“Eis que bem sabemos que certas pessoas, menores de idade no caso, são boas na escrita, desenvolvem bons textos. Porém, será que as editoras aceitariam obras destas? Eis a simples questão” — perguntou no Orkut um jovem que acha que escreve os best-sellers do futuro.
A questão não é simples, não. As editoras não tem qualquer preconceito específico contra menores de idade: as mesmas dificuldades enfrentadas por um petiz para publicar seu livro serão enfrentadas por um adulto. Mas eu não acredito que seja fácil para ninguém, especialmente se você não reside num grande centro e não tem algum contato com o meio.
A primeira coisa a se considerar é que é uma excepcionalidade que alguém tão jovem escreva realmente bem, talentos do quilate de Rimbaud não dão em árvore. Depois, mesmo escrevendo bem, dificilmente alguém tão jovem está pronto para publicar. Não sem a influência e a revisão de um Verlaine.
Mas abstraindo totalmente a questão objetiva da idade e a subjetividade da “qualidade” (coisa que todo mundo acha que tem e fica ofendido se alguém diz que não), entra em questão como ter acesso ao mercado editorial. Embora eu não tenha a mínima ideia de como esse é mercado é visto de dentro para fora, ou seja, pelas equipes das editoras, o que eu vejo de fora para dentro é preocupante.
Existe por parte do público brasileiro um fascínio pelo estrangeiro, que faz com que os escritores jovens cheguem a adotar pseudônimos estrangeiros e batizem seus personagens de Johnnies e Steves. Entre os originais estrangeiros e a obra de um jovem brasileiro que imita Stephen King ou J. K. Rowling, as editoras sempre preferirão publicar os originais. Sabe por que? Os johnnies tupiniquins podem vender ou não, mas os originais estrangeiros já venderam, já provaram que são bons e podem ser rapidamente traduzidos a tempo de serem anunciados como “os mais vendidos na Lista do New York Times”.
Isso quer dizer, meu garoto, que o seu sonho de ser descoberto cedo e ganhar dinheiro escrevendo seus livros é uma ilusão.
Há editoras que até dão certo apoio aos novatos (no sentido de que publicam se eles pagarem), mas o público também é arredio. O público desconfia. Eu ainda não vi nenhum johnnie chegando ao estrelato literário — e duvido que veja — porque é mais barato em termos de custo e oportunidade para uma editora pegar o mais recente sucesso literário americano, alemão ou inglês.1 Há menos investimento em uma republicação do que na publicação de um original de qualidade duvidosa.
Mesmo que não fosse totalmente assim, confesso que não desejo nenhuma boa sorte aos johnnies. Desejo mesmo é que continuem dando murro em ponta de faca, que se frustrem e desistam, que percam cada centavo que investirem em si.
Sou um nacionalista: acredito que a única chance de liberdade e prosperidade que temos está em lutarmos por nossos interesses em vez de servir aos interesses estrangeiros. Para nós, nosso país é nossa casa. Para o estrangeiro, ele é uma colônia, um bordel para as férias ou uma praia bonita. E entre as muitas maneiras de defender nossa liberdade e nossa prosperidade está lutar por nossa cultura — que inclui nossa língua, essa mesma que hoje em dia as pessoas acham que não precisa escrever direito nem falar bem.
Muitos desses que acham que escrever bem é elitismo estudam inglês e aprendem um padrão literário muito mais conservador que a norma culta do português, a tal Received Pronunciation, um instrumento da centralização cultural e política do Reino Unido e uma das armas que mataram línguas minoritárias. Esses mesmos que adoram a “espontaneidade” da língua do povo aprendem inglês com regras derivadas de manuais de redação muito mais normativos do que a gramática do Napoleão.
Vivemos hoje um processo de assimilação semelhante ao vivido por países que sofriam violentos processos de colonização. Processos que resultaram na morte de línguas regionais e no estabelecimento impositivo do inglês como “língua civilizada”. Muito já se escreveu sobre o estupro da Irlanda e do País de Gales nas mãos dos ingleses, mas pouca gente lê. É curioso que tanta gente aceite a hegemonia do inglês, considerando que há bem pouco tempo odiar os ianques era uma espécie de esporte nacional por estas bandas (ou seja, como esporte, não era levado realmente a sério).
A diferença é que o Brasil não está sendo submetidos a um processo de “doma e castração” semelhante ao executado pela Espanha na Galícia ou pela Inglaterra na Irlanda. Não é pela força que o inglês se impôs, mas pelo fascínio. Somos tolerantes demais à influência estrangeira. Não é questão de ser xenófobo, é questão de ser realista e ter amor próprio.
E o que isso tem a ver com os jovens talentos? Muito. Os jovens talentos nascem nesse cenário de imposição do inglês, nascem sem auto-estima, condicionados a pensar que não se consegue escrever uma boa história de terror ambientada no Brasil ou que personagens brasileiros não funcionam em histórias de suspense.
Eles sentem isso porque antes de terem qualquer “odiado” escritor brasileiro eles leram traduções baratas de best-sellers americanos e aprenderam a amar nomes e lugares que não nos pertencem e aos quais não pertencemos.
Desta forma, mesmo que tenham talento, será apenas por exceção que algum deles terá maturidade e cultura para produzir uma obra relevante, dotada de identidade própria, desimpedida de tapa-olhos. E se produzirem, será ignorada em um cenário onde características brasileiras são vistas como mau gosto ou caricatura no texto literário. Tal como tenho notado nas reações das pessoas ao meu projeto “Serra da Estrela”: personagens e lugares são todos inspirados no interior de Minas Gerais, mas as reações dos que leem os primeiros capítulos avulsos que andei mostrando são de estranhamento; tendo havido quem disse ter gostado por causa do ar de “exotismo”. Para a juventude brasileira, o Brasil é exótico.
Os pobres johnnies que sonham em ser escritores ainda padecem de uma ilusão cruel: a de que bastará escrever bons livros. O conceito de “bom” é relativo. Um livro escrito por um adolescente de quatorze anos pode ser muito “bom” considerando o que se espera que escreva alguém dessa idade, mas não ter, ainda assim, nenhum valor perante o mundo literário. Afinal, a obra literária não é avaliada em termos relativos, ou em termos de recompensa ao esforço, mas em termos absolutos. A conseqüência disso? Alguém que é elogiado como um grande talento na adolescência e acha que já está pronto, vai se decepcionar quando lhe mostrarem as fraquezas de seu texto. Não percebe que à medida que cresce (física e mentalmente) precisa continuar em evolução para continuar sendo bom. Caso contrário, a idade o ultrapassa. Ser bom aos doze é diferente de ser bom aos vinte.
Esses jovens, quando chegarem aos vinte e cinco anos, olharão para trás e dirão: “mas todo mundo dizia que eu tinha talento! por que não deu certo?” Não deu certo porque quando um adolescente passa a ser adulto ele precisa escrever como adulto. As pessoas fazem certos elogios a quem tem quatorze anos na esperança de que se animem e cresçam. Mas quando você tem vinte, está na hora de criar vergonh e parar de esperar elogios.
Por fim, existe em nosso país toda uma estrutura para fabricar iludidos literários. Quando você está na escola sempre tem o jornalzinho que vai publicar suas toscas quadrinhas como se fossem obras primas. Tem o professor que escreve “genial” à margem de sua composição. Tem a revista literária que tem um espaço para divulgação de “talentos juvenis”, tem o projeto da Prefeitura que busca escritores mirins etc.
Mas quando você deixa de ser um estudante que escreve boas composições, descobre que não há, fora do ninho morno do sistema educacional, nenhuma estrutura para se desenvolver. Nenhuma revista que aceite crônicas e contos, nenhum jornal de poesia. Apenas a internet, e seu grande silêncio digital.
E você já não é mais um adolescente que é elogiado por sua iniciativa de escrever, agora as pessoas te criticam pelo que você realmente sabe fazer.
É um golpe que vitima muitos talentos.
Este texto foi escrito antes do fenômeno Raphel Draccon, um johnnie que deu certo, não sei como.↩︎