Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

A Verdade Antiga

Publicado em: 24/04/2020

Há uma crença muito difundida segundo a qual os antigos conheceram a verdade e a transmitiram até nós. Por isso os livros antigos são “sagrados” e os tempos de antigamente são idealizados por quase todas as religiões. No mínimo o fazem porque, sem a afirmação de que eram tempos perfeitos seria impossível dizerem que seus livros e profetas seriam correspondentemente perfeitos. Uma religião que afirme que o futuro será melhor do que o passado é uma religião que programa a própria extinção.

Então é óbvio que a transmissão da verdade não é como a brincadeira de “telefone sem fio”. Não podemos acreditar que humanidade estava mais perto da verdade nos tempos antigos porque isso equivale a dizer que a verdade existia antigamente.

A ideia de que os antigos eram mais sábios porque eram antigos é uma falácia lógica conhecida como Argumentum ad antiquitatem (“argumento através da antiguidade”, em uma tradução literal). Considera-se falácia (ou seja, um erro lógico) porque embute a crença de que a verdade e a sabedoria estavam presentes no passado. Como não foi demonstrado que a verdade tenha um dia existido como uma coisa palpável e acessível, crer que os antigos estavam mais perto dela é ilógico.

A brincadeira do “telefone sem fio” é apenas uma brincadeira. Quando muito, ela pode ser usada para demonstrar que uma falha de comunicação pode surgir da necessidade de falar baixo e disfarçadamente e pela impossibilidade do ouvinte recorrer à leitura labial. Demonstra, também, de maneira simplória, o conceito de entropia: os erros criados pela troca sucessiva de mensagens sempre se acumulam e nunca são corrigidos porque mesmo as tentativas de corrigir se baseiam no entendimento do ouvinte do que deveria ter sido a mensagem original. Ou seja: o ouvinte “corrige” o que não lhe parece fazer sentido, mas a sua correção não reflete o modelo original, mas a sua concepção do que seria o modelo original.

Replicando isso para o contexto em que você citou, como nós não temos acesso direto às primeiras civilizações, a mensagem que temos delas reflete a correção que nós fazemos, preenchendo lacunas e tentando solucionar contradições. Não estamos restabelecendo a verdade, mas imaginando uma solução para as contradições da mensagem que recebemos.

Na brincadeira do “telefone sem fio” há um momento, no fim da fila, em que o responsável pela mensagem original vem esclarecer o que realmente foi dito. No caso da história humana, não haverá esse momento porque os povos do passado estão extintos e tudo o que sabemos deles são os vestígios que deixaram. Se estivermos interpretando tudo errado, nunca saberemos.

Mas isso nem é tudo. É comum na brincadeira que o responsável original pela mensagem crie um enunciado propositalmente complicado, ou que, no fim, o seu “esclarecimento” não seja fiel ao que disse, mas influenciado pelas versões que ouviu dos outros. Afinal, o objetivo da brincadeira é divertir.

Isso quer dizer que quem enunciou a mensagem pode ter sido malicioso ao criá-la para não ser entendida (“Manuscrito Voynich”) ou desonesto para oferecer uma “versão inicial” diferente da que efetivamente disse ao primeiro na fila.

Por que acreditamos que os antigos, mesmo que vivessem mais perto da verdade, seriam honestos ao transmiti-la? Será que também acreditamos que antigamente as pessoas eram mais virtuosas do que hoje? Não havia mentiras, traições, crimes e dissimulações naquela época? Será mesmo? Ou será que os antigos eram apenas “antigos”, em vez de humanos superiores e melhores?

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