Conto que traz elementos de ficção científica para o cenário brasileiro e foi escrito ainda nos tempos do Orkut, a fim de demonstrar a tese de que seria possível empregar a técnica de composição dadaísta para desenvolver pelo menos o conceito inicial de uma história de ficção. Utilizando o verbete da Wikipedia sobre buracos negros, um conto erótico, um artigo sobre ginecologia extraído de um periódico da Associação Médica Americana e uma tradução de um conto de Nelson Rodrigues para o inglês, tudo processado por um programa chamado “Bonsai Text Generator”, obtive uma intrigante sinopse para um conto que, depois de sucessivas revisões, resultou na história a seguir.
Shaul pensa no buraco negro que se aproxima, interrompe o gole de uísque para pensar nos tentáculos da destruição que se espraiam pelo cosmos em direção à Terra, prestes a engolfá-la em breve. Esse pensamento parece arejar sua mente com uma rajada de lucidez. De repente tudo se revela tão instável, e cada vez mais próximo.
— Há muitos anos — confessa a Randall — conheci uma garota lá em Minas Gerais. Era uma pobre coitada que vivia com a avó caduca e três irmãos excepcionais. Mas que bonita era a Romilda! Seu pai e mãe ainda eram vivos, eram gente simples, da roça, gente trabalhadora e honesta. Eu, um estrangeiro pálido em uma terra onde cabelos ruivos são mais ou menos como antenas de marcianos…
— Não me diga que vocês se envolveram?
— Sim!
— Shaul você não me parece o tipo de homem que seduziria uma pobre camponesa e a abandonaria. Nem mesmo uma camponesa goy com antecedentes genéticos tão aparentemente desfavoráveis…
— Isso foi antes das leis eugênicas, bem antes. Naquele tempo as pessoas se acasalavam como animais, e o Estado mantinha a sobrevida dos subprodutos.
— Você era então pouco mais que um moleque, as leis eugênicas estão em vigor no mundo todo há quase quarenta anos!
— Digamos que minha genética me beneficia, Randall. Sou bem mais velho do que você acha que eu sou. Mas não tenho o hábito de exibir minha carteira de identidade somente para resolver discussões de bar.
— O que houve entre vocês?
— Ora, o que poderia haver? Ela fascinada por mim, pelo estranho alienígena de cabelos vermelhos que nunca saía ao sol e que falava com um sotaque engraçado. Eu me deixei fascinar por ela, a estranha camponesa de cabelos pretos, mãos calejadas e lindo sorriso. O curioso é que hoje nem lembro mais da aparência dela.
— Ficaram pouco tempo juntos, então?
— Pouco, apenas o suficiente para eu ter que pagar pensão a um bastardinho.
Randall ficou chocado com a maneira como Shaul se referia ao próprio filho, e à mulher com quem o tivera:
— Shaul, eu não consigo ter sua frieza. Para mim toda mulher com quem transei, a menos que tenha me dado ótimos motivos, é como se fosse uma amiga. Eu respeito cada mulher com quem trepei como se fosse a minha esposa.
— Você é um bobo, Randall.
— E você um niilista.
Riram e continuaram bebendo cachaça com limão, sem preocupar-se com azia ou coma alcoólico. Não havia futuro mesmo.
— Quando ocorrerá a colisão, Shaul?
— Não sei, Randall. Ninguém sabe. O que sabemos é que ela é inevitável e que a essa altura nenhum artefato construído pelo homem conseguiria superar a velocidade de escape necessária para sair do horizonte de evento. É o fim, amigo.
— Como não percebemos antes?
— Randall. Você nunca entenderá. Você não é astrofísico como eu, mas um mero jornalista perseguidor de personalidades.
— Mas sou esforçado nas minhas histórias.
— Então aproveite que estou escancarando para o mundo o segredo. Ninguém tinha como saber porque o buraco negro era suficientemente pequeno para ocupar uma região minúscula do céu, menor que uma ponta de agulha, mesmo magnificado 100 vezes. Além disso, ele produzia uma lente gravitacional. Você sabe o que é isso, não sabe?
— Continue falando, Shaul. O que eu não souber eu pergunto depois ou então vejo na enciclopédia.
— Muito bem. A lente gravitacional o tornava invisível. Somente percebemos que havia algo errado quando as primeiras perturbações gravitacionais começaram a ocorrer, ainda na nuvem de Oort. Mas demorou quase uma década para que ele se aproximasse o suficiente para que pudesse ser detectado.
— E o que vai acontecer?
— A humanidade está prestes a descobrir, dentro de poucos anos, o que realmente acontece dentro de um buraco negro. Isso se as perturbações gravitacionais não provocarem colisões catastróficas entre os planetas. Com sorte seremos ejetados do sistema solar e ficaremos perdidos no espaço interestelar por alguns milênios até, talvez, sermos capturados por outra estrela. Estas catástrofes, qualquer delas, podem ocorrer até antes do próximo drinque, só no ano que vem, ou daqui a vinte anos. A única coisa certa é que as crianças que hoje nascem nunca chegarão a ter carteira de motorista.
Randall sopesou seu copo recentemente cheio de cachaça, lambeu a fímbria de açúcar na borda e perguntou outra vez:
— Alguma chance de ele passar ao largo do sistema solar e não nos ferrar completamente?
— Existe, mas é bem pequena. A maior probabilidade é que, nesse caso, perturbe terrivelmente as órbitas dos planetas. Isso até já pode estar acontecendo, é que faz um mês que me afastei do observatório. Então não sei.
— E enquanto a catástrofe não vem. O que pretende fazer?
— Muitas coisas que não tinha feito antes. Talvez até procurar pela Romilda.
— O buraco negro… De que tamanho é?
— Não sabemos. O buraco inicialmente detectado desapareceu diante dos instrumentos quando o Grande Colisor de Hádrons mediu pela primeira vez sua influência em uma quantidade anormal de partículas geradas pela sua interação com os raios cósmicos. Mas continuamos sentindo a presença de alguma coisa grande que se aproxima.
Randall agradeceu a entrevista e saiu, enigmático e calmo, levando seu furo de reportagem. Shaul Reismann o observou tomar um táxi e desaparecer na noite. “Esse tolo goy não acreditou em uma vírgula do que eu disse” — constatou.
Uma dançarina se aproximou, usando uma fantasia felina, com rabo grosso firmado por um arame. Tinha cômicas orelhas presas à cabeça por um arco de plástico. Acompanhou-a desde o momento em que a viu surgir dos infectos fundos da baiúca, passando através da cortina de contas de plástico como se através de um esfíncter. Tinha um sorriso assustador e seus olhos verdes artificiais eram um anúncio do que era oferecido por sua púbis e embalado por sua roupa ridícula. Shaul a cobiçava apenas pela beleza do rosto, apenas pelo que passa. O eterno não tem graça quando morreremos amanhã.
— Deseja alguma coisa especial hoje, gringo?
Shaul ajuntou seus conhecimentos semi-esquecidos de português para murmurar um agradecimento que quase a ofendeu. Não se sentiu mal com isso. Tinha nojo daquela mulher pública e malemolente cujos abraços eram feitiços pestilentos que destruíam famílias e reputações. Tinha nojo, mas queria. Mas queria uma melhor. Esperaria a vez.
Em algum lugar no fundo de sua contraditória mente a outra metade de sua personalidade teve uma ereção ao ver a felina afastar-se, maravilhou-se com seu perfume de xampu de farmácia. Essa metade era lúcida, sabia que somos precários e que amanhã não existiremos. Essa metade sabia que no fundo todos, belos e feios, sujos e limpos, estaremos idênticos além do horizonte de eventos. Essa metade acenou para a mulher com uma desculpa. E foi ela que a abraçou de um jeito que namorados antigamente faziam.
— O que é isso, darling? – ela se surpreendeu.
— Perguntou se preciso de algo especial hoje. Bem, preciso. Quero alugar uma amiga.
— Uma amiga? Para quanto tempo?
— Não sei, talvez só por hoje, talvez por dezessete anos, onze meses e nove dias.
— Ai, que complicado!
— Não precisa explicar. O que quero é que venha comigo, ouça minha música, me deixe fazer carinho nos seus cabelos, chupe o meu pau devagar e termine a noite sem me roubar nada. Quanto custa isso?
A mulher o olhava atônita, certamente pensando que ele era um desses maníacos estrangeiros que vêm ao terceiro mundo brincar de estripar gente nos submundos. Saiu de perto dele sem dar preço e sem olhar de volta.
“Não sei — pensou Shaul consigo mesmo – se foi algo que eu disse ou se realmente o que eu quero não tem preço.”
Saiu de lá com uma lata de cerveja na mão, andando devagar pela noite da Lapa. Àquela hora a Associated Press já estaria divulgando ao mundo todo que o cientista desaparecido fora encontrado bêbado e com a barba por fazer em um bar do Rio de Janeiro. Talvez o maldito Randall até tivesse coragem de contar a história do buraco negro, ou talvez a vendesse a um tablóide.
“Ainda bem que não vou morrer virgem e com hemorróidas — filosofou enquanto acenava para as putas da rua.”
O céu não dava nenhuma notícia do iminente cataclisma. Estava tão brando como normalmente o céu das cidades é, leitoso e sem estrelas. Pensava nas fronteiras do espaço desconhecido, nas dobras do improvável, onde se escondia o misterioso corpo celeste negro e invisível que crescia à medida em que se aproximava, trazendo consigo o inarredável fim de tudo.
Passou-lhe pela cabeça a frase “a última violência da natureza contra o homem.” Ridícula: muitas e piores haviam sido as violências do homem contra a natureza.
— No fim, não conseguimos nocautear você, sua vagabunda. O que é uma reles poluição atmosférica contra esses tentáculos de morte que você joga contra nós?
Brandiu os punhos contra o céu, os olhos marejados de lágrimas. Pela primeira vez na vida sentiu remorsos por Romilda, pelo filho cujo nome nem sabia, aliás, nem lembrava o sexo. De repente, diante da perspectiva de morrer tão logo, certas coisas pareciam tão eternas, tão importantes. Alugaria um carro no dia seguinte e tentaria encontrar a minúscula cidadezinha onde ela morava. Tentaria saber como estava, como estava seu filho. Decerto estavam bastante bem, pois lhes mandava mensalmente o equivalente a três salários mínimos do Brasil. Com esse dinheiro, e mais o que o resto dos moradores da casa recebesse, de aposentadoria ou de salário, certamente a criança teria tudo do bom e do melhor. Talvez até um pai. Uma mulher com três salários mínimos de renda é um excelente partido em lugar pequeno. Instintivamente voltou a odiar Romilda. Mas depois teve a certeza de que alugaria mesmo o carro.
Lembrou-se de uma antiga palestra que ouvira de uma física indiana durante umas férias que tiraram em Fiji:
— Tudo o que somos já foi parte de alguma outra coisa, deste planeta, em outro momento no passado. Cada átomo já esteve em cada lugar que você vê, se você pensar na escala de bilhões de anos que é o tempo que a Terra tem durado. Hoje você é você, mas seus átomos já foram lava, dinossauros, árvores, fezes, asteroides… Eu penso que talvez esta seja uma forma racional de conciliar o conceito hindu de transmigração com a ciência.
Na época Reismann apenas sentira asco de pensar que os átomos de seu corpo já haviam sido todo tipo de coisas nojentas. Especialmente os de carbono. Estes não são mesmo confiáveis.
Chegou ao hotel e subiu até seu apartamento. Despiu-se e tomou um longo banho. “Para que economizar água? Logo não existirá mais água nem aquecimento global, nem nada para me atazanar a consciência.” Enquanto se enxugava o telefone tocou. Era Randall.
— Como me achou aqui nesse hotel?
— Tenho minhas fontes, Shaul. Quer jantar comigo?
— Por que eu quereria jantar com um cara que conheci hoje?
— Sei lá, esse cara não ter mais ninguém conhecido no Rio de Janeiro é uma razão para você lhe dar uma recepção civilizada.
— Tudo bem, mas que seja no restaurante do hotel mesmo.
Eram onze da noite quando Randall chegou. Desta vez não estava fantasiado de turista americano.
— Certamente você já deve ter conhecido algum brasileiro, e certamente um de bom coração.
— Por que?
— Porque já lhe explicaram como se vestir nesse país sem ser parecer um palhaço.
— Ora, eu posso ter sido um palhaço gringo quando arrumei minha mala, mas eu aprendo rápido observando os outros.
Era verdade. Seus óculos discretos e a feliz coincidência de ser negro o tornavam indistinguível de um brasileiro, desde que não abrisse a boca, pois só sabia falar um carregado scots.
A única mulher no saguão era uma africana alta que falava aos cochichos em seu telefone celular.
— Aquela mulher, Randall. Você a conhece?
— Já a notei. Não conheço.
— Tenho certeza de que é uma agente de algum serviço.
— Como sabe disso?
— A gente fica vidente quando sabe que vai morrer.
— Shaul, em nome desses velhos tempos…
Reismann ergueu o brinde mecanicamente.
— Você está querendo alguma coisa, Randall. Eu pressinto.
— Sim. Quis falar com você por causa de algo que me ocorreu. Se é verdade que é impossível observar o estado de um objeto a nível quântico sem mudar sua trajetória, e impossível observar sua trajetória sem mudar eu estado, não será que a observação do estado desse buraco negro o desviou de sua trajetória original? Qual é o tamanho dele? Quanta energia seria necessária? Quanticamente falando não se pode interagir sem influência.
— Randall, você é um jornalista. Não é um físico. Então não se preocupe com esses detalhes. Você nem sabe calcular, talvez ninguém saiba sem a ajuda de um poderoso computador. Eu nem tenho os dados completos comigo. E as coisas não são iguais no nível macro e no nível quântico.
— Você quer que eu não me preocupe, mas esse “pequeno buraco negro” vai destruir o mundo.
— Mesmo assim é uma péssima ocasião para querer aprender sobre o assunto.
— Não existe ocasião ruim para aprender, Shaul.
— Antes da morte.
— Se fosse assim não valia a pena aprender nada. Toda a vida de um ser humano é “antes da morte”. Shaul, são dezoito anos. Vamos fazer o que nesses dezoito anos. Esperar a morte chegar?
— Bem, Randall. Uma coisa eu sei. Quero morrer antes. De preferência, bêbado.
E virou a dose de cachaça pura que o garçom lhe trouxera.