. Spoilers gravíssimos à frente. Toda essa precaução se revela apropriada aos olhos da população, especialmente por causa das consequências de se tentar “introduzir” alguns tipos desviantes mais benignos (humanos com múltiplas mamas). Mas os procedimentos da agência de controle dos desviantes ficam em xeque quando descobrem um novo tipo de mutante, que parece ter sido justamente criado para explorar as fraquezas humanas, em vez de explorar nichos da natureza. Fim dos spoilers

Seria impossível falar mais a respeito deste conto sem estragar completamente a experiência de quem se proponha a lê-lo. O máximo que posso dizer é que esta será uma leitura indigesta para feministas (PKD não é um autor particularmente misógino, e de fato ele quase sempre apresenta a mulher em pé de igualdade com o homem).

O último conto da coletânea é “Equipe de Ajuste”, que inspirou o filme “Agentes do Destino” — que tampouco vi e que não posso, logo, comentar. Também datado de 1954, época em que PKD ganhava a vida vendendo contos para revistas, o conto exige imensa suspensão de descrença, mas como o faz somente uma vez, o leitor é conquistado logo de cara para a história, que é em si um tanto absurda e tem pontos de contato com “Os Langoliers” (de Stephen King).

O conto se baseia na premissa de que há instâncias superiores à humanidade que interferem na ordem natural das coisas a fim de ajustar as pessoas e as coisas de forma a produzir os desejados efeitos históricos. Este é um conceito que evoca a obra de Bóris e Arkady Strugatsky, os geniais autores russos de ficção científica, cujos “progressores” se parecem um tanto com os membros da “equipe de ajuste” de PKD. Há pontos de contato, também, com os “puppeteers” os “outsiders” do universo ficcional de Larry Niven.

Apesar de sua evidente qualidade, porém, este conto não me pareceu tão satisfatório quanto os citados “Relatório Minoritário”, “Segunda Variedade” e “O Impostor” e até me pareceu o menos satisfatório do volume.

A coletânea da Editora Pauliceia parece ter sido arranjada às pressas para se aproveitar da fama do filme “O Vingador do Futuro” (todas as vezes que escrevo este título eu tenho de tossir para arrancar de mim a impressão de quão ruim esse título é). Apesar disso reúne uma adorável série de contos, em boa tradução — apesar de não haver introduções nem notas biobibliográficas.

O contéudo da edição da Paulicéia é o seguinte:

“A Mente Alienígena” é um conto curtinho sobre a viagem de um “caminhoneiro espacial” a um distante planeta cujos habitantes precisam de uma vacina produzida na terra. A viagem é significativamente atrasada pela interferência de Norman, o gato de estimação do único tripulante do transporte. Por causa disso, Bedford, o tripulante, mata o animal em um acesso de fúria (e PKD notoriamente detestava gatos) e o ejeta para o espaço.

Após chegar ao seu destino, porém, a ausência do gato se revela um grande problema pois a mente alienígena funciona de maneira, às vezes, muito diferente da humana.

“A Revanche” é o segundo melhor conto desta coletânea, pois é o primeiro (a não ser pelo já analisado “Recordamos para você…”) em que PKD parte a abordar a dimensão psicológica de seus personagens, e da humanidade de forma geral.

O cenário é bastante simples: seres alienígenas que não seguem os tratados interplanetários (“gângsteres” do espaço, assim digamos) pousam na terra cassinos ilegais. Como o jogo de azar foi proibido em todo o planeta, os adeptos da jogatina correm a tais cassinos aos montes, para grande lucro de tais gângsteres do espaço, o que parece fazer muito sentido, mas então o autor introduz sua nota de insanidade e perverte o senso comum: nos cassinos alienígenas todas as máquinas estão programadas não apenas para derrotar o jogador humano inexoravelmente como possuem a habilidade de aprender com o jogador e, desta forma, cada vez que um jogo é jogado ele está mais difícil ainda de ganhar. A sorte não tem nenhum sentido, pois mesmo as vitórias oriundas do acaso são prevenidas pelo aprendizado das máquinas, de forma que o jogador sempre perde.

Se isto não fosse bastante para desacreditar tais cassinos ainda há uma nota tétrica: sempre que a polícia toma conhecimento de tais cassinos, a nave espacial que os trouxe decola de volta ao espaço, incinerando tudo abaixo de si com o seu jato — o que é “eficiente”, nas palavras do herói, Joseph Tinbane, porque não só os alienígenas escapam, como destroem toda evidência de sua atividade ilegal, impedem a sua identificação (não se sabe quem são os gângsteres do espaço) e impossibilitam que qualquer conhecimento sobre seus jogos possa ser usado para obter vantagem contra eles.

Mesmo assim, mesmo sabendo que fatalmente perderão e que morrerão horrivelmente se a polícia os descobrir, os jogadores humanos continuam comparecendo, sempre em grande número e há até mesmo uma rede subterrânea de informantes para circular o conhecimento das datas e locais onde os cassinos pousarão. O que faz o ser humano agir assim?

PKD não responde, e nem é função do ficcionista responder a isso, mas há a sugestão de que seja o mesmo motivo que leva as pessoas a fumarem, sabendo que só a doença aguarda quem o faz — e Joseph Tinbane é viciado em rapé, uma forma agravada de vício no tabaco, o que não deixa de ser irônico.

Entretanto a polícia sabe que está, também, em um jogo: o que os alienígenas querem é que a polícia, em nome de sentimentos humanitários, deixe de realizar batidas nos cassinos, com o que a jogatina alienígena teria curso desenfreado — e já sabemos o quanto ela é perigosa. Existe nisso uma metáfora (talvez não intencional) sobre a guerra às drogas. Por causa dos grandes danos sociais que a repressão tem causado a sociedades e países inteiros, existe um movimento para legalização das drogas, para que a polícia deixe de reprimir. Porém sabemos que as drogas, assim como o jogo alienígena em que é impossível ganhar, nada trazem de bom. Então nos vemos divididos entre uma repressão que mata (embora não tão espetacular e limpamente como no conto) e uma tolerância que deixaria agirem livremente aqueles que lucram com um dos maiores flagelos da humanidade.

O conto ainda tem um segundo nível de jogo, mais imediato, pois Tinbane e os policiais, sabendo que estão jogando e que é impossível ganhar, continuam jogando, metaforica e literalmente. Em desfavor deste conto a única coisa que eu poderia dizer é que ele talvez se beneficiasse de não ter um final, de abandonar os policiais no meio de sua caçada, apenas tendo feito as considerações filosóficas mais profundas. Sei que isso não satisfará ao leitor comum — tal como certamente não satisfez aos editores que publicaram este conto originalmente — mas isso seria muito mais honesto.

“Não Julgue Pela Capa” é o mais ingênuo e certamente o mais fraco dentre os contos desta coletânea. É uma historinha simples, sobre como livros encadernados na pele de um animal marciano têm o seu conteúdo adulterado misteriosamente. As adulterações sempre são no sentido de apoiar a tese da sobrevivência da alma, e o conto transparece certo sentido de fé religiosa vulgar, o que parece até deslocado na ficção de PKD. Segundo o autor, o conto foi uma homenagem sua à Bíblia e uma manifestação de seu desejo interior de que a religião fosse verdade.

“A Formiga Elétrica” é o terceiro melhor conto desta coletânea e me parece ter sido a inspiração da roqueira Pitty para a faixa “Admirável Chip Novo”, do álbum homônimo, embora ela tenha feito algumas alterações em relação ao argumento do conto.

A história começa bem simples: Garson Poole, um bem-sucedido empresário, acorda em um hospital depois de ter sido atropelado e então descobre, para seu espanto, que não é quem pensava ser. A sua descoberta, porém, é só a porta para toda uma série de novas experiências pois ele acredita que está em condições de experimentar coisas que nenhum outro indivíduo antes experimentara. E quando PKD resolve fazer seus personagens “experimentarem” o resultado nunca é confortável, creia em mim.

A religiosidade de PKD parece mais elaborada — e menos piegas — no perturbador conto “A Pequena Caixa Preta”, que fala sobre um misterioso artefato (de origem desconhecida, talvez alienígena) através do qual as pessoas acompanham todas as experiências de um misterioso personagem, Wilbur Mercer, uma espécie de messias da nova era. O culto de Mercer parece tomar a Terra toda em frenesi, ganhando novos conversos a cada dia não por causa das ideias de seu pregador (que nunca é visto, a não ser em imagens de televisão) mas por causa da possibilidade de experimentar todas as suas instâncias de prazer e dor (principalmente dor).

A necessidade de experimentar a dor, uma dor real e simultaneamente espiritual, é o que leva milhões e bilhões de humanos a se renderem a um culto incompreensível e sem sentido — e isto, paradoxalmente, seduz até aos mais inteligentes, que dele se aproximam inicialmente com o objetivo de estudá-lo, e possivelmente combatê-lo. A realidade da dor fictícia é tão forte que suplanta a racionalidade humana e ameaça a própria sanidade coletiva da humanidade à medida em que Mercer, como Cristo, se aproxima de uma Paixão.

Depois de nos levar ao extremo da loucura religiosa, a coletânea nos atira violentamente de volta à Terra através do conto “Estranhas Memórias da Morte” que eu, particularmente, considero um dos melhores contos jamais escritos. E é um conto destoante na ficção de PKD, por não ser uma obra de ficção científica.

Trata-se, para começo de conversa, de um modelo de “conto” no sentido do “racconto” italiano e do conto franco-ibérico. Existe concisão e existe unidade de tempo-espaço-ação. De fato há tanta concisão que até o último momento da história nós só temos a consciência de um personagem, nunca nomeado, que nos conta a história quase completa em um desenfreado fluxo de consciência. Toda a história parece existir apenas dentro da mente deste narrador não onisciente e espectador parcial da vida alheia. Ele é inquilino de um prédio decrépito em vias de ser demolido, em todo o prédio todos os moradores estão mudando ou já se mudaram, menos ele e uma senhora misteriosa, que ele apelida de “a dama do Lysol” por causa do forte cheiro deste produto de limpeza que o seu apartamento exala.

A Dama do Lysol, a exemplo dele, reluta em deixar seu apartamento. Ele reluta porque não tem dinheiro para comprar outro e porque não consegue um aluguel equivalente. Ele regateia com a construtora até finalmente obter um bom desconto, e um apartamento inferior, e assim se prepara para mudar. A Dama do Lysol, porém, é uma senhora reclusa, solitária e com aparentes problemas para compreender o mundo moderno. Ele não consegue imaginar que ela possa negociar com os “falcões” da imobiliária, mas ao mesmo tempo não tem a oportunidade de ajudá-la porque, nos muitos anos em que viveram mesmo prédio, nunca desenvolveram qualquer contato. Por fim vamos percebendo que o narrador é tão recluso e esquisito quanto a Dama do Lysol, e é por isso que sua compaixão não se traduz em nenhum tipo de ação, apesar do crescente sentimento de culpa à medida em que o prazo para deixar o prédio se esgota.

O último conto da coletânea, e o último de PKD que eu li nesta maratona, foi “O Olho da Sibila”, um exemplo da originalidade de PKD, embora aqui ele não tente derreter seu cérebro com filosofias insanas. Começando como um conto de ambientação histórica, “O Olho da Sibila” progride em ritmo veloz rumo a outros tempos e espaços, de uma forma que só PKD consegue, e de uma forma que não é possível mencionar, nem de soslaio, sem estragar completamente o prazer da leitura.

Ao fim da maratona, consegui estabelecer uma lista dos meus contos favoritos, entre os que li:

  1. Estranhas Memórias da Morte
  2. Relatório Minoritário
  3. Impostor
  4. Segunda Variedade
  5. A Pequena Caixa Preta
  6. A Formiga Elétrica
  7. O Olho da Sibila
  8. O Pagamento
  9. O Homem Dourado
  10. Recordamos Para Você Por Atacado
  11. A Revanche
  12. Equipe de Ajuste
  13. A Mente Alienígena
  14. Não Julgue Pela Capa

Observando a lista, vê-se que dos sete primeiros colocados, quatro estão na coletânea da Editora Paulicéia e três na da Aleph (e ambas as coletâneas têm, curiosamente, a mesma quantidade de textos). Ao escrever originalmente esta resenha eu não tinha acesso aos títulos originais de todos os contos e nem suas datas de publicação (que obtive posteriormente na Wikipedia). Com base nisso, posso agora afirmar que a coletânea da Paulicéia reflete um autor mais maduro (porém significativamente afetado, também, por sua esquizofrenia e pelo uso de drogas). O conto mais recente contido na coletânea da Aleph é justamente o primeiro, “Recordamos Para Você Por Atacado”, que é de 1966, e todos os demais são datados da década anterior, época em que PKD ainda não era um autor profissional firmemente estabelecido. Entre os contos da coletânea da Paulicéia, o mais antigo é “A Pequena Caixa Preta”, datado de 1964 e dois foram publicados já nos anos oitenta, embora escritos na década anterior.

Vale lembrar que estas não são as únicas obras de PKD que eu já li. Em minha memória ainda jazem recordações de “O Homem do Castelo Alto”, “Andróides Sonham com Ovelhas Elétricas” e vários romances publicados com títulos absurdos que eu ainda não consegui identificar em inglês. Minha próxima leitura dele será “Ubik”.

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