Há uma certa magia nas grandes, labirínticas cidades. Magia que seduz principalmente os acostumados com os horizontes curtos de Minas Gerais, onde o hábito de contemplar montanhas bloqueia os voos da imaginação de quem não chega aos topos para descortinar a vista aberta. Certas cidades possuem uma atmosfera labiríntica e um fascínio ainda mais palpável que outras, porque justamente ali o arcano e moderno podem ser vizinhos. Tal é o caso de Juiz de Fora, com seus quarteirões de formatos estranhos, variando entre quadrados, paralelogramos e triângulos, com suas avenidas retas e, mais que tudo, suas galerias que escondem lojas e outra galerias que escondem lojas e outras galerias, que escondem, no fim de corredores onde nunca o sol chega diretamente, lugares inauditos, cheios de experiências que fazem as pupilas do jovem interiorano se expandirem: lojas e outras galerias que escondem…
Há uma destas que parece a entrada de um universo de fantasia, portal para um tempo-espaço onde as leis da Física e o rumo da História seguiram uma direção alternativa. Você entra ao lado do XXXXXXXX, passa por entre as mesas de um restaurante, penetra por um sombrio corredor iluminado por lâmpadas fluorescentes fortes, onde abundam lojas pequenas, com amplas vitrines de vidro que expõem de roupas a discos a bugigangas de estilos que destoam do comum. As pessoas que frequentam o lugar se vestem de um jeito diferente, maquiam-se mais e cortam o cabelo de modos incomuns.
Mas não é exatamente nesta primeira galeira que se acha aquilo que me levou a escrever. Se chegar ao fim dela, perceberá uma bifurcação, duas galerias dentro do fim da primeira galeria. Cada uma destas galerias possui outra bifurcação no final, segundo me disseram, e é possível que este esquema fractal se reproduza ao infinito levando a outras dimensões. É possível porque nunca fui verificar e o desconhecido esconde a possibilidade do impossível. Ou estavam só exagerando…
Mas também não foi neste improvável labirinto que encontrei a livraria de que vou contar, mas em uma escada estreita que ali houve em certo momento, e devo enfatizar essa curiosa condição temporal, no meio da galeria secundária, à direita.
Subindo alguns degraus, porque ali não havia há elevador, cheguei a uma sobreloja, onde cômodos comerciais abrigavam tipos diversos de negócios e ócios e também portas fechadas, que pareciam não ter sido abertas há meses, e escadas escuras que adentravam partes possivelmente desocupadas do prédio.
Foi nesse lugar que eu encontrei uma curiosa livraria.
Eu sei, Beto, que você é um cético empedernido, desses que descrê do café que está na xícara se ele não lhe queimar os lábios, mas acredite, pelo menos, em mim que sou seu amigo e conhecido há tantos anos. Realmente estive na livraria Borges & Bond. Ela existe, aqui em Juiz de Fora.
Beto sorriu amarelo enquanto mexia o açúcar na xícara de café e me disse honestamente que não acreditava:
— Você sabe muito bem, meu caro, que não sou dos que aceitam coisas místicas. Porém lhe digo que o mais difícil não é crer no impossível, no inexistente. Fazemos isso todos os dias quando, pelo menos por alguns instantes, enquanto assistimos um filme, lemos um livro ou ouvimos uma história boa. Enquanto a magia das palavras vigore, a mente racional aceita que dragões existem, que os mortos voltam à vida, que varinhas mágicas funcionam ou que duendes concedem desejos. São coisas impossíveis, são seres que não existem. No entanto, pelo feitiço da narrativa, somos capazes de crer, ou de fingir que acreditamos nessas coisas. Mas é muito mais difícil acreditar no improvável. É mais fácil admitir que exista uma bomba capaz de explodir o planeta do que acreditar que um herói aleatório pode desativá-la digitando a senha certa em um painel de controle, ou mesmo cortando um entre cinco fios. O que você me pede não é que eu creia na existência de um lugar que não existe, mas que, entre todas as cidades de todo o vasto mundo, esse lugar se manifestou exatamente aqui, a duzentos metros de onde estamos.”
O argumento dele era forte, mas eu insisti a implorar que me concedesse o benefício da dúvida. Afinal, eu também sabia que era impossível e, mais do que ele, compreendia o peso fatal da improbabilidade; mas as coisas não acontecem porque são prováveis, elas acontecem porque aconteceram. Falar de probabilidade é falar do que ainda não aconteceu, mas pode vir a acontecer. Não se aplica probabilidade ao já acontecido.
— Eu duvido, mas aceito ir contigo. Não que eu espere ter a prova, ou que desconfie do amigo, mas esse lugar de que fala é algo de que já ouvi falar antes, como você. Circulam várias histórias sobre ele, nenhuma provada. Parece haver uma curiosa imanência do conceito, que ele quer e não quer se manifestar. Então se manifesta nessa curiosa lenda urbana que corre na boca de gente como você e eu. Com alguma boa vontade, posso admitir que você encontrou uma livraria comum, a que algum gaiato, por amor de chamar a atenção, deu o nome de “Borges & Bond”. Mesmo assim, ainda vale a pena ir procurá-la. Está um dia feio e chuvoso, será bom circular por lugares cobertos, ainda mais se pudermos encontrar mais pessoas que conhecem a lenda.
Eu não tinha noção de que houvesse tal lenda. Sim, já lera exatamente uma vez sobre a Borges & Bond e era, para mim, tudo que havia para se saber sobre o tema. Mas Beto era mais ligado que eu aos movimentos tectônicos da internet, interagia com gente de muitas partes — poliglota que era. Se ele me dizia que agora havia uma lenda urbana a circular pelo mundo, quem era eu para duvidar?
— Quando foi a primeira vez que ouviu falar da B & B, Beto? Eu mesmo só li a respeito uma única vez.
— Sim. Da primeira vez que li sobre o lugar foi numa Playboy muito antiga, que estava na coleção de meu finado pai. Era um conto traduzido, de um americano chamado Nélson Bond. Achei uma história do caralho. A segunda vez foi quando descobri a que o tal Bond e o Jorge Luis Borges tinham se estranhado com acusações recípcrocas de plágio por causa da mesma ideia. Mas ainda nos anos 1970 os dois se encontraram, se entenderam definitivamente e, ao que consta, fundaram a Borges & Bond em Buenos Aires, onde ela esteve até os primeiros meses da ditadura. Depois disso, não se soube mais da livraria. Borges se tornou notoriamente um recluso, com o passar do tempo, e Nélson Bond nunca gostou de falar sobre esse tema específico. Entre os iniciados, o que se fala é que a livraria que eles fundaram era uma coisa realmente mística, talvez uma ordem de magia ritua, algo do gênero. Lorotas, claro. Deve ter sido mesmo uma livraria ou clube literário, que a ditadura fechou e destruiu (como tantas outras coisas boas), e daí surgiu a lenda. Ditaduras adicionam uma camada de mistério a histórias corriqueiras.
Minha cabeça começou a rodopiar com a compreensão de algo maior em ação. Uma ideia dessas que aparece, às vezes, em vários lugares ao mesmo tempo. Jung chamava isso de “sincronicidade”, chamo de mero efeito da quantidade limitada de possíveis histórias que alguém pode contar. Eu não tinha lido Nélson Bond e francamente não via nenhuma conexão entre a “minha” livraria e aquela imaginada por Borges, causadora da treta com Bond. Seria possível? E como essa história obscura, que a maioria dos biógrafos nega ter acontecido, pôde inspirar essa curiosa lenda da livraria obscura que visita cidades aleatórias do mundo, apesar de não existir?
Tinha sido por acaso que eu encontrara Beto naquela manhã. Fora, na verdade, ele quem me encontrara. Eu tomava um café e comia uma fatia de broa de fubá em um bar qualquer da Rua Halfeld enquanto me preparava para um dia de feriado que eu curtiria no comércio da cidade grande. Éramos amigos de muitos anos, mas há um bom tempo não nos víamos. Por isso ele, que me viu pelas costas antes que eu o notasse, fez questão de entrar para me cumprimentar, uma grata surpresa para mim. Ele se sentou comigo, pedir outro café e gastamos uma boa hora ali, colocando os velhos assuntos em dia. O assunto da livraria surgira espontaneamente, um entre vários.
Não sei direito como foi que surgiu. Lembro-me vagamente de um comentário meu sobre livros que parecem maravilhosos, mas são tão ralos e ruins de conteúdo que talvez não devessem ter sido escritos, que deviam ter ficado no sonho do autor, mais talentoso em sinopses e títulos que para contar a história. Beto concordara com essa crítica — ele gostava de concordar comigo — e só acrescentou que alguns livros talvez tivessem sido escritos, em um mundo melhor.
— Um mundo melhor — eu o interrompi — é apenas uma probabilidade. Uma em que não tivemos a sorte de nascer.
Eu dizia isto quando a lembrança da livraria, que eu visitara meses antes, clicou em meu cérebro e invadiu a minha língua com a urgência de a tudo contar, nos mínimos detalhes.
Então, tida a conversa com que eu comecei esse conto, pagamos nossos cafés e saímos daquele bar em direção ao XXXXXX, para entrar na galeria fractral que nos levaria à livraria dos livros que seriam escritos em um mundo melhor.
Eu ainda não havia utilizado a expressão “livraria do futuro do préterito”, só havia mencionado o nome “Borges & Bond”. Isso era suficiente entre os aficcionados. Nenhum adjetivo a mais. Na verdade, eu nem acredito que tenha sido eu que cunhei a expressão. Beto e eu conversamos sempre de uma maneira tão automática que, muitas vezes, quando tento lembrar um encontro que tivemos, eu nunca sei o que eu falei. Minha mulher, que é psicanalista, diz que isso é normal, que é o meu inconsciente reconhecendo como minhas as palavras que eu o induzi a dizer, e que ele deve se sentir da mesma maneira em relação a coisas que me faz dizer. Tenho minhas dúvidas. Beto é mais perspicaz, já notei isso uma pá de vezes. Mais imaginoso, mais formal. Eu sou só um ledor compulsivo e pouco fantasio.
Levamos menos de cinco minutos para chegar à galeria. Esse breve momento eu passei revendo a minha entrada na “Borges & Bond” e tentando relembrar exatamente como chegara lá. Havia três lojas na galeria, provavelmente abertas há poucos meses, que eu ainda não conhecia. Duas delas à esquerda, uma à direita. Entre as duas lojas da esquerda havia a escada que levava à galeria do segundo andar, onde eu estivera por uns dez ou quinze minutos, se muito.
Não me lembrava mais de muitos detalhes dessa segunda galeria. Cada vez que tentava visualizar os detalhes do lugar, tudo que me voltava à lembrança era um corredor ladrilhado de cinza, paredes brancas manchadas de sujeira, que pareciam… cinzas. No dia mesmo eu teria estranhado, mas em minha memória não parecia inesperado que as lojas ali só tivessem letreiros em preto, branco… e cinza. A livraria era no fundo do corredor, onde ele se bifurcava. À esquerda e à direita as lâmpadas do teto estavam apagadas, ou nem existiam. A porta da livraria estava fechada e não havia letreiro. O cartaz de cartolina verde água, que agora sei ser indefectível, tinha uma moldura floral impressa, com diversos tipos de flores formando uma ramagem elegantes. Olhando mais de perto não eram flores, eram letras manuscritas que formavam em torno do espaço em branco uma guirlanda escrita “Librerías Borges y Bond”. De muito longe eu já havia lido isto, apesar das letras complicadas. Mas só de muito perto eu li que o cartaz anunciava o fechamento para almoço.
Olhei através da vidraça e vi três estantes perpendiculares em relação à porta. Tive a impressão de ver outras, mas essas três, tão grandes, bloqueavam a luz do sol que entrava pela janela dos fundos. Uma luz estranhamente arroxeada, segundo me lembro, que acinzentava e esfriava tudo a que tocava. Por causa da penumbra deitada pelas grandes estantes, a livraria parecia se resumir à nesga de sol que chegava ao balcão.
Tive vontade de andar entre as prateleiras e descobrir que livros havia lá. Olhando de fora eu não conseguia ler nenhum título ou identificar nenhuma figura familiar. Cerrei os olhos e os reabri, mas sempre a luz violácea daquele sol nos fundos me ofuscava e me impedia de discernir detalhes dos livros nas estantes. No dia mesmo eu não me dera conta de nada estranho. Já disse que sou um tanto lento para essas coisas.
Pois é, eu tive uma vontade estranha de comprar aqueles livros, ou de, pelo menos, pegar na mão algum deles. Tive uma sensação de que, fazendo isso, desdobraria algum mistério. Eu não costumo me fazer muitas perguntas quando tenho desses calafrios. Seguir as sensações costuma ser uma coisa recomendável, quando você tem um temperamento artístico. Então, nas três ou quatro vezes na vida em que tive esses impulsos, sempre os segui. Sempre em vão. Impulso ou não. A realidade é que se impõe.
— “Temperamento artístico” é coisa de amadores.
Disse isso em voz alta, sem quase perceber. Ou melhor, nessa voz entre os dentes que os outros já ouvem, a voz que a gente usa sem querer quando acha que está resmungando só para si. Beto me ouviu e perguntou do que eu estava falando. Corei de vergonha, eis que tenho essa mania de falar sozinho. Desde criança já me zombaram muito isso — uma das razões, talvez, de eu me segurar tanto para não imaginar. Eu costumava ter conversar sozinho quando estava imaginando.
Respondi que era só uma frase de efeito que me havia ocorrido, uma que há muito tempo eu tentava lembrar e que não queria esquecer. Assim gargalhamos e entramos na galeria onde houve a escada.
Mas ainda tenho de lhe contar o que acontecera meses antes, no dia em que eu estivera na “Borges & Bond”. Aqui é que a coisa entra no território das cores borradas.
Estava eu, como já disse, com a cara encostada na vidrança, curioso dos livros que havia naquelas três ciclópicas estantes de madeira preta. Então, sem que eu notasse, uma mulher chegou e abriu a porta. Ela não era mais alta do que eu, nem muito mais baixa. Não era gorda, nem macérrima e não consigo lembrar de nenhum detalhe definido de sua aparência, nem mesmo se era jovem ou velha. Sei que usava uma roupa clara, talvez… cinza, e tinha o cabelo preso, ou bem curto. Imagino que era um cabelo preto, ou castanho escuro, mas só imagino isso porque me teria chamado a atenção se fosse ruiva ou loura.
Ela deixou a porta fechada, mas não trancada, virou o cartaz da vidraça e foi para os fundos. Imaginei que encostara a porta porque ligaria o ar condicionado, então entrei, sem nenhuma cerimônia.
O balcão do caixa ficava à direita, obviamente junto à porta. Lá não havia ninguém. Entrei entre duas das estantes e comecei a correr os olhos pelas lombadas dos livros, tentando ler os títulos.
Digo “tentando” porque não me lembro de ter conseguido. Logo comecei a perder a noção do que fazia, como se alguma força me puxasse pelos cabelos, para fora de meu corpo e de minha consciência. Então comecei a ter a sensação de que girava para a esquerda, como se uma chave invisível tentasse me desparafusar da realidade física. Gradualmente fui perdendo a noção do que fazia, de onde estava e até mesmo de quem eu ainda era. Os livros se tornaram intangíveis e a luz roxa daquele sol se derramou dentro da livraria como café quente saindo de uma garrafa.
Por um momento eu tive a impressão de que estava desmaiado, talvez inexistente, e flutuava como um peixe em um aquário cheio de leite em vez de água, ou como um cavaleiro dentro de uma armadura vazia. Então ouvi uma voz, duas ou três vezes, que me dizia que eu não deveria estar ali, que eu não pertencia àquele lugar. Da terceira ou quarta vez que a ouvi, consegui responder: “Eu sei, eu sei”.
Com isso escutei bem perto de mim um tilintar metálico e um pisar pesado. Uma pressão em torno de minha cabeça fez os meus ouvidos zunirem. Comecei a girar lentamente para a direita, ainda bambo sobre as pernas. Gradualmente me firmei e o giro para a direita ficou mais fácil e mais rápido. Por fim as lajes pesadas de minhas pálpebras subiram sem esforço e eu me achei de pé, mas ainda cambaleando, fora da galeria. Eu estava diante de uma das lojas, entre duas outras, e uma jovem com dois piercings em cada orelha entortava o pescoço para me encarar e me perguntava se eu estava me sentindo bem. Ela era loura, mas partes de seu cabelo estavam pintadas de rosa e de azul, era alta, mas usava botas de cano longo e salto alto, estava um pouco acima do peso, mas tinha o rosto curiosamente longilíneo, usava um vestido esvoaçante de cores berrantes e seus olhos tinham lentes de contato verdes. Ela não tinha como ser mais diferente da mulher que abrira a livraria, mas, ao mesmo tempo, me passava a sensação de que todo aquele exagero de cores e formas era um disfarce para uma aparência em que ninguém teria prestado atenção.
— Onde estou?
— Galeria XXXXXXX, Rua Halfeld, Juiz de Fora, Brasil, Planeta Terra, Via Láctea, Grupo Local de Galáxias… — ela ria enquanto falava e havia em sua voz uma curiosa estranheza.
— Quem é você?
— Essa resposta eu não posso lhe dar, meu rapaz. Porque ainda nem sei quem você é, ou o que estava fazendo aqui, com essa cara toda…
Eu lhe disse que não sabia. Sim, eu disse. Por alguns instantes, mesmo depois de abrir os olhos, eu ainda não sabia quem era. Ainda não sabia se era. Apenas tinha a vaga sugestão, que alguém me dava ou me dera, de que eu precisava comer alguma coisa, beber alguma coisa, sair dali.
Agradeci à moça colorida e testei se sabia andar. Ainda sabia. Fui a um restaurante, esse aqui mesmo por onde estamos passando, comi alguma coisa que não me lembro. O paladar estava mudado, como se eu comesse uma coisa que minha mãe fazia quando eu tinha cinco anos de idade. A bebida tinha um gosto ácido, como o da cerveja que eu bebera escondido de meu pai, quando tinha oito anos.
Então chegamos à galeria onde se abria a porta de que falei. Era dia de semana e o lugar estava menos lotado que o normal, mas nem por isso foi mais fácil achar a escadaria. Na verdade, foi impossível, como se ela nunca tivesse estado lá. As duas lojas eram as mesmas de sempre, como se a galeria nunca tivesse sido outra, e entre elas não havia senão um quadro de distribuição elétrica.
— Amigo, o que você tinha bebido naquele dia?
— Só água mineral, Beto, eu juro. E a tampinha estava intacta.
— Então você mal chegou a ver os livros. Não consegue lembrar nenhum título, nenhum detalhe?
Imagino que eu não deveria me lembrar, afinal eu estivera onde eu não deveria estar. Mas quando me torceram para a direita, de volta a esse mundo material, contínuo e acontecido, não perdi toda lembrança daquilo que vi lá. Tenho a impressão de que essas lembranças são indevidas, ilegais, talvez até perigosas, porque nos falam de um mundo que não aconteceu, ou devia ter acontecido.
Eu me lembro dos livros. De muitos livros. Devo ter ficado na livraria, a correr os olhos pelas prateleiras, por um tempo bem mais longo do que fisicamente me lembro. Minha alma deve ter continuado a ler e ver bem depois que meus olhos grosseiros se fecharam. E que livros estranhos eles eram…
Alguns tinham sinopses na contracapa. Sinopses que prometiam mundos e fundos. Outros não tinham nada, só outra figura, ou um curioso espaço em branco, meramente recoberto por uma cor ou textura. Folheei alguns daqueles livros tentando descobrir do que tratavam e, para meu espanto, alguns nem tinham os números de páginas; outros tinham os títulos dos capítulos; raros tinham algum capítulo inteiro escrito, geralmente no início; poucos tinham conteúdo extenso; um ou outro se limitavam a um índice; havia muitos com prefácios escritos por gente famosa, mas nada depois, como se a louvação encomendada nunca tivessem encontrado a contrapartida que a merecesse. Na maioria deles havia páginas e páginas de rabiscos, borrões, rasuras e amassos.
Aqueles não eram livros quaisquer. Como o leitor esperto terá deduzido. Eram os livros nunca terminados, os que pereceram ainda na fase de planejamento, os encomendados, os cancelados, os perdidos em geral, os abandonados. Mas a livraria não estava mais lá. Beto nunca acrediaria em mim.
Eu não tinha o que dizer, meu rosto estava quente como se uma malária impiedosa me tivesse contaminado. Ainda sentia a impulsão extrema de entrar pela livraria e tocar seus livros, tinha a certeza de estar muito perto, mas não estava, é claro, porque não havia a escada. A maldita e fugaz escada. Levei às mãos à cabeça e não soube o que dizer, em parte porque minha cabeça rodopiava para a esquerda e minha língua parecia desencontrada do resto da boca. Mas Beto, sem perceber o que me acontecia, me pegou pelo braço e me convidou a outro lugar. Saí de lá derrotado e desorientado, amortecido de vertigens, e ninguém para me destorcer um pouco de volta à realidade.
— Vi uns discos interessantes à venda na galeria ali à direita. Larga mão disso e vamos ver o que tem?
Satisfeito em poder falar de música eu o fui seguindo, não antes de olhar de novo em direção ao lugar onde teria havido certa vez uma escada. Ao fazê-lo, lembrei o que Beto me dissera, ou que eu lhe dissera — àquela altura era tudo igual: livros que teriam sido escritos “em um mundo melhor”. Com o coração batendo arrebentado e fora de ritmo eu me desenvencilhei de Beto e corri de volta ao lugar entre as lojas. Ali havia uma cesta de lixo. Era uma cesta de lixo diferente das outras que havia naquela galeria, mas parecida com outra que eu teria visto “em um mundo melhor”. Era roxa, aquela, como se essa fosse a tinta mais barata do mundo. Retirei a tampa e olhei para dentro. Ali só havia papel rasgado. Mas entre os pedaços de vários tamanhos havia manchetes e trechos de notícias saídos de jornais que teriam sido publicados. “JK Recebe a Faixa: Mais Cinquenta Anos em Cinco”, “Reino do Havaí Comemora 300 anos”, “Militar Morre em Atentado no Rio de Janeiro: o tenente Jair foi a única vítima da bomba que tentou…”