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Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Golpes e Fraudes: A Culpa Nem Sempre é da Tecnologia

Publicado em: 19/11/2021

Há uma percepção generalizada de que o mundo ficou menos seguro e os espertalhões se sofisticaram, esta seria a explicação para que tanta gente perca dinheiro em golpes praticados na “internet”, um espaço selvagem e cada vez mais perigoso. Muitas pessoas vivem em pânico por causa disso e se privam de experimentar os confortos e oportunidades que a tecnologia oferece — mesmo assim, às vezes, ainda são atingidas, o que não as fará questionar se o isolamento é a resposta. Em vez disso, ficarão ainda mais receosas.

Esse medo exagerado da tecnologia e seu “perigo” não surge apenas da percepção dos riscos das novas relações de negócios e trabalho propiciadas pela informática. As invenções novas tem seus riscos, mas os inventos não ficam mais seguros só porque ficam envelhecem e nos acostumamos a elas. Os golpistas também se acostumam. Ter seu dinheiro dentro do colchão não é mais seguro, apenas lhe dá o conforto subjetivo de tê-lo à mão. Os perigos são diferentes, não necessariamente maiores ou menores, porque o risco costuma nascer de atitudes, não de meios.

A grande causa de tantos prejuízos em relações digitais não é que a tecnologia seja insegura. Tudo é inseguro. Respirar é inseguro! Esses golpes acontecem, na grande maioria das vezes, porque muita gente, em relação à tecnologia, age com pouco ceticismo. Há menos de trinta anos ainda era comum os nossos pais e avós zombarem das notícias dos jornais dizendo que “papel aceita tudo”. A música de minha geração para trás era cheia de menções a isso. Raul Seixas, nos anos oitenta cantava: “Eu nao preciso ler jornais / mentir sozinho eu sou capaz.” Hoje todos, mesmo nossos pais e avós, se jogam de cabeça em notícias e boatos que vêm “pelo ar” através de seus aparelhos móveis. Nem é mais necessário que o papel aceite o boato impublicável. Todas as mamadeiras de piroca vagam pelo éter e pousam nas mãos de toda a gente — e a maioria crê.

A mamadeira de piroca (e outros boatos mais ofensivamente falsos) explica a razão de tantos golpes e prejuízo: a grande maioria dos brasileiros é crédula, tola e autoconfiante. Disso decorre também ser vulnerável. Um povo que se educou na crendice, na superstição e na espera do milagre não tem ferramentas mentais para lidar com o fato de que há pessoas capazes de mentir de maneira crível. Não fosse assim, como pagariam dízimos absurdos a cultos exploradores e seus líderes corruptos? A mamadeira de piroca surge diretamente dos lotes comprados no Céu e das imagens que choram.

Mas surge, também, da autoimagem “malandra” que o brasileiro quer ainda cultivar. Muitos de nós ainda não nos conformamos com todas as dificuldades do mundo adulto, ainda esperamos milagres e ainda cremos que podemos mentir eficientemente para nossos “pais”. Esse brasileiro presa do pensamento mágico se vê como um escolhido e o mundo diante de si é uma cadeia de oportunidades que Deus oferece em contrapartida à sua fé. Aquele que crê contorna as cercas e os buracos do mundo, deixando os outros para trás. É uma religião de síntese “malandra”, o fiel que deseja bater as carteiras do mundo com a permissão de Deus.

Mas a fé não parece um dos melhores conselheiros quando sopesamos o fato de que ela nos induz a fazer escolhas com base no que mais queremos, em vez do que temos. Fé é comprar casa sábado esperando o sorteiro da loteria de domingo à noite.

Tudo isso serve para lembrar que a principal maneira de se evitar prejuízos é agir com racionalidade em vez de fé. Pobres não devem se guiar pela intuição. Pobres não são investidores, que aceitam uma medida de riscos. Nós, pobres, precisamos decidir com a razão em vez da fé porque não temos um plano “B”: para nós, fracassar o investimento pode significar que perdemos tudo.

Para evitar prejuízo, precisamos abandonar a crença na esperteza. Se fôssemos espertos realmente, seríamos ricos. O pobre precisa deixar a ideia de que é um “malandro” entre “trouxas”, procurando seu próximo “negócio da China”. A verdadeira malandragem é não se achar mais esperto que realmente é. Acreditando ser muito esperto é que o esperto não percebe alguém mais esperto.

Por isso recomendo que todos comecemos o dia recitando isto:

Eu sou ignorante de muitas coisas e pareço um paspalho aos olhos de alguns. Hoje alguém me confundirá com um otário e tentará fazer-me de tolo. Se eu não estiver atento, agirei como tal, essa pessoa terá razão e poderei ser o próxima a cair no golpe mais imbecil do mundo.

Aquele que teme ser tolo sempre será mais sábio que aquele que se crê o maior dos espertos. Sigo este mantra desde o dia em que caí num golpe bastante imbecil e tive ódio de mim mesmo por ter agido como um otário. Para não ter essas decepções, não é preciso muita filosofia, os conselhos de valor são simples. Eis alguns que dou, gratuitamente. Conselhos de alguém que trabalha em banco há quase trinta anos e raramente passa uma semana sem conhecer a vítima de algum golpe:

  1. Se é “bom demais para ser verdade”, não é verdade.
  2. Se é muito complicado para explicar, quem explica não entendeu ou está querendo esconder alguma coisa.
  3. Ninguém dá dinheiro sem um motivo e o motivo raramente é bom.
  4. Por mais que o negócio lhe pareça excelente, antes de fechar a compra, diga que não quer (não que “vai pensar”) e saia. Tome um sorvete e volte só no dia seguinte, depois de refletir bem, com a cabeça fria (o sorvete ajuda nisso).
  5. Se um estranho num telefonema lhe disser “não desligue agora”, desligue imediatamente.
  6. Se fez uma transação e o destinatário pedir mais dinheiro para concluir, não o envie. Você já perdeu o que enviou antes e perder ainda mais não vai mudar isso. Será sempre melhor perder o que já perdeu, do que também perder o que ainda tem.
  7. A maior habilidade “hacker” é convencer a vítima a contar tudo o que é necessário para “hackear” suas finanças. Quase nunca será culpa do “sistema”, geralmente é do usuário.
  8. Suas senhas bancárias só devem ser partilhadas com um grupo de quatro amigos: Pai, Filho, Espírito Santo e o Anjo da Guarda.
  9. O fato de uma pessoa afirmar ser de confiança é prova bastante de que não é de confiança. Confiança é conquistada com o tempo, a partir de atitudes.
  10. Salve o número de seu banco nos contatos de seu telefone, para saber quando realmente é ele que lhe mandou o SMS. Se o seu banco tem vários números diferentes para lhe enviar SMS, não é um banco que merece ter a sua conta.
  11. Não envie a ninguém fotos de seu cartão bancário. Menos gente se arrependeu de enviar fotos das partes íntimas do que de enviar foto do cartão bancário.
  12. Na internet sempre há alguém tramando um golpe contra você.
  13. Cartões de crédito devem ficar na mão de quem paga a fatura.
  14. Se o seu melhor amigo precisa de seu cartão de crédito, deixa de ser seu melhor amigo.
  15. Se você não pode dar uma geladeira de presente a um amigo, ou parente, não pode comprá-la para ele em seu nome.
  16. Não empreste dinheiro ao seu amigo que ficou negativado. Você pode lhe dar dinheiro, se quiser, mas não espere receber.
  17. Se seu amigo está com o nome sujo porque não pagou a um banco (que tem do seu lado o SERASA, o SCPC e o telemarketing), o que o leva a pensar que ele lhe pagará?
  18. Não deva dinheiro a pessoas físicas. Aquele que deve dinheiro “na praça” não tem moral e nem amigos (ninguém busca ser amigo de quem pode pedir empréstimo ou fiança).
  19. Seu telefone precisa ter senha numérica, impressão digital e, se possível, reconhecimento facial. Isso não é proteção para sua “privacidade” (quem tem telefone móvel já abre mão disso), é para que uma pessoa aleatória acesse seus arquivos.
  20. Os dados de seus cartões não devem nunca ficar vinculados ao Google Pay, Apple Pay ou semelhantes. Se é realmente preciso ter um cartão vinculado, crie um cartão virtual com exatamente o limite de dinheiro que se dispõe a perder eventualmente. Vincule esse cartão. Um dia você vai perder esse dinheiro. Hoje, amanhã ou depois, mas fatalmente vai.
  21. Crie um cartão virtual para cada loja virtual onde compra. Se ocorrer uma fraude você sabe de onde ela veio de quem reclamar.
  22. Tenha um horário típico para fazer suas transações bancárias, de preferência sempre no mesmo local, com o GPS ativado. Assim, o banco pode detectar com mais facilidade quando alguém tentar usar de madrugada as suas credenciais para fazer compras.
  23. A quase totalidade dos golpes cometidos contra pessoas idosas ou de meia idade é cometida por familiares ou pessoas próximas.
  24. Na maioria das vezes em que a vítima voluntariamente efetua uma transferência para o gopista, isto aconteceu porque a vítima se deixou pressionar. Pessoas grossas e impacientes costumam cair em golpes mais dificilmente do que pessoas polidas e calmas.
  25. Não se envia dinheiro para liberar transferência de dinheiro.

Sempre que surge uma nova tecnologia, há um temor de que seja usada para “dar golpes”. Mas não é a tecnologia que cria o golpe, ela apenas muda a sua forma. Antes de haver golpes com PIX, havia golpes com TED, transferências, depósitos em envelope, boletos… A matéria prima do golpe não é a tecnologia, é o tolo que se acha “malandro”.

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