Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Os Casacos Azuis

Publicado em: 17/10/2018

A escuridão é um lugar confortável para a minha gente. Estamos acostumados a ela desde há tantos séculos que nem nos lembramos mais; porém; quando a noite é alta, a lua está redonda e uma brisa fria vem cortando; os homens olham para cima com receio e as mulheres, com medo, para os lados. O desconforto de nossa lembrança ainda não foi esquecido, apesar de estarmos aquietados. Achamos graça nesse medo que vemos nos olhos do povo, sinal de uma grandeza perdida.

Somos poucos agora que o tédio das eras nos devorou. “A vida é uma vela que se consome quanto mais queima e estar desperto é arder”. Chamaram-me de louco quando o disse da primeira vez, mas hoje os que zombavam estão no pó e suas almas, ninguém sabe onde. Acredito que a vida, seja de que tipo for, tem algo em comum: uma quantidade predeterminada de horas para permanecer alerta. Estou aqui, desperto em minha habitação, com muita sede e fome, mas completamente íntegro, vestindo uma roupa casual, pensando em caçar novamente através da noite universal.


Os dois jovens caminhavam pela estrada de terra entre os arbustos, tentando furar a fila dos peregrinos. Entre os espinheiros e as touças de capim ela se escondia e picou o pé de Helena através do calçado fino. O rapaz se assustou com o grito dela, porém, a moça manteve a presença de espírito:

—Esta não é das venenosas, bobinho…

Então se levantou e continuou a andar. Aproximaram-se da estrada principal, que estava ocupada por uma multidão que avançava devagar, arrastando os pés na poeira dos dias. Ninguém se importou que eles se juntassem à fila, ninguém tinha pressa, diante da certeza da Salvação.

—De qualquer maneira, querido, logo isso não importará, porque estaremos com os Santos Anjos do Senhor, eles lavarão de nós toda dor e toda lágrima.

O rapaz continuou em silêncio. Odiava discordar de Heleninha e em troca de migalhas de seu amor jurara seguir com ela até o fim do mundo. Isso fora um mês antes, e o fim do mundo, afinal, acontecera, ou era, pelo menos, o que parecia estar acontecendo, com toda a história de Glória do Senhor, de Santos Anjos, Arrebatamento.

O Lugar Santo já estava perto. Podiam ver o brilho de sua luz oscilando acima das colinas. Essa proximidade não fazia ninguém ter mais pressa, e todos seguiam com uma calma irrazoável, porque a história recorrente era que haveria lugar para todos.

A estrada de terra estreita ligava a rodovia principal ao lugar entre as colinas onde se manifestara a Glória. Era uma artéria compactada pelos passos de incontáveis milhares em poucos dias, talvez milhões desde primeiro de setembro, quando tudo começara, com o convite que os Santos Anjos haviam feito aos Justos e Piedosos do mundo, e estendido a quem se confessasse, cresse e quisesse ir à presença do Senhor.

A estrada se estreitava ao passar por entre um bosque de eucaliptos. Além das últimas das árvores perfumosas estava o veículo sem soldas e sem mácula que descera dentre as nuvens. Helena, porém, começou ter náuseas e tontura. Atrasando a multidão, empurraram-na de lado para não atrapalhar o fluxo incessante. Teófilo a apoiou nos braços e a ajudou a subir o barranco baixo, onde havia uma pedra achatada de onde se descortinava a atividade além dos eucaliptos.

—Tenho frio, Teófilo. Promete que não me deixará aqui fora? Leva-me até eles, até a Salvação. Promete!

—Prometo que a levarei à Salvação, Heleninha!

Teófilo teria preferido que a salvação viesse mais tarde, que houvesse tempo para a carnalidade do amor. Naquele momento, ainda por cima, sua vontade maior não era chegar ao Arrebatamento, mas continuar ali a observar como as criaturas vestidas de azul-escuro entravam e saíam, sempre levando para dentro, nunca trazendo para fora, os peregrinos que chegavam diante da Glória com olhos cheios de lágrimas.

Uma velhinha se aproximou a mancar, chorando e tossindo. Um dos Anjos a abraçou e a levou pela rampa até a Porta Luminosa. Instantes depois um saiu, outro ou o mesmo não se podia saber, porque todos pareciam iguais. Havia dezoito deles, sempre seis a montar guarda do perímetro, nunca permitindo que mais de uma pessoa se aproximasse de cada vez, seis estavam dentro, sempre andando de um lado a outro, conforme se via pelas janelas, e seis entrando e saindo com os peregrinos.


Ninguém se lembra de onde vem o Mal, porque o ser humano não tem memória, é um inseto a voejar em torno da lâmpada, que também ela se apagará um dia. Para quem é mariposa, a lâmpada é o seu sol e o cômodo de sua casa é um universo. Não sou muito melhor que esses efêmeros insetos, mas algo me faz mais duradouro, repelido pela lâmpada que sou capaz de ver que um dia se queimará, e vejo as gerações que vêm e vão e nunca se lembram de mim, ou de minha caça.

Terminei de me vestir e saí. A pesada porta de pedra cedeu facilmente à minha força de seis homens. Selei-a com um juramento e subi as longas escadarias que desembocam no átrio externo de meu esconderijo, já tento nas narinas o distante bafejo de uma brisa viva, que traz o cheiro do século novo, em que viverei mais um período de minha vigília à espera do escuro final.

Esta é uma cidade maior do que eu me lembrava, e muito diferente. Da última vez em que despertara nela, encontrei multidões que se acotovelavam pelas ruas, sempre com muita pressa, cada um preocupado com o seu destino apenas, nada com o de seu próximo. Foi uma época feliz em que pude viver livremente e aprender mais sobre esse país que surgiu durante meu sono. Eu esperava encontrar a cidade maior, mais apressada ainda, cheia de ainda mais violência e amor — mas o que encontrei foram ruas vazias, com veículos abandonados e o assobio no vento nas esquinas.

—Arrependei-vos, porque é chegada a Hora do Juízo!

A voz cansada de um pregador de rua me fez recuperar os cuidados automáticos com que me previno. Recolhi-me à formalidade que eu ainda lembro, desejando muito que ainda servisse para esta época. Caminhei até a criatura patética. Ele estava, por sorte, de costas para minha exibição de descuido.

—Aonde foram todos, cavalheiro?

Indaguei-lhe, com mais polidez do que ele mereceria em outros tempos. Ele se voltou, não me viu como sou, inseto que é, fascinado na brevidade de seu voejar.

—Todos vão à Casa do Senhor.

Ele me deu as costas e desapareceu em um beco escuro. Era a minha oportunidade.

Minutos depois estava sozinho e descia a longa avenida que mal reconhecia. Meus calçados rangiam no estranho calçamento, mas o que mais temia era aquele vazio irreal que se abatera sobre o mundo. Tinha a sensação de que poderia voar livre por este logradouro um dia tão devassado e ninguém saberia. Não voei, porém, corri com uma rapidez sobre-humana na direção de onde ouvia murmúrios.

—Pare, Drax! — Uma voz me interrompeu.

Olhei ao redor, confuso. Meu nome verdadeiro, dito pela boca de um homem.

—Quem sabe quem sou?

Ele saiu de dentro de um restaurante, a comer um pão recheado com vegetais e algo mais que não identifiquei ainda.

—Fantasia extraordinária, man, faz muito tempo que não vejo um fã do Drax em um cosplay tão perfeito!

Mesmo desconhecedor de certas palavras que empregava, percebi que ele não me reconhecera, de fato, mas imaginava que eu seria alguém que tentava me personificar. Quase não pude evitar o riso ao me dar conta disto, mas tal circunstância me pareceu, útil, apesar de momentaneamente eu me amaldiçoar por ter revelado tanto de mim àquele maldito irlandês. Eu realmente deveria tê-lo devorado em vez de fazer amizade com um jornalista. Por Lúcifer!

—Muito bem, man! — eu lhe respondi, utilizando, sempre que possível, o mesmo linguajar que ele parecia preferir — poderia me ajudar a entender o que está havendo com o mundo? Aonde foi toda a gente da cidade?

—Muito prazer, meu nome é Johnny.

Estranhei um inglês tão dedicado a pronunciar o português sem erros, apesar de ainda ter um jeito tão arrevesado de escolher as palavras, decerto fruto da época. Mais estranho ainda um inglês ser tão informal. De qualquer maneira, não confiei o suficiente para me revelar.

—Encantado, meu nome é… também John.

—Que coincidência, somos xarás!

Não sei ainda o que quer dizer esta gíria exótica de que nunca ouvira falar. Johnny, porém, não se deu conta de meu desconforto, loquaz que só.

—Você me perguntava aonde foram todos… Há, esses carolas de uma figa. Estão todos em fuga para as montanhas, dizem que é o Arrebatamento, o fim dos tempos, que os Anjos do Senhor vieram buscar todos os que têm fé.

—Anjos do Senhor? Arrebatamento? Que montanhas?

Por um momento fui tomado pelo pavor de prestar contas de meus dias, mas logo me recompus. Tinha de haver um erro. Em Dite, durante as peregrinações de minha alma, me haviam informado sobre os Sinais. Eu saberia reconhecer a Hora Verdadeira, então eu precisava verificar.

—As montanhas, ora. Siga o facho de luz.

Olhei para onde seus dedos apontavam e vi dois longos fachos luminosos que oscilavam pela escuridão. Não constava que fosse um dos sinais. Aliviado, fui até o bar de onde saíra Johnny. Estava vazio.

—Preciso de água.

Ele abriu uma porta, sem cerimônias, e tirou de dentro uma garrafa de água mineral “com gás”. Sorvi um terço dela em um gole contínuo, lavando de minha boca o ranço de eras. A água parecia amarga — outro possível sinal.

—O que há com essa água, além de anormalmente fria?

—É uma água de fonte natural, sem qualquer composto químico, a melhor que há.

Percebi uma torneira atrás do balcão. Dirigi-me até ela e enchi um copo daquela água. Estava à temperatura ambiente e amargava como a outra, só não tinha gás.

—Sua água de fonte natural é da mesma natureza que esta, apenas gaseificada industrialmente, man. Agora diga-me porque toda água está amarga?

O Johnny pareceu um tanto surpreso por tal informação — e muito incrédulo. Mesmo assim me respondeu:

—Essa da torneira está amarga por causa do cloro. Vem cá? De onde você é? Quem é você? Você fala estranho…

Notei que ele começava a perceber algo de minha identidade e espaventei-o com um envultamento comum antes de sair de lá. Não o drenei, porém, porque recompenso com meu autocontrole os que me são úteis.


O veneno avançando por suas veias e corrompendo sua jovem vida, Helena se esvaía e o torpe Teófilo não se dava conta. Em seus delírios ela abandonou o corpo, vagou pelos espaços, viu, como eu, o engano dos sinais, com os olhos de sua alma. Então me viu, também, não como o monstro que realmente sou, mas com a beleza de um ser que lentamente base as asas entre as nuvens cinzas de uma bela noite de luar.

—Quem é ele, Teófilo? Quem é?

Ela perguntou, de dentro das trevas de seu delírio, mesmo antes de me ver como um homem. Teófilo olhava ao redor, sem identificar ninguém específico que pudesse ser o alvo do interesse súbito de Helena. A longa fila andava ainda, e ainda Helena piorava e ele não sabia se cumpriria a promessa ou se, por covardia, a deixaria morrer ali mesmo. No fundo, ele sabia e sempre soubera. Os covardes têm pressentimentos verdadeiros com mais frequência que os bravos.

Sim, era evidente que algo de portentoso acontecia ao mundo, mas os espíritos indóceis não aceitavam com facilidade as versões correntes. Teófilo tinha o espírito inquieto dos que ouvem a voz do medo, o salvador de vidas.

Em seus delírios, Helena me chamou. Ouvia-a desde muito alto e de muito longe. Vi a sua alma inteiramente nua, li-a desde o dia em que nasceu. Ela estava por um fio prateado, prestes a perder-se diante das mãos inúteis de seu amado morno. Lendo-a foi que penetrei no mundo novo, ouvi a história do Arrebatamento, tive a certeza da ausência dos Sinais e comecei a planejar meu curso. Enquanto ela me via apenas como asas lentas, flap-flap entre as nuvens que se ajuntavam, eu a amei, vendo-a somente como um espectro pálido que relutava em se perder. Voei até ela, porque eu primeiro ato não podia ser outro que tomá-la de quem a perdera antes de tê-la.

—Q-quem é você? — Um rapaz imberbe e vacilante se assustou com a minha chegada repentina e recuou, aos tropeções.

—Afasta-te, porque tu a deixaste perder-se.

Empurrei-o de lado e me aproximei. Ela estava lívida, os olhos revirados, a vida já quase rendida.

—Beberei de ti o veneno que te mata, Helena dos Santos. Compartilho contigo a vida que tenho muita, em troca do calor que tenho pouco. Logo serás apenas Helena e serás minha.

O rapaz reagiu com horror ao ato, mas não teve coragem suficiente para me atacar com as mãos. Em vez disso, atirou-me uma pedra, mas não tão grande que pudesse ao menos causar-me dor — ele não era forte para tanto — e concluí o meu feito rápido e me ergui de seu seio. Restava apenas esperar que o tempo agisse sobre sua carne.

Teófilo não se afastara, o que ainda era um pouco de coragem em um frangote tão pouco iluminado. Ele tinha outra pedra à mão, mas também a consciência de que ela seria tão inútil quanto a primeira fora. Em seus olhos se mesclavam o medo e o fascínio de quem encontra algo muito temido e muito ansiado. Estendi o braço, segurei-o pelo pescoço e dele fiz o meu serviçal. Ele me aceitou sem resistir.


Quando Drax me sorveu e eu o sorvi, nossas almas foram temporariamente a mesma, aprendi dele tanto quanto ele aprendeu de mim. Por um momento eu ainda não podia me mover, enquanto meu sangue se convertia. Mesmo ainda presa de meu torpor de morte, lembro-me de Drax transformar-se em algo terrível e belo, que ainda amo e ainda desejo mais que a própria vida.

Ele deu um berro que atraiu a atenção do povo que caminhava. Seus olhos ficaram vermelhos e se encheram de uma fúria impossível a um humano normal, porque ele não era nada disso. Desembainhou uma espada, que brilhou ao luar, e arremeteu enlouquecido contra a Glória de Deus.

O fio azulado da lâmina cortou pelo meio um Anjo do Senhor, e logo outro, antes que reagissem, tomados de surpresa por uma violência além da que esperavam dos humanos. Os que caíram ao chão sangraram um icor azul arroxeado e ali permaneceram inertes, como cadáveres materiais.

A multidão parou por um instante, incrédula de ver o sangue angélico derramado.

Saíram de dentro do Veículo dois anjos que portavam longos objetos pontiagudos a espargir faíscas rosadas e verdes. Nem eu sabia o que poderiam ser, mas Drax, apesar de recém-nascido do sono dos séculos, pressentiu, pelo sopro de um antigo espírito guerreiro, qual era o significado oculto de tal Portento e se ocultou entre as pessoas assustadas que não sabiam para onde ir.

Os Anjos deitaram aquelas fagulhas ao redor de si, e onde caíram aquelas cores tão belas o chão ficou escuro. Alguns tocados pelo Fogo Divino ficaram terrivelmente mutilados e se retorceram pelo chão em agonias horríveis.

Drax correu por entre o povo e os Anjos, esquecidos de sua Santidade, vieram atrás, com os estranhos objetos faiscantes que destruíam os corpos que ficavam pela frente. Então a multidão começou a berrar de medo e a tentar debandar. A pressão dos que vinham de trás não diminuiu, porque quem estava longe nada via, e continuava a andar em direção ao Arrebatamento tão esperado.

O vale se apinhou de gente, houve grande pisoteio e confusão. Cercados de gente desesperada, os Anjos só sabiam fulminar e fulminar, perdendo a expressão angélica e revelando faces ríspidas e cruéis. De repente Drax, como nenhum humano faz, voou através da Porta Luminosa com a rapidez de um lobo que salta à gargante de sua presa. Ninguém quase o viu passar. Os Anjos o pressentiram pelo movimento do ar, mas não puderam fazer nada para impedir que ele penetrasse na Glória do Senhor.

No instante seguinte ouvimos ruídos do lado de dentro. Dois Anjos, aos pedaços, arremessados para fora, e fumegantes ossos humanos. A Glória do Senhor, então, produziu um grande rugido e chamas brancas surgiram por debaixo, calcinando o chão. Os Anjos que estavam por perto emitiram um grito algo e agudo, e eis que até então ninguém os ouvira falar. Rolaram pelo chão, atingidos pelo calor branco, mas logo ficaram imóveis. A Glória do Senhor então adernou e tocou o chão, deformando-se e produzindo fagulhas.

Alguns da multidão se aproveitaram disso para tentar tomar dos cadáveres os seus bastões faiscantes, mas queimaram as mãos seriamente ao tentarem fazê-lo. Então Drax, todo sujo de sangue azul e verde, saiu carregando um recipiente de plástico enorme, que jogou ao chão com desprezo. Quando sorriu, seus dentes pontiagudos brilharam ao luar como presas de lobo.

A tampa do objeto se desprendeu e vimos derramar-se pelo chão uma riqueza em joias, dentes de ouro, próteses de platina, e diversos pedras de formato curioso, ovaladas e verdes, ou irregulares e castanhas.

Nem eu, nem Helena, saberíamos dizer o que era, mas havia médicos e históriadores entre os que desejavam o Arrebatamento. Quando trocaram ideias ouvimos muitas maldições, e a voz deles tentando guiar o povo pela estrada afora, de volta à cidade e à vida normal.

Ouvi um farfalhar e olhei para trás. Era meu mestre Drax que vinha a caminhar por entre o capim-gordura úmido de orvalho.

—Mestre, o senhor é um herói… A humanidade…

Ele não me deixou terminar:

—Não sei quem eram esses prateados de casaco azul, mas eu não posso admitir que venham caçar o meu gado desse jeito!

Arquivado em: contos