Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

A Mulata Globeleza Não É Beleza

Publicado em: 06/02/2016

Resposta a uma postagem no Facebook. Cobri o nome da pessoa porque existe risco de vergonha alheia.

A ilusão da liberdade é uma das formas mais eficazes de perpetuar a servidão. Faça com que o indivíduo creia que suas escolhas são livres e ele se orgulhará de sua canga e morderá em quem tentar retirá-la de seus ombros.

A mulata Globeleza deve ser combatida, sim, porque aquela mulher que ali está não é livre para escolher aonde pode estar. Quantas opções uma pessoa negra tem para chegar ao sucesso e à fama? Vamos brincar de contar quantos empresários, políticos, líderes em geral são negros? Quantas são as negras entre as atrizes e autoras mais bem pagas da televisão? Camila Pitanga e Taís Araújo? Há exatamente quantos anos você está citando estes mesmos nomes? Por que, em um país com mais de 50% de população negra e mestiça, os negros e os mestiços tenham apenas participações minoritárias na televisão?

Quantas mulatas “Globeleza” tiveram a oportunidade de ser algo na vida depois? Que portas esse trabalho livre lhes abre? Compare com as Paquitas da Xuxa? Quantas tiveram carreiras bem sucedidas? Devemos concluir que as Paquitas tinham mais talento que as Globelezas?

A mulata “Globeleza” não deve ser combatida porque “influencia estupros”, essa afirmativa é um espantalho criado por gente que não aceita ser acusada de perpetuar um estereótipo racista. Ninguém estupra negas por conta da Globeleza, mas essa é um símbolo do papel sempre subalterno e sexualizado da mulher negra no Brasil. Reduzir isso a “influenciar estupros” é ser burro, é não conseguir compreender um raciocínio sofisticado. O raciocínio poderia, no máximo, ser simplificado como “A Globeleza simboliza a segregação da mulher negra ao papel de símbolo sexual, ‘da cor do pecado’, em um país onde todos os símbolos de virtude e pureza são encarnados em pessoas brancas.” Você não vai estuprar uma negra por causa disso, mas continuará enxergando a mulher negra exclusivamente como um objeto sexual.

A mulata Globeleza não exerce livremente a escolha de aparecer nua na televisão porque ela só pode escolher entre opções muito limitadas. Se lhe dermos DUAS opções apenas, negando-lhe outras, de seu conhecimento, você ainda acreditará que pode escolher “livremente”?

A escolha da Globeleza é simples: aceitar ser transformada em símbolo sexualizado do Carnaval ou permanecer na obscuridade. Terceiras opções: até existem, muito limitadamente, porque os tokens necessários para mostrar “diversidade” na televisão já estão ocupados, há quase duas décads, por Taís Araújo e Camila Pitanga.

Fora da televisão? Obviamente há mais o que se fazer? Mas você continua achando que há liberdade em um sistema que fecha suas portas para toda uma categoria de pessoas com base na cor de sua pele? “TV não é para você” — é isso o que você tem a dizer para a moça negra que sonha em aparecer na televisão mas não quer (ou não pode, por sua forma física e/ou habilidades) aparecer como Globeleza?

Mudar de canal é uma outra forma ineficaz de reação. Durante décadas, no Brasil, tivemos cinco ou seis canais, um deles com mais de 40% da audiência e os outros todos imitando o primeiro no que fosse possível. Mudar de um canal para outro mudaria o que? Existe escolha possível quando todas são parecidas. Você se julgaria livre para comer o que quisesse se pudesse escolher apenas entre McDonald’s, Bob’s, Burger King e Habib’s?

Evidente que ninguém pensa em controlar a dançarina. Esse é outro equívoco do argumento, e um que chega a ser tosco. A crítica não é a uma mulher que está tentando o que pode para ser feliz e ser sucesso em um país preconceituoso. A crítica é à sociedade (e sua televisão) que só oferecem à mulher negra papéis assim objetificados.

Não se quer proibir a Globeleza de dançar, mas tornar possível à mulher negra aspirar coisas diferentes, viver coisas diferentes. Tornar isso tão possível que esta oferta de emprego se torne indesejável. Que a mulher negra possa recusar esse papel subalterno e sexualizado sem ter a sensação de que “perdeu a grande chance”.

Nesse dia, aí sim, a Globeleza dançará livremente e a verá quem quiser. Até lá, é necessário comentar sobre isso, apontar o problema da mulata Globeleza no contexto cultural brasileiro. E no futuro ficará muito feio para você que está agora pagando de iluminado a defender o passado.

Arquivado em: opinião