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by J. G. Gouvêa

A Estranha Onomástica Brasileira

Publicado em: 28/12/2018

O Brasil tem uma antiga tradição de nomes curiosos, às vezes ridículos, que os pais dão aos seus filhos; um hábito que vem desde os primeiros anos após a independência. É uma tradição que passou por diversas fases conforme a orientação cultural do país e sua política externa. Embora eu não seja uma autoridade no assunto, tentarei compartilhar com vocês um pouco do que sei sobre o assunto.

Logo que o país se tornou independente, as famílias mais abastadas e próximas do poder quiseram mostrar que haviam cortado de fato seus laços com Portugal e houve as que decidiram batizar seus filhos com nomes em tupi, língua ameríndia que ainda era bastante conhecida no país (mesmo entre gente branca, em lugares remotos) até a segunda metade do século XIX.

O tupi já era uma língua moribunda quando esse hábito apareceu e pouco se beneficiou do modismo. Devido ao pouco conhecimento da língua por aqueles que se propuseram a usá-lo na onomástica nacional, muitas crianças foram registradas com nomes de sonoridade horrível e/ou significado impróprio. Em muitos casos os nomes foram escolhidos sem atentar para o gênero em que eram normalmente empregados pelos indígenas, de que resultou, por exemplo, que o nome do deus solar dos tupis, Araci, se tornasse um nome feminino. Entre os muitos nomes curiosos que encontramos nos registros daquele época estão Marimbondo, Ipanema (“água sem vida”), Irajá (“colméia”) e Ubiratã (“lança de guerra”).

Também se tornou comum, especialmente entre os mais progressistas, homenagear através de seus filhos os grandes nomes da Revolução Francesa. Muitos desses nomes “republicanos” também eram impróprios, pois foram usados como prenomes quando originalmente eram sobrenomes. Assim encontramos brasileiros que se chamam Napoleão, Voltaire, Diderot, Rousseau, Marat, Benjamin Constant etc.

Como o francês era uma língua popular na época, membros das elites davam nomes franceses aos seus filhos mesmo quando não queriam homenagear a Revolução. Foi assim que entraram em nossa língua nomes como Jean, Bertrand, Denis (correspondente ao português Dinis), Eduardo (correspondente ao português Duarte), Francine, René etc. Nessa época, no Rio Grande do Norte, uma família resolveu adotar o costume romano de numerar os filhos, mas fez isso em francês… Alguns dos numerosos e numerados filhos da família Rosado se tornaram notáveis: Dix-Sept, que foi governador do estado, Dix-Huit, prefeito, Vingt, deputado federal, e Ving-Un, um agrônomo, escritor e benemérito da cidade de Mossoró.

Enquanto isso, pessoas de temperamento mais voltado para as ciências e as modernidades preferiam dar aos seus filhos nomes em homenagem aos grandes sábios da Europa, líderes militares notáveis, cientistas do passado e escritores: Victor Hugo, Washington, Galileu, Napoleão, Nélson, Wellington, Bismarck, etc. Um nome que surgiu nessa época e ainda é popular foi o de Allan Kardec.

Na época em que a família Rosado estava numerando seus filhos o Brasil já se tornara uma república e o francês perdia rapidamente popularidade face ao inglês. O mesmo fenômeno do século anterior se repetiu com sobrenomes americanos: Washington, Jefferson, Lincoln, Wilson, Roosevelt, Kennedy, Jackson — até Nixon, Johnson e Clinton. Suspeito que Eisenhower escapou pela simples incapacidade das pessoas imaginarem como escreveriam o seu nome.

Mas, por que isso aconteceu e continua a acontecer? Por que tantos brasileiros gostam de dar a seus filhos nomes que chegam a ser constrangedores?

Creio que isto acontece porque para os brasileiros, especialmente os mais pobres, dar aos filhos um nome “especial” é uma maneira de se sentirem especiais e de fazerem com que seus filhos se sintam da mesma maneira. Nomes “bonitos” como Jefferson ou Giovanni (este último um equivalente a “João”, em português) não são apenas incomuns, também contrastam com a escassez de sobrenomes entre as famílias mais pobres.

O problema dos sobrenomes é antigo no país e afeta até mesmo pessoas que pertencem a estratos médios da sociedade. São maioria os brasileiros, entre eles este que vos escreve, que não têm registro de sua árvore genealógica. Para a maioria de nós o conceito de “ancestral” é uma coisa que recua aos bisavós, quando muito. Não sabemos os nomes de nossos trisavós e raros de nós sabemos de onde vêm nossas famílias. Além disso, especialmente entre as classes populares, é alta a proporção de pessoas com ancestralidade indígena e africana — que oferecem um desafio à onomástica porque estes povos tiveram negada sua identidade anterior e foram proibidos de usar seus nomes e sobrenomes ancestrais. Poucas gerações depois, haviam esquecido sua conexão genealógica e se identificavam pelos nomes simples pelos quais eram chamados. Quando absolutamente necessário, eram chamados pelos nomes de seus pais ou mães (José da Bernardina, Maria do Antônio), ou de seus cônjuges (indistinguíveis do caso anterior). Se mesmo isso não bastasse, eram associados à terra onde residiam, através do nome do proprietário. Como diz João Cabral de Melo Neto, na apresentação de “Morte e Vida Severina”:

— O meu nome é Severino,  como não tenho outro de pia.  Como há muitos Severinos,  que é santo de romaria,  deram então de me chamar  Severino de Maria  como há muitos Severinos  com mães chamadas Maria,  fiquei sendo o da Maria  do finado Zacarias.

 Mais isso ainda diz pouco:  há muitos na freguesia,  por causa de um coronel  que se chamou Zacarias  e que foi o mais antigo  senhor desta sesmaria.

 Como então dizer quem falo  ora a Vossas Senhorias?  Vejamos: é o Severino  da Maria do Zacarias,  lá da serra da Costela,  limites da Paraíba.

 Mas isso ainda diz pouco:  se ao menos mais cinco havia  com nome de Severino  filhos de tantas Marias  mulheres de outros tantos,  já finados, Zacarias,  vivendo na mesma serra  magra e ossuda em que eu vivia.

Entre os escravos e trabalhadores de uma mesma propriedade, para diminuir as ambiguidades surgidas da ausência de genealogia, surgiu o uso de nomes incomuns, raramente usados, escolhidos entre os personagens da Bíblia e os santos da Igreja, ou então recolhidos de antigas obras literárias. Era também comum o uso de nomes compostos, não só por aumentarem a variedade, mas porque as combinações podiam resultar sonoras, assim como Homer Simpson certa vez quis se chamar “Max Power”. Entre os escravos negros era especialmente comum o uso de nomes raros de personagens da antiga literatura greco-romana ou medieval, geralmente dados pelos seus senhores, para que nunca houvesse na propriedade dois com o mesmo nome. Assim voltaram a ter uso nomes esquecidos, como Orozimbo, Ambrósio, Pancrácio, Cunegundes, Agrícola, Cincinato, Horácio, Orígenes, Jerônimo e outros. Alguns dos nomes usados com essa finalidade se tornaram comuns mais tarde, como Jerônimo e Horácio, outros caíram no esquecimento, como Orozimbo e Cunegundes.

Embora tais nomes fossem usados principalmente entre negros e mamelucos, não eram de modo algum exclusivos deles. Sempre que uma família tivesse um sobrenome comum, aumentava a probabilidade de escolher um prenome incomum. A questão dos sobrenomes é outro problema, pois remete à questão da alforria dos escravos e da cristianização dos índios. Obviamente os índios não tinham sobrenomes e os africanos não os tinham mais ou não tinham a permissão de usá-los por não serem “cristãos”. Foi necessário, então, inventar sobrenomes para esta gente.

Felizmente, Portugal tinha a experiência anterior com a invenção de sobrenomes em larga escala. Fora no século XVI, quando os cristãos-novos (judeus e mouros conversos) tiveram de se assimilar à força. Não podendo mais usar nomes árabes ou hebraicos, tiveram de escolher nomes portugueses. Em alguns casos, foram nomes inventados, pela simples tradução de seus nomes originais. Em outros casos, porém, adotaram nomes portugueses que eram cognatos ou que soavam parecidos com o nome que usavam originalmente.

Nessa época o uso de sobrenomes ainda era incipiente em Portugal e basicamente restrito às famílias nobres. Quando vemos um nome como “Pedro Álvares Cabral” não devemos imaginar que se trata de alguém com dois sobrenomes, mas um Pedro, filho de um Álvaro, da família Cabral, ou de alguma maneira ligado a um lugar chamado Cabral. Sobrenomes precedidos da preposição “de” geralmente indicavam origem geográfica. Sobrenomes sem ela geralmente indicavam origem genealógica. Mas tudo isso já estava meio confuso e cheio de exceções, com a assimilação dos cristãos-novos ficou ainda mais difícil de entender. Tanto que ocorreu, entre os séculos XVII e XVIII, uma mudança radical nas convenções onomásticas portuguesas, que acabaram adotando o hábito de pôr o nome do pai por último, enquanto na Espanha (e anteriormente no próprio Portugal) este vinha primeiro que o da mãe.

As alforrias e cristianizações se tornaram relevantes a ponto de influenciar a onomástica brasileira e então essas práticas, datadas dos séculos XVI e seguintes, foram reutilizadas.

Em alguns casos, sobrenomes portugueses tradicionais; como Silva, Costa, Sousa e Lima; foram usados de maneira inconsistente para diferenciar indígenas (Silva ou Costa), judeus (Lima e Sousa). Em outros casos foram usados nomes dos santos do dia ou da festividade religiosa mais próxima (Natal, Ascensão, Assunção, de Jesus, dos Santos, de Assis). Esses nomes acabaram por se tornar sobrenomes de fato antes do fim do próprio século XIX.

Como muita gente descende de indígenas e de africanos alforriados, muita gente compartilha esses sobrenomes, especialmente Silva, Oliveira e Sousa.

Até aqui explicamos o desejo de dar aos filhos nomes incomuns, mas não é esse o único motivo pelo qual nos deparamos frequentemente com nomes curiosos.

Há casos em que nomes normais se tornaram “engraçados” com o passar do tempo por causa de mudança semântica. Até os anos 1950, por exemplo, era bem comum o nome “Marciano” e sua versão feminina. Era uma referência a Marte, o deus romano da guerra, e cognato de “Márcio”. Esse nome não causava risos porque a ideia de “marciano” como o habitante do planeta marte, um homenzinho verde com anteninhas pontudas na cabeça, ainda não fazia parte do imaginário popular. Diz-se que houve muitas mulheres chamadas “Privada”, antes que essa palavra, que era usada no sentido de “recatada”, “tímida”, se tornasse um eufemismo para o vaso sanitário. No tempo em que não se usava a palavra como sinônimo de “fantasma” era comum mulheres se chamarem Alma.

Em alguns casos, tornou-se impossível usar certas combinações de nomes porque produzem cacófatos. Isso pode ser porque a pronúncia da língua mudou (anteriormente não havia tais cacófatos) ou porque as pessoas não eram tão maliciosas. Houve um dia em que ninguém achava engraçado um homem se chamar Jacinto Pinto.

Outros casos de nomes curiosos derivam da importação de nomes e sobrenomes estrangeiros, como o famoso caso do mafioso italiano Tommaso Buscetta, que fugiu para o Brasil sem saber que aqui seu nome seria impossível passar despercebido. Em um país que recebeu milhões de italianos, este sobrenome, comum na Itália, é relativamente raro.

A partir de meados do século XX começou uma mudança no paradigma onomástico nacional. Surgiu o hábito de inventar nomes pela combinação aleatória de sílabas, como “Gilmar”, originalmente uma combinação de “Gilda” e “Marcos” ou de “Gilberto” e “Marta, ou pela combinação de sufixos exóticos com nomes comuns, ou nem tanto, resultando em nomes que não existem em nenhuma língua, mas tampouco são portugueses: Gílson, Jaílson, Eliete, Josete etc.

Duas jovens com cartazes em que seus nomes estão escritos: Pulcléria e Schanohana.

Foi também nessa época que os craques estrangeiros de futebol e os cantores de música pop passaram a “inspirar” os pais brasileiros a dar nomes a seus filhos como Walter (de Fritz Walter), Michael Jackson (e inúmeras variantes como Maikel, Maicon, Mayke etc), Madonna, John Lennon, Elton John, Riquelme, Resenbrink etc. Nem preciso dizer que alguns desses nomes são escritos de maneira inimaginável e irreconhecível, pois geralmente os pais e os oficiais de cartório que fazem esses registros são semianalfabetos. Como resultado da popularização dos nomes “bonitos”, voltou a ser moda entre as classes médias e altas o uso de nomes tradicionais portugueses, para diferenciarem-se dos “nomes de pobre” que se tornaram tão comuns.

Tudo acima escrito explica a maioria dos nomes incomuns que vemos pelo Brasil, e também alguns dos mais engraçados, mas há casos que simplesmente desafiam qualquer tentativa de sistematização. Por que, em nome do Menino Jesus, alguém mentalmente são daria a uma criança um nome como esses?*

Se quiser encontrar uma lista de nomes curiosos, o melhor conselho é encontrar uma base de dados de nomes de cidadãos brasileiros. Um bom lugar para começar é pesquisar os elencos dos times brasileiros. Para isso, a Wikipédia é sua amiga.

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