Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

A Família Duplipensare

Publicado em: 11/11/2017

“Duplipensare” é um sobrenome de origem europeia. Ítalo-alemão ou franco-italiano, o Sr. Duplipensare não se importa, o que importa é que é de origem europeia e lhe ajudou a conseguir um passaporte comunitário, que ele basicamente usa para dizer que não é brasileiro, porque não tem dinheiro para viajar nem até o Paraguai para trazer muamba.

Mas ele é um típico proletário que se orgulha da empresa em que trabalha e do carrão comprado pelo seu patrão. Acredita que ganha pouco pelo que faz, mas começa a postar “vem ni mim, sexta-feira” quando ainda é quarta.

É um típico pai de família: teve uma amante há alguns anos e morre de medo de um dia descobrir que teve um bastardinho. Grande defensor da família cristã, botou o pai no asilo e fica com três quartos da aposentadoria dele. Aconselhava-se com o padre sobre os seus problemas conjugais.

O Sr. Duplipensare é heterossexual e se orgulha muito disso. Ele também construiu a própria casa, em mais de dois anos de trabalho duro, e se orgulha muito disso.

Acha um absurdo dois “veados” que andam de mãos dadas no centro comercial, mas assiste a luta de MMA em que dois homens se engalfinham e rolam pelo chão, batendo um no outro até um deles desmaiar. Acredita que homossexualidade é pecado por não ser natural, mas pesquisa por “anal” no site de vídeos pornô. Tem orgulho de ser heterossexual, mas não vai fazer exame de toque retal porque tem “medo de gostar”.

Até há pouco era católico fervoroso, mas achava que o papa é comunista. Achava, também, um absurdo a adoção por casais gays, devido ao “risco de pedofilia”. Não tem o hábito de ler a Bíblia, mas tatuou no braço um versículo do Levítico que condena homossexuais. Adora um cheeseburger. Barbeia-se todos os dias.

Acha que consegue dirigir quando bebe. Finge que está bêbado demais para sair do boteco sem pagar a conta. Esquece a carteira. Volta para buscar, entra em outro bar, pega por engano a carteira de outro sujeito, os dois discutem. Os amigos do bar em frente chegam para ajudar. Trazem sua carteira, ele não pede desculpas, vai embora dirigindo. Chega em casa e descobre que seus amigos tiraram dinheiro de sua carteira para pagar a conta. No dia seguinte vê que amassou o carro ao entrar na garagem. Culpa a “vingança” do cara da outra carteira.

Acredita que imigrantes ilegais devem ser expulsos do país, mas seus antepassados invadiram terra indígena. Se diz um nacionalista, mas tirou passaporte italiano. Com um pouco de sorte, conseguirá um passaporte norueguês por parte do bisavô paterno.

Colocou no carro um adesivo “Sô Minêro, uai!”, mas torce é para o Botafogo.

Acredita na meritocracia, mas seus antepassados receberam terra de graça quando vieram da Europa. Terra onde viviam antes os antepassados do mendigo que ele chama de “vagabundo”. O Sr. Duplipensare também acredita no “direito à propriedade”, mas é contra a demarcação de terras indígenas.

É filiado a um grupo supremacista branco, que prega a superioridade da raça ariana. O líder desse grupo faz discursos inflamados dizendo que a raça branca está “ameaçada” e precisa “ser protegida”. O Sr. Duplipensare acha que o brasileiro é uma sub-raça miscigenada, mas gosta de samba e de música sertaneja.

Recentemente converteu-se a uma seita cristã fundamentalista, mais ou menos na mesma época em que “curtiu” numa rede social o vídeo do apedrejamento de uma mulher supostamente adúltera no Irã. Sua mulher, cristã fundamentalista, prega na igreja.

Os dois são contra o aborto, mas quando ainda namoravam, tentaram abortar a filha mais velha para não terem que casar. O Sr. Duplipensare também reza todas as noites para que o “remedinho” que deu à amante há uns seis anos tenha funcionado.

O Sr. Duplipensare diz que “armas não matam pessoas, pessoas matam pessoas”. Agora quer comprar uma arma maior para se defender de outra pessoa (um vizinho que ele detesta) que comprou uma arma por medo dele. Acredita que o mundo seria mais seguro se todos andássemos armados. Acha um absurdo a facilidade com que os bandidos obtêm armas. Votou “não” no plebiscito do desarmamento. Tem uma arma “de uso exclusivo das forças armadas”.

Assistiu e adorou “Tropa de Elite”, mas vai votar no Bolsonaro. Diz que é um conservador, mas depreda a natureza. Gosta de se dizer um “libertário”, mas quer proibir homossexuais… de existirem?

Sua filha, feminista, vive a dizer que “todo homem é um estuprador em potencial”, mas achou uma “frescura” proibirem a performance daquele homem pelado num museu. Ela também acha que todos os homens são iguais, mas quando viu um amigo dizer uma besteira comentou que detesta “homens assim”.

Seu filho, hipster, descartou um lote de iogurtes que deu na televisão que estaria contaminado por coliformes fecais, mas bebe kopi luak. O garoto também é fã de Star Wars: comprou o Manual do Império, é fã de Darth Vader e entrou para um movimento neonazista, mesmo sendo moreno. E o velho Sr. Duplipensare, seu avô, era judeu.

Esse menino acredita que hoje em dia as pessoas se ofendem com qualquer coisinha. Ontem surtou ao ver dois caras na praça se beijando no rosto. Bateu nos dois, eles ficaram mal. Chamaram a polícia e ele foi preso, o caso deu no jornal. Ao ler a notícia ficou sabendo que eram pai e filho que não se viam há um ano.

Filho e pai comungam de outras três crenças: pela pena de morte, contra o aborto, a favor da vida.

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