Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Amor Gótico

Publicado em: 16/10/2016

Ouviram um rangido desagradável. A lua gorda de maio abriu uma janela estreita entre as nuvens e a fumaça para ver Lucinda nua. Ela riu, a lua deve ter rido de volta, fazendo-lhe cócegas na pele pálida. Então ele se afastou, constrangido e com a sensação incômoda de ter as nádegas desprotegidas contra o vento e o desconhecido.

— Já foi? Queria mais…

— Você não sossega esse facho, Lucinda?

— Deixe, cara. Aproveite a noite, aproveite a lua, aproveite a paisagem. E aproveite que estou aqui com você.

Ronaldo olhou em volta e não teve vontade de aproveitar coisa alguma. Havia apenas lápides sujas, flores murchas e um cheiro desagradável de velas aromáticas e cal. Tudo banhado por um luar inodoro e lembranças ruins que nem as carnes confortáveis de Lucinda conseguiam mudar.

— Não foi tão legal quanto eu pensei que fosse…

— Por que não?

— Sei lá, eu me sinto como se os mortos estivessem espreitando.

— Psiu, escuta!

Ronaldo calou-se, gelado como quem senta uma bunda nua em um mármore molhado de sereno. Tremeu de frio, olhou em volta, desconfortável, tentando encontrar onde deixara a calça. Atirou o preservativo sobre a sepultura ao lado, sinalizando desistência, definitiva. Enquanto Lucinda ria por tê-lo assustado.

— O que foi isso? — perguntou em um sussurro quase mais alto que um grito.

Ouviram de novo o ruído rangente. O gemido choroso de uma alma? Ou apenas o tronco do velho sabugueiro se retorcendo com o vento que vinha do vale?

Finalmente ele encontrou a calça, e a cueca dentro dela. Vestiu-as depressa e enfiou os pés nas meias, os dedos trêmulos dificultaram tudo, e foi com quase alívio que calçou as botinas.

Aquele ruído pavoroso se ouviu de novo, mas por sorte e obra de todos os anjos de guarda ele não vinha de mais perto e nem mais longe, devia ser mesmo uma árvore. Mas quebrara de tal maneira o encanto que era impossível continuar.

— A gente não devia nem ter vindo, Lucinda.

— Está com medo?

Os olhos dela tinham um brilho engraçadinho, desafiantes de toda meiguice e de cada fantasma. Vendo-o já de calça, vestiu de volta o tubinho preto.

— ’Ta que pariu, mal me segurei nas calças da última vez.

— Medo de um rangido de árvore, Ronaldo. Honre essas calças ou vou achar que você não mereceu vir aqui comigo.

O mesmo ruído, novamente. Nem mais perto e nem mais longe, só mais pavoroso.

— Não é possível que seja só uma árvore.

— E eu não acredito que eu dei para um sujeito tão medroso.

— Mas, Lucinda. Vai que…

— Vai que o que?

— Eu não tenho medo dos mortos, mas dos vivos…

— E os vivos fazem assim quando vêm assaltar? Tenha dó, Ronaldo. Você está é com medinho de alma penada.

O gemido veio de novo e Ronaldo já suava frio. Lucinda terminou de se vestir, calçou as sandálias.

— Vamos voltar para a festa. Lucinda, me entenda. Não é medo. Mas se tem uma coisa que a gente aprende nos filmes é que nunca é uma boa ideia ir ver a origem do ruído que se ouve no escuro, principalmente depois de transar. Coisas horríveis costumam acontecer a quem transa em filme de terror.

Possivelmente Ronaldo queria ser engraçado. Lucinda riu mesmo. E finalmente lhe pareceu que a diferença de meros cinco anos entre os dois se fazia notar: abrira-se quase num abismo, deixando o pobre garoto a afogar-se no mar confuso da adolescência enquanto Lucinda já sabia muito bem o que queria.

— Não é por nada, não. Você até me perdoe dizer isso, mas eu já me arrependi de ter ficado com você, só por essa frase. De repente eu estou com cheiro de fralda suja, por sua causa.

Ronaldo segurou a vergonha, segurou o medo, sentiu-se mínimo, menino. Olhou para Lucinda e quis entender por que aquela mulher lhe dera uma chance, e só então se deu conta de que empregava essa palavra pela primeira vez. Lembrou-se da oitava série, da paixão mal resolvida por Janice, que tinha só dois anos a mais, porém já orbitava outra realidade, na qual ele era ainda um menino de joelhos ralados e com hálito de chicletes. Por um momento Lucinda o fizera sentir-se enorme, conquistador de continentes; tivera vontades e ela o satisfizera; obrigara-o a outras, é verdade, mas nenhuma de que se arrependesse, pois tivera o direito de desfilá-la como um troféu.

Eis que Lucinda o ofendia daquela forma, e ele próprio se sentia terrivelmente merecedor daquelas palavras. O amadurecimento tardio aterrissou como um meteoro. Já não teria dito as mesmas coisas de antes, já não tinha medo do rangido, mas já não tinha o respeito de Lucinda; e isso significava que já não tinha mais nada.

— Você não entendeu, Lucinda, pode ser um ladrão, algum tipo de louco que vaga pelos cemitérios…

— Como nós?

Ah, o desastre! Essa capacidade que temos de piorar as coisas que já se encaminham para o fracasso!

— Não, é que…

— Vamos embora, Ronaldo. Hoje já deu o que tinha de dar — e Lucinda já não precisava conversar.

Ronaldo se resignou a ir embora, arrastando correntes nos pés, é claro, com o rosto febril e a alma ardendo de sabedoria retrospectiva. Tentou dar-lhe a mão, ela preferia apontar para lugares irrelevantes na paisagem, apenas porque, de dentro do cemitério, podiam vê-los de outras posições.

Chegaram, enfim, ao lugar onde o muro era mais baixo e coberto de hera. Por ali haviam entrado, por ali sairiam.

— Me ajuda?

Ele não entendeu por que ela o pedia. Era pelo menos dez centímetros mais alta e pesava pelo menos oito quilos a mais. Não só tinha mais facilidade que ele para alcançar o muro como ainda lhe seria uma carga difícil. Talvez ela o quisesse punir, e seus braços pagariam pelo que a língua solta cometera.

Depois que Lucinda sumiu do outro lado do muro, olhou de volta para onde haviam estado, ouviu ao longe o mesmo gemido e apareceram luzes de lanternas nas mãos de vigias. O seu medo fora providencial para evitar que fossem descobertos, mas disso não saberia Lucinda, que já estava do outro lado, que já ia além, que já estava em outra órbita. Somente ele sabia, e era tão irrelevante a providência que os salvara e que o ferrava mais uma vez.

Agarrou a hera, chegou ao alto do muro. Conseguiu ouvir vozes: os vigias o haviam visto. Pulou ao chão e saiu correndo na direção do clube. Lucinda já percorrera os cento e cinquenta metros de distância enquanto ele devaneava. Talvez ele só tivesse tempo de vê-la beijar outro quando chegasse de volta à festa.

Arquivado em: contos