“Fica proibida, por decisão administrativa, a realização de eventos nas dependências da empresa, a não ser os organizados pela direção” — dizia o cartaz afixado no quadro de avisos da sala de café.
Assim, seca e burocrática, era a reação, previsível, das instâncias superiores. Como todos, Geraldo já esperava por algo parecido, mas não deixava de ficar surpreso:
— Dizem que os manda-chuvas não ficaram nem um pouco felizes com as imagens da festa de fim de ano que surgiram na net — observou Lula.
— Não sei porque. Não havia nada no filme que não fosse normal.
— Vamos aguardar mais alguns dias, de “antenas ligadas”, para ver o que vão fazer. Mas isso não cheira bem. Você não deve ter visto as mesmas fotos que eu.
Saíram da sala de café, apertaram os nós das gravatas e entraram no amedrontador salão de vendas, atravessado de um lado a outro por uma ventania gélida, que destoava do sol causticante que se esgueirava pelas frestas e vidraças.
A manhã transcorreu dentro das condições normais de temperatura e de pressão. Ninguém senão alguns dos clientes mais “descolados” pareceu ter dado pelas miseráveis fotos. Exceto por ocasionais piadinhas de salão, normais se você não é absolutamente asséptico e insípido, as fotos pareciam sem maior consequência. Às onze, a cabulosa Mensagem do Dia, emanada da Presidência, não fez qualquer menção aos fatos: apenas exigindo empenho nas vendas. Todos sabem que quem vende tem o direito a certas coisas, até mesmo ser um mala.
— Vou sair para almoçar mais cedo hoje — adiantou-se Paula.
— Sorte sua que tem uma hora cheia para almoçar. Bom apetite.
— Um dia vai estar no clube, gracinha. Você vai longe.
Ela saiu rebolando suas formas fartas aos olhos famintos dos dois.
— Vais à puta que o pariu — resmungou Lula.
— O que é isso, meu companheiro?
— Estás me saindo um belo puxa-sacos!
— Não seja grosso. Paulinha é adorável.
— Não é questão de ser grosso: ela ainda é a chefe.
— Os chefes também amam.
— Ora, não seja por isso, macacos e pombos também amam.
Um cliente entrou, exigindo atenção comercial e meticulosa. Sorrisos devidamente falsos e extrínsecos surgiram em suas caras barbeadas:
— Bom dia, Senhora Porto.
— Bom dia, meus queridos — ela tinha a condescendência de uma sinhá na senzala. Tão cristã e tão devidamente superior.
— Em que vamos investir o pagamento do mês?
Geraldo detestava atender àquela gente que aparecia com dinheiro aos montes e nenhuma história. De onde sairiam tais salários milionários pagos por órgãos de nomes crípticos? Como fora possível que a Sinhá Porto, tão semianalfabeta e burra, tivesse feito jus a perceber seus doze mil reais mensais? Salário que nem mesmo o Superintendente, que tinha o poder de destruir carreiras, entortar vidas e esmagar sonhos conseguia ter na conta bancária.
Mesmo assim sorriu profissionalmente e aguardou pacientemente que a Sinhá Porto abrisse sua cavernosa bolsa e extraísse dela uma fieira supérflua de extratos de meses passados, contracheques de salários e benefícios e demonstrativos de despesas. Ficou repuxando o bigodinho enquanto ela tentava descobrir que, como todos os meses, havia tido um crédito de R$ 12.976,42 líquidos e que deveria aplicar, como todo santo mês desde a Proclamação da República, exatos R$ 11.000,00 de que não precisava e de que nunca precisaria porque possuía plano de saúde, morava em casa própria, próxima ao centro, não possuía carro e nada fazia, a não ser frequentar a missa para pedir perdão de seus pecados e fofocar com as amigas.
Lá fora fazia um sol rutilante, passavam meninas de roupas justas e decotes largos, com pernas grossas e cabelos soltos, poços de pecado e aflição que acenavam e desapareciam no canto da vidraça. E Geraldo ouvia as histórias de Sinhá Porto e seus queixumes de que o governo não tinha mais respeito pelos antigos servidores. Como todo mês ela ia embora deixando a sala nadando em seu perfume madeirado, cheiro a donzela do século passado.
Lula se engalfinhava com o telefone. Aquela besta mitológica atacava teimosamente, de minuto em minuto, sempre com outro problema urgente e inadiável. Pobre Lula, tão grisalho aos trinta e quatro anos, tão cheio de gastrites e dívidas. Nunca chegaria a ganhar nada parecido com o que ganhava Sinhá Porto, que mal sabia estimar o valor de seus ardidos “caraminguás”.
— Geraldo, o Super, para você.
O pobre escriturário agarrou o telefone como se ele fosse uma massa disforme de chumbo quente e atendeu, devidamente gaguejando, pois o Super detestava ouvir vozes que não transmitissem intimidação.
— Sua agência está sendo rebaixada de nível. Posso falar com Paula?
— Ela saiu— confessou Geraldo, o “sub”, perguntando-se por que, com mil raios, o Super havia aventado a notícia bomba antes mesmo de querer falar com quem deveria ouvi-la.
— Avise-a quando voltar que eu quero falar com ela pessoalmente, na sede da Regional, amanhã às oito da manhã.
— Pois não — e anotou na agenda corporativa o compromisso atípico que aguardava a loura e linda Paulinha no dia seguinte, na presença do irascível Super.
Continuaram atendendo com sorrisos comerciais e com pernas doendo de vontade de andar pelo calçadão, mas aproveitaram a tranquilidade do fim da manhã para reparar a bunda esférica e rija de Marlene, que se esfregava exageradamente na nova impressora tentando fazer uma cópia de documento, ou talvez mostrar a recente depilação das coxas.
— E Paula não volta.
— Aposto vinte como demora a voltar, como sempre — disse Lula.
— Já sei que vou perder, mas aposto.
— Essa piranha cada dia demora mais no almoço.
Um pigarro soou às costas de ambos, que se viraram num susto.
— Chamado da gerência geral, para os dois.
Edna e Elaine, as estagiárias novatas, assumiriam temporariamente as mesas do atendimento, para que pudessem comparecer ao chamado de Sua Augusta Reverendíssima.
A “sala” da gerência era em um canto do recinto ao fundo, protegida do público em geral por um biombo semitransparente e pelo ar teatral e antiquado de Baltazar Xavier, MBA. Sentado na sua cadeira imperial e observando agudamente o fluxo de clientes, tomava notas para suas decisões — sempre em harmonia com os desígnios emanados da instância superior, qualquer que fosse. Os seus olhinhos de tatu vasculhavam a pilha de relatórios despejada à sua frente com perspicácia de ladrão de cinema. Era ver o contador de Al Capone, sem a metralhadora.
— Sentem-se os dois.
A ordem foi seguida de forma automática.
— Sabem porque estão aqui?
— Não, senhor — esse sufixo era imprescindível em toda resposta, a menos que se quisesse ouvir algum discurso de ética confuciana.
— Os senhores teriam, por acaso, algo a dizer sobre a festa de fim de ano que a nossa empresa organizou?
— Apenas que foi uma ótima festa — adiantou-se Lula.
— Não é essa a opinião da Presidência.
— Por quê?
— Não me interrompam, deixem-me falar!
— Mas…
— Já disse, não me interrompam.
Baltazar Xavier era o tipo que intimidava. Não tanto por seu físico, mas por seu repertório de gestos e pelas histórias que gostava muito de contar, ressaltando seus feitos de boxeador, brigador de rua e de lutador de karatê. Seus braços grossos davam credibilidade a essas aventuras meio criminosas de seus passado, que ele cuidadosamente só mencionava a sós.
— Alguns clientes mais conservadores estão ligeiramente incomodados com aquilo tudo. Eu imagino que vocês saibam que esta agência atende um público de alto nível e que nos confia seus recursos esperando o máximo de seriedade de nossa parte.
“Conservadores, ou conservados em formol” — pensou Geraldo. Mas só conseguiu dizer “sim, senhor”.
— De forma que não lhes deve surpreender que alguns tenham entrado em contato questionando a competência de pessoas como vocês para tão grande responsabilidade.
— Não consigo ver a relação de uma coisa com outra.
— Mas você não ter que ver merda nenhuma. O cliente viu, isso é que importa. Se o cliente disser que está vendo um elefante cor de rosa voador, então ele está vendo um elefante cor de rosa voador. E caso você queira ser bem-sucedido nessa carreira não basta você aceitar o que ele viu. Você tem que ver também!
O argumento era inquestionável.
— Mas em que implica tudo isso?
— Implica em que alguns dos nossos clientes mais influentes não se sentem à vontade em ter seus recursos nas mãos de profissionais que enchem a cara de vodca e são flagrados por câmeras bolinando colegas de trabalho.
Geraldo e Lula mantinham silêncio cadavérico. Quanto menos falassem, mais rápido terminava aquela agonia de enfrentar Baltazar.
— Como consequência disso, terei de transferir vocês de setor. Mas, infelizmente, nesse exato momento, não há nenhum posto disponível em nossa empresa do mesmo nível que vocês ocupam.
Era uma sentença quase capital: perda da comissão, com rebaixamento a uma agência periférica. Com que ganharia e o custo de deslocamento quase nem mais valia a pena o emprego. Mas Geraldo ainda pensava que o amigo Lula estaria pior: com tão pouco tempo de carreira e tão sem máculas da vida, estaria, como ele, relegado a um posto indesejável, com uma mancha no currículo. No segundo seguinte lembrou-se que sua própria mancha seria imensamente maior, descomissionamento, aquela palavra feia normalmente associada a gente responsável por desfalque ou grandes cagadas. Praticamente um atestado de desonestidade ou de incompetência.
Geraldo agiu rápido:
— Não posso aceitar.
— Vocês não têm que aceitar ou recusar. A decisão já está tomada e os seus substitutos já foram convocados. Vocês têm o resto da tarde para empacotarem seus pertences…
— Mas não aceito. Prefiro demitir-me.
Baltazar fora interrompido, uma forma de ousadia que nunca perdoava. Pior do que isso, o subalterno o encarava com galhardia, recusando- se a cumprir sua Palavra. Ergueu-se da cadeira, avermelhado e com os braços intimidadores tentando ocupar todo o espaço do campo de visão dos dois:
— Você não prefere merda nenhuma. Eu deveria tê-lo demitido por uma justa causa, mas fui bacana de lhe arranjar um lugar para trabalhar, apesar da cagada que fez!
— Eu não acho que fiz nenhuma cagada e não aceito essa decisão que você tomou. Não tem merda nenhuma de cliente reclamando, você estava era caçando uma desculpa para me limar da agência e trazer alguém da sua confiança. Eu prefiro procurar outro emprego do que enfiar o meu rabo entre as pernas diante disso. Melhor demitir-me do que te dar a chance de me arranjar mesmo uma justa causa, porque errar todo mundo erra.
Baltazar estava quase apoplético, espumando pelo canto da boca e sem conseguir articular a raiva. Apenas se continha para que os clientes no saguão não notassem o cabo-de-guerra que se desenrolava entre os dois. Geraldo sabia que não ficaria barata aquela ousadia. Mas como era maravilhoso poder dizer tudo aquilo, de boca cheia.
— Então ’tá! Saia daqui e não volte depois arrependido.
Geraldo se levantou, num gesto inesperado de obediência residual, só olhando ainda para o pobre Lula, acuado na cadeira como o marinheiro que assiste em alto mar à luta titânica de duas bestas mitológicas.
Diante da inércia do amigo, e da perspectiva de ver a situação ainda piorar, saiu da sala pisando duro e foi pegar seus objetos pessoais na escrivaninha. Edna o olhava com um ar divertido, a putinha. Podia bem estar achando que teria a comissão, nada que um boquete dos bem dados não permita sonhar.
Baltazar veio dos fundos como Zeus Tonante, deslocando o ar com sua passagem. Parou ao lado da mesa e assistiu ao recolhimento de cada objeto. Quando Geraldo terminou, fez questão de sublinhar com a voz mais clara que sabia fazer:
— Alguns objetos que você está levando são propriedade da empresa.
Era o fim da picada! Ser acusado de roubo! Pior ainda, de roubar tão insignificantes coisas.
— Mostre-me quais são, então, seu filho da puta!
Baltazar já ia além do limite do aceitável. Dava para sentir medo de ver sua carranca e Geraldo tinha a certeza de que se não estivessem dentro da agência ele já teria tentado mostrar que suas histórias de boxe ou karatê não eram fantasias nem táticas de intimidação.
— Grampeador, agenda, calculadora.
— Ah, isso não! Você sabe que comprei o meu próprio grampeador para não ter de usar essas porcarias baratas xing-ling. A agenda é a da empresa, sim, mas a empresa a deu para mim. E a calculadora é minha, muito minha. Tenho até nota fiscal se você quiser, e ainda pus o meu nome nela!
— Devolva essa agenda, ela tem dados sigilosos.
Preferiu ceder. Pelo menos vencera dois terços da questão.
Saiu da agência levando apenas uma caixa de plástico contendo alguns livros, uma régua de alumínio, uma HP-12C, um grampeador, o pendrive que, por sorte, Baltazar não se lembrara de exigir que formatasse, e o jornal do dia.
No dia seguinte levaria sua carteira de trabalho ao Departamento de Pessoal e ingressaria, oficialmente, na contagem dos desempregados, ainda por cima sem direito a seguro desemprego. Mas era uma sensação louca de liberdade que o assolava, enquanto aquele vento fresco dava vontade de rir. Afrouxou a gravata, para que o vento pudesse brincar com ela, e foi descendo o calçadão pensando em quantas coisas boas e ruins se negara a experimentar nos sete anos anteriores em nome de uma carreira e de um salário de dois mil reais por mês.
Paula vinha em sua direção com a bolsa despreocupadamente a tiracolo e uma expressão de surpresa na cara:
— Visita a cliente?
— Não, rebeldia.
— Hem?
— Estou me demitindo.
— Você está louco?
— Estou, claro. Só mesmo um louco se demitiria de um emprego como o nosso. Mas eu espero que você consiga me entender ainda hoje.
— O que houve? — a expressão dela mudara para uma de jornalista que vai noticiar morte de político.
— Muita coisa, mas o que me fez sair é não aguentar mais o Baltazar Xavier, aquele escroto. Tem coisas que dinheiro não paga.
— Mas ele vai passar, e o seu emprego continuaria.
— Temos que ter esperança de algo melhor, querida. Se você entender e quiser conversar, sabe onde me encontrar. Pelo menos para alguma coisa aquele apartamento que herdei de minha tia serve: para me dar a coragem de chamar Baltazar Xavier de filho da puta.
Paula riu e seguiu seu caminho. Naquele momento provavelmente não se tocava da gravidade da situação, talvez porque, devido à alta carga de trabalho que suportava e mais faculdade, fosse a única que ainda não vira o infame vídeo no qual ela, bêbada, se deixava bolinar por Lula e Geraldo.
Enquanto seguia para o ponto de ônibus, carregando os restos de sua carreira sob o braço, sentia pena de Paula. Ela era uma boa moça, só tinha um pequeno problema com a bebida e uma vida social restrita de trabalhar dez horas por dia e estudar cinco por noite. Sentia-se um calhorda por ser personagem do maldito vídeo, mas sabia, ainda mais, que se não fosse personagem não estaria demitindo-se, estaria pronto para julgar Paula com azedume e dificilmente deixaria seu dinheiro, se tivesse algum, nas mãos da gerente de contas que apareceu na net com o coco chapado e uma mão de homem enconchando cada seio.
Gostaria de poder estar lá na agência para poder defender a Paula da brutalidade do Baltazar, aquele suíno, mas àquela altura os guardas já deviam estar instruídos a não deixá-lo entrar. Restava esperar na cama que tivesse presença de espírito para suportar toda a merda que ouviria dentro daquele purgatório infecto em que ia se transformando a sala da gerência geral, depois de tantas humilhações que tanta boa gente passara lá.
Eram quase cinco da tarde quando chegou em casa. Tomou um banho e se deitou para dormir. Dormir e esquecer. O que seus pais pensariam ao saber que o orgulho da família se demitira ruidosamente de um ótimo emprego na esteira de um escândalo daqueles? Dormiu algumas horas de incerteza entre o sono e a realidade, quase tendo febre. “Acho que o diabo, para me ajudar, ainda me manda uma gripe.”
Acordou às oito, com o estômago roncando de fome. Resolveu gastar os seus últimos trocados no bolso pagando-se um jantar decente no Prato Cheio, restaurante de pobre, mas com comida limpa, estava na hora de se acostumar a não mais comer no Elysée por conta da empresa durante as estafantes jornadas vespertinas.
Enquanto terminava um prato muito bem mastigado, para que a sensação durasse o máximo, o telefone tocou: Era Paula.
— Geraldo — o tom de voz dela era carregado de lágrimas. Sentiu-se ainda mais calhorda do que nunca.
— Venha para cá, agora, por favor — foi a única coisa que conseguiu dizer.
Pagou o jantar e subiu para escovar os dentes e tentar pentear o seu cabelo anarquista, mesmo imaginando que Paula não apareceria em bom estado. Se soubesse onde ela vivia, certamente teria ido, mas sequer tinha ideia da direção onde ficava o tal Bairro Santana. Mesmo assim sentia-se cafajeste de novo por chamar ao seu apartamento à mulher que sofria por sua causa em vez de ir ela à residência dela.
Paulinha chegou minutos depois, enquanto ele ainda se digladiava com a escova, herança quase antiguidade da única mulher que tivera sob o seu teto, numa época que quase parecia histórica. Tanta rapidez só significava que ela já devia andar perto quando ligou: a sensação de ser um calhorda aliviou ligeiramente.
— Entre, por favor.
Ela entrou, sem dizer nada. Tinha o rosto devastado pelo carma das horas e os cabelos andavam despenteados. Um ligeiro hálito etílico e ácido saía de sua boca.
Geraldo começou a procurar palavras que dizer, mas não as via. Podia apenas fazer o que fez: sentou-se com ela no sofá e recostou a sua cabeça em seu ombro. Deixou que ela chorasse ali, quieta, todo tempo que quis. Qualquer coisa que dissesse poderia soar como moralidade, cobrança, julgamento ou simplesmente bobagem. Naquele gesto, porém, o seu respeito pela colega ficava muito mais evidente. Por fim, com a surpresa já superada, fez a pergunta mais importante de todas:
— Por que você veio até mim? Logo até mim que sou culpado de tudo?
— Você não é culpado de tudo, não é culpado de nada.
— A diferença entre nós, Paulinha, é que eu mereço o que me aconteceu. Se não estivesse na foto, eu estaria nesse exato momento julgando-a uma puta. Se além de não estar na foto também não a conhecesse, eu poderia estar com meus amigos num bar rindo da situação.
— Se for assim, Geraldo, todos merecemos. Eu não vim aqui procurar culpados, eu vim foi mesmo procurar um ombro amigo para chorar. Sei que o seu ombro é o único que me receberia assim, exatamente porque, como você disse, todos que não aparecem na foto estão, nesse momento me julgando. Mas nós, os culpados, somos solidários nisso.
— Como foi com o maldito?
— Horrível! Ele me forçou a pedir demissão dizendo que se eu não o fizesse arranjaria uma justa causa!
— Engraçado isso, forçou-a à demissão enquanto comigo foi justo por eu querer me demitir que ele virou bicho…
— Mas você sabe muito bem porque, Geraldo. Sobe de cargo, sobe logo a responsabilidade. E as mulheres não têm exatamente o mesmo direito que os homens em certas coisas…
Geraldo ficou quieto. Dizer o que? Sentia uma vontade imensa de não ter ido à festa de fim de ano. Talvez assim aquela cena maldita não tivesse acontecido — ou talvez não, porque sua amnésia alcoólica era suficiente para que com dificuldade conseguisse lembrar alguma coisa da cena. Nem sabia quem tinha começado a brincadeira, talvez tivesse sido uma dessas merdas espontâneas que a gente faz na vida sem imaginar que pode haver uma câmera por perto…
Paula tentava ser forte, mas era claro que estava arrasada. Não era nem difícil imaginar porque: certamente vivia em apartamento alugado e gastava uma boa grana com o táxi para estudar. Mesmo arranjando um outro emprego, dificilmente teria salário equivalente — e emprego, bem, sabemos que emprego não dá em árvore.
— Se quiser, pode ficar aqui por uns tempos — nem acreditava na oferta que estava fazendo — o apartamento é grande e fica perto da faculdade.
— Não me faça essa oferta para se arrepender depois, na minha atual situação eu sou do tipo de mulher que aceita essas ofertas.
— E na minha atual situação eu sou do tipo de homem que as faz. Aceite logo e vamos tocar a vida para a frente, ou vamos deixar que o puto do Baltazar acabe conosco.
— Tem razão.
— Eu não pago aluguel e aqui no centro você não vai quase precisar de ônibus. O dinheiro da recisão só vai ficar mesmo para a comida e para o condomínio. Até um de nós conseguir outro jeito de ganhar a vida isso vai ser mais que o suficiente.
— E vamos ter que arranjar alguma coisa rápido. Não vamos ter muito com que viver, já que ambos nos demitimos.
— A propósito, eu não lhe dei um recado hoje, porque fui demitido antes que você voltasse do almoço: o Super quer falar com você amanhã, às oito.
— Ele que vá se foder com uma lanterna para achar que é vaga-lume.
Os dois riram, no meio da desgraça, sinalizando pelo menos com esperança. Paulinha ficou naquela noite e Geraldo dormiu no sofá. Apesar de tudo, ainda via nela a gerente de contas a que servira fielmente por dois anos e meio. Demoraria meses até ambos se darem conta de que haviam, de verd”Fica proibida, por decisão administrativa, a realização de eventos nas dependências da empresa, a não ser os organizados pela direção” — dizia o cartaz afixado no quadro de avisos da sala de café.
Assim, seca e burocrática, era a reação, previsível, das instâncias superiores. Como todos, Geraldo já esperava por algo parecido, mas não deixava de ficar surpreso:
— Dizem que os manda-chuvas não ficaram nem um pouco felizes com as imagens da festa de fim de ano que surgiram na net — observou Lula.
— Não sei porque. Não havia nada no filme que não fosse normal.
— Vamos aguardar mais alguns dias, de “antenas ligadas”, para ver o que vão fazer. Mas isso não cheira bem. Você não deve ter visto as mesmas fotos que eu.
Saíram da sala de café, apertaram os nós das gravatas e entraram no amedrontador salão de vendas, atravessado de um lado a outro por uma ventania gélida, que destoava do sol causticante que se esgueirava pelas frestas e vidraças.
A manhã transcorreu dentro das condições normais de temperatura e de pressão. Ninguém senão alguns dos clientes mais “descolados” pareceu ter dado pelas miseráveis fotos. Exceto por ocasionais piadinhas de salão, normais se você não é absolutamente asséptico e insípido, as fotos pareciam sem maior consequência. Às onze, a cabulosa Mensagem do Dia, emanada da Presidência, não fez qualquer menção aos fatos: apenas exigindo empenho nas vendas. Todos sabem que quem vende tem o direito a certas coisas, até mesmo ser um mala.
— Vou sair para almoçar mais cedo hoje— adiantou-se Paula.
— Sorte sua que tem uma hora cheia para almoçar. Bom apetite.
— Um dia vai estar no clube, gracinha. Você vai longe.
Ela saiu rebolando suas formas fartas aos olhos famintos dos dois.
— Vais à puta que o pariu — resmungou Lula.
— O que é isso, meu companheiro?
— Estás me saindo um belo puxa-sacos!
— Não seja grosso. Paulinha é adorável.
— Não é questão de ser grosso: ela ainda é a chefe.
— Os chefes também amam.
— Ora, não seja por isso, macacos e pombos também amam.
Um cliente entrou, exigindo atenção comercial e meticulosa. Sorrisos devidamente falsos e extrínsecos surgiram em suas caras barbeadas:
— Bom dia, Senhora Porto.
— Bom dia, meus queridos — ela tinha a condescendência de uma sinhá na senzala. Tão cristã e tão devidamente superior.
— Em que vamos investir o pagamento do mês?
Geraldo detestava atender àquela gente que aparecia com dinheiro aos montes e nenhuma história. De onde sairiam tais salários milionários pagos por órgãos de nomes crípticos? Como fora possível que a Sinhá Porto, tão semianalfabeta e burra, tivesse feito jus a perceber seus doze mil reais mensais? Salário que nem mesmo o Superintendente, que tinha o poder de destruir carreiras, entortar vidas e esmagar sonhos conseguia ter na conta bancária.
Mesmo assim sorriu profissionalmente e aguardou pacientemente que a Sinhá Porto abrisse sua cavernosa bolsa e extraísse dela uma fieira supérflua de extratos de meses passados, contracheques de salários e benefícios e demonstrativos de despesas. Ficou repuxando o bigodinho enquanto ela tentava descobrir que, como todos os meses, havia tido um crédito de R$ 12.976,42 líquidos e que deveria aplicar, como todo santo mês desde a Proclamação da República, exatos R$ 11.000,00 de que não precisava e de que nunca precisaria porque possuía plano de saúde, morava em casa própria, próxima ao centro, não possuía carro e nada fazia, a não ser frequentar a missa para pedir perdão de seus pecados e fofocar com as amigas.
Lá fora fazia um sol rutilante, passavam meninas de roupas justas e decotes largos, com pernas grossas e cabelos soltos, poços de pecado e aflição que acenavam e desapareciam no canto da vidraça. E Geraldo ouvia as histórias de Sinhá Porto e seus queixumes de que o governo não tinha mais respeito pelos antigos servidores. Como todo mês ela ia embora deixando a sala nadando em seu perfume madeirado, cheiro a donzela do século passado.
Lula se engalfinhava com o telefone. Aquela besta mitológica atacava teimosamente, de minuto em minuto, sempre com outro problema urgente e inadiável. Pobre Lula, tão grisalho aos trinta e quatro anos, tão cheio de gastrites e dívidas. Nunca chegaria a ganhar nada parecido com o que ganhava Sinhá Porto, que mal sabia estimar o valor de seus ardidos “caraminguás”.
— Geraldo, o Super, para você.
O pobre escriturário agarrou o telefone como se ele fosse uma massa disforme de chumbo quente e atendeu, devidamente gaguejando, pois o Super detestava ouvir vozes que não transmitissem intimidação.
— Sua agência está sendo rebaixada de nível. Posso falar com Paula?
— Ela saiu— confessou Geraldo, o “sub”, perguntando-se por que, com mil raios, o Super havia aventado a notícia bomba antes mesmo de querer falar com quem deveria ouvi-la.
— Avise-a quando voltar que eu quero falar com ela pessoalmente, na sede da Regional, amanhã às oito da manhã.
— Pois não — e anotou na agenda corporativa o compromisso atípico que aguardava a loura e linda Paulinha no dia seguinte, na presença do irascível Super.
Continuaram atendendo com sorrisos comerciais e com pernas doendo de vontade de andar pelo calçadão, mas aproveitaram a tranquilidade do fim da manhã para reparar a bunda esférica e rija de Marlene, que se esfregava exageradamente na nova impressora tentando fazer uma cópia de documento, ou talvez mostrar a recente depilação das coxas.
— E Paula não volta.
— Aposto vinte como demora a voltar, como sempre — disse Lula.
— Já sei que vou perder, mas aposto.
— Essa piranha cada dia demora mais no almoço.
Um pigarro soou às costas de ambos, que se viraram num susto.
— Chamado da gerência geral, para os dois.
Edna e Elaine, as estagiárias novatas, assumiriam temporariamente as mesas do atendimento, para que pudessem comparecer ao chamado de Sua Augusta Reverendíssima.
A “sala” da gerência era em um canto do recinto ao fundo, protegida do público em geral por um biombo semitransparente e pelo ar teatral e antiquado de Baltazar Xavier, MBA. Sentado na sua cadeira imperial e observando agudamente o fluxo de clientes, tomava notas para suas decisões — sempre em harmonia com os desígnios emanados da instância superior, qualquer que fosse. Os seus olhinhos de tatu vasculhavam a pilha de relatórios despejada à sua frente com perspicácia de ladrão de cinema. Era ver o contador de Al Capone, sem a metralhadora.
— Sentem-se os dois.
A ordem foi seguida de forma automática.
— Sabem porque estão aqui?
— Não, senhor — esse sufixo era imprescindível em toda resposta, a menos que se quisesse ouvir algum discurso de ética confuciana.
— Os senhores teriam, por acaso, algo a dizer sobre a festa de fim de ano que a nossa empresa organizou?
— Apenas que foi uma ótima festa — adiantou-se Lula.
— Não é essa a opinião da Presidência.
— Por quê?
— Não me interrompam, deixem-me falar!
— Mas…
— Já disse, não me interrompam.
Baltazar Xavier era o tipo que intimidava. Não tanto por seu físico, mas por seu repertório de gestos e pelas histórias que gostava muito de contar, ressaltando seus feitos de boxeador, brigador de rua e de lutador de karatê. Seus braços grossos davam credibilidade a essas aventuras meio criminosas de seus passado, que ele cuidadosamente só mencionava a sós.
— Alguns clientes mais conservadores estão ligeiramente incomodados com aquilo tudo. Eu imagino que vocês saibam que esta agência atende um público de alto nível e que nos confia seus recursos esperando o máximo de seriedade de nossa parte.
“Conservadores, ou conservados em formol” — pensou Geraldo. Mas só conseguiu dizer “sim, senhor”.
— De forma que não lhes deve surpreender que alguns tenham entrado em contato questionando a competência de pessoas como vocês para tão grande responsabilidade.
— Não consigo ver a relação de uma coisa com outra.
— Mas você não ter que ver merda nenhuma. O cliente viu, isso é que importa. Se o cliente disser que está vendo um elefante cor de rosa voador, então ele está vendo um elefante cor de rosa voador. E caso você queira ser bem-sucedido nessa carreira não basta você aceitar o que ele viu. Você tem que ver também!
O argumento era inquestionável.
— Mas em que implica tudo isso?
— Implica em que alguns dos nossos clientes mais influentes não se sentem à vontade em ter seus recursos nas mãos de profissionais que enchem a cara de vodca e são flagrados por câmeras bolinando colegas de trabalho.
Geraldo e Lula mantinham silêncio cadavérico. Quanto menos falassem, mais rápido terminava aquela agonia de enfrentar Baltazar.
— Como consequência disso, terei de transferir vocês de setor. Mas, infelizmente, nesse exato momento, não há nenhum posto disponível em nossa empresa do mesmo nível que vocês ocupam.
Era uma sentença quase capital: perda da comissão, com rebaixamento a uma agência periférica. Com que ganharia e o custo de deslocamento quase nem mais valia a pena o emprego. Mas Geraldo ainda pensava que o amigo Lula estaria pior: com tão pouco tempo de carreira e tão sem máculas da vida, estaria, como ele, relegado a um posto indesejável, com uma mancha no currículo. No segundo seguinte lembrou-se que sua própria mancha seria imensamente maior, descomissionamento, aquela palavra feia normalmente associada a gente responsável por desfalque ou grandes cagadas. Praticamente um atestado de desonestidade ou de incompetência.
Geraldo agiu rápido:
— Não posso aceitar.
— Vocês não têm que aceitar ou recusar. A decisão já está tomada e os seus substitutos já foram convocados. Vocês têm o resto da tarde para empacotarem seus pertences…
— Mas não aceito. Prefiro demitir-me.
Baltazar fora interrompido, uma forma de ousadia que nunca perdoava. Pior do que isso, o subalterno o encarava com galhardia, recusando- se a cumprir sua Palavra. Ergueu-se da cadeira, avermelhado e com os braços intimidadores tentando ocupar todo o espaço do campo de visão dos dois:
— Você não prefere merda nenhuma. Eu deveria tê-lo demitido por uma justa causa, mas fui bacana de lhe arranjar um lugar para trabalhar, apesar da cagada que fez!
— Eu não acho que fiz nenhuma cagada e não aceito essa decisão que você tomou. Não tem merda nenhuma de cliente reclamando, você estava era caçando uma desculpa para me limar da agência e trazer alguém da sua confiança. Eu prefiro procurar outro emprego do que enfiar o meu rabo entre as pernas diante disso. Melhor demitir-me do que te dar a chance de me arranjar mesmo uma justa causa, porque errar todo mundo erra.
Baltazar estava quase apoplético, espumando pelo canto da boca e sem conseguir articular a raiva. Apenas se continha para que os clientes no saguão não notassem o cabo-de-guerra que se desenrolava entre os dois. Geraldo sabia que não ficaria barata aquela ousadia. Mas como era maravilhoso poder dizer tudo aquilo, de boca cheia.
— Então ’tá! Saia daqui e não volte depois arrependido.
Geraldo se levantou, num gesto inesperado de obediência residual, só olhando ainda para o pobre Lula, acuado na cadeira como o marinheiro que assiste em alto mar à luta titânica de duas bestas mitológicas.
Diante da inércia do amigo, e da perspectiva de ver a situação ainda piorar, saiu da sala pisando duro e foi pegar seus objetos pessoais na escrivaninha. Edna o olhava com um ar divertido, a putinha. Podia bem estar achando que teria a comissão, nada que um boquete dos bem dados não permita sonhar.
Baltazar veio dos fundos como Zeus Tonante, deslocando o ar com sua passagem. Parou ao lado da mesa e assistiu ao recolhimento de cada objeto. Quando Geraldo terminou, fez questão de sublinhar com a voz mais clara que sabia fazer:
— Alguns objetos que você está levando são propriedade da empresa.
Era o fim da picada! Ser acusado de roubo! Pior ainda, de roubar tão insignificantes coisas.
— Mostre-me quais são, então, seu filho da puta!
Baltazar já ia além do limite do aceitável. Dava para sentir medo de ver sua carranca e Geraldo tinha a certeza de que se não estivessem dentro da agência ele já teria tentado mostrar que suas histórias de boxe ou karatê não eram fantasias nem táticas de intimidação.
— Grampeador, agenda, calculadora.
— Ah, isso não! Você sabe que comprei o meu próprio grampeador para não ter de usar essas porcarias baratas xing-ling. A agenda é a da empresa, sim, mas a empresa a deu para mim. E a calculadora é minha, muito minha. Tenho até nota fiscal se você quiser, e ainda pus o meu nome nela!
— Devolva essa agenda, ela tem dados sigilosos.
Preferiu ceder. Pelo menos vencera dois terços da questão.
Saiu da agência levando apenas uma caixa de plástico contendo alguns livros, uma régua de alumínio, uma HP-12C, um grampeador, o pendrive que, por sorte, Baltazar não se lembrara de exigir que formatasse, e o jornal do dia.
No dia seguinte levaria sua carteira de trabalho ao Departamento de Pessoal e ingressaria, oficialmente, na contagem dos desempregados, ainda por cima sem direito a seguro desemprego. Mas era uma sensação louca de liberdade que o assolava, enquanto aquele vento fresco dava vontade de rir. Afrouxou a gravata, para que o vento pudesse brincar com ela, e foi descendo o calçadão pensando em quantas coisas boas e ruins se negara a experimentar nos sete anos anteriores em nome de uma carreira e de um salário de dois mil reais por mês.
Paula vinha em sua direção com a bolsa despreocupadamente a tiracolo e uma expressão de surpresa na cara:
— Visita a cliente?
— Não, rebeldia.
— Hem?
— Estou me demitindo.
— Você está louco?
— Estou, claro. Só mesmo um louco se demitiria de um emprego como o nosso. Mas eu espero que você consiga me entender ainda hoje.
— O que houve? — a expressão dela mudara para uma de jornalista que vai noticiar morte de político.
— Muita coisa, mas o que me fez sair é não aguentar mais o Baltazar Xavier, aquele escroto. Tem coisas que dinheiro não paga.
— Mas ele vai passar, e o seu emprego continuaria.
— Temos que ter esperança de algo melhor, querida. Se você entender e quiser conversar, sabe onde me encontrar. Pelo menos para alguma coisa aquele apartamento que herdei de minha tia serve: para me dar a coragem de chamar Baltazar Xavier de filho da puta.
Paula riu e seguiu seu caminho. Naquele momento provavelmente não se tocava da gravidade da situação, talvez porque, devido à alta carga de trabalho que suportava e mais faculdade, fosse a única que ainda não vira o infame vídeo no qual ela, bêbada, se deixava bolinar por Lula e Geraldo.
Enquanto seguia para o ponto de ônibus, carregando os restos de sua carreira sob o braço, sentia pena de Paula. Ela era uma boa moça, só tinha um pequeno problema com a bebida e uma vida social restrita de trabalhar dez horas por dia e estudar cinco por noite. Sentia-se um calhorda por ser personagem do maldito vídeo, mas sabia, ainda mais, que se não fosse personagem não estaria demitindo-se, estaria pronto para julgar Paula com azedume e dificilmente deixaria seu dinheiro, se tivesse algum, nas mãos da gerente de contas que apareceu na net com o coco chapado e uma mão de homem enconchando cada seio.
Gostaria de poder estar lá na agência para poder defender a Paula da brutalidade do Baltazar, aquele suíno, mas àquela altura os guardas já deviam estar instruídos a não deixá-lo entrar. Restava esperar na cama que tivesse presença de espírito para suportar toda a merda que ouviria dentro daquele purgatório infecto em que ia se transformando a sala da gerência geral, depois de tantas humilhações que tanta boa gente passara lá.
Eram quase cinco da tarde quando chegou em casa. Tomou um banho e se deitou para dormir. Dormir e esquecer. O que seus pais pensariam ao saber que o orgulho da família se demitira ruidosamente de um ótimo emprego na esteira de um escândalo daqueles? Dormiu algumas horas de incerteza entre o sono e a realidade, quase tendo febre. “Acho que o diabo, para me ajudar, ainda me manda uma gripe.”
Acordou às oito, com o estômago roncando de fome. Resolveu gastar os seus últimos trocados no bolso pagando-se um jantar decente no Prato Cheio, restaurante de pobre, mas com comida limpa, estava na hora de se acostumar a não mais comer no Elysée por conta da empresa durante as estafantes jornadas vespertinas.
Enquanto terminava um prato muito bem mastigado, para que a sensação durasse o máximo, o telefone tocou: Era Paula.
— Geraldo — o tom de voz dela era carregado de lágrimas. Sentiu-se ainda mais calhorda do que nunca.
— Venha para cá, agora, por favor — foi a única coisa que conseguiu dizer.
Pagou o jantar e subiu para escovar os dentes e tentar pentear o seu cabelo anarquista, mesmo imaginando que Paula não apareceria em bom estado. Se soubesse onde ela vivia, certamente teria ido, mas sequer tinha ideia da direção onde ficava o tal Bairro Santana. Mesmo assim sentia-se cafajeste de novo por chamar ao seu apartamento à mulher que sofria por sua causa em vez de ir ela à residência dela.
Paulinha chegou minutos depois, enquanto ele ainda se digladiava com a escova, herança quase antiguidade da única mulher que tivera sob o seu teto, numa época que quase parecia histórica. Tanta rapidez só significava que ela já devia andar perto quando ligou: a sensação de ser um calhorda aliviou ligeiramente.
— Entre, por favor.
Ela entrou, sem dizer nada. Tinha o rosto devastado pelo carma das horas e os cabelos andavam despenteados. Um ligeiro hálito etílico e ácido saía de sua boca.
Geraldo começou a procurar palavras que dizer, mas não as via. Podia apenas fazer o que fez: sentou-se com ela no sofá e recostou a sua cabeça em seu ombro. Deixou que ela chorasse ali, quieta, todo tempo que quis. Qualquer coisa que dissesse poderia soar como moralidade, cobrança, julgamento ou simplesmente bobagem. Naquele gesto, porém, o seu respeito pela colega ficava muito mais evidente. Por fim, com a surpresa já superada, fez a pergunta mais importante de todas:
— Por que você veio até mim? Logo até mim que sou culpado de tudo?
— Você não é culpado de tudo, não é culpado de nada.
— A diferença entre nós, Paulinha, é que eu mereço o que me aconteceu. Se não estivesse na foto, eu estaria nesse exato momento julgando-a uma puta. Se além de não estar na foto também não a conhecesse, eu poderia estar com meus amigos num bar rindo da situação.
— Se for assim, Geraldo, todos merecemos. Eu não vim aqui procurar culpados, eu vim foi mesmo procurar um ombro amigo para chorar. Sei que o seu ombro é o único que me receberia assim, exatamente porque, como você disse, todos que não aparecem na foto estão, nesse momento me julgando. Mas nós, os culpados, somos solidários nisso.
— Como foi com o maldito?
— Horrível! Ele me forçou a pedir demissão dizendo que se eu não o fizesse arranjaria uma justa causa!
— Engraçado isso, forçou-a à demissão enquanto comigo foi justo por eu querer me demitir que ele virou bicho…
— Mas você sabe muito bem porque, Geraldo. Sobe de cargo, sobe logo a responsabilidade. E as mulheres não têm exatamente o mesmo direito que os homens em certas coisas…
Geraldo ficou quieto. Dizer o que? Sentia uma vontade imensa de não ter ido à festa de fim de ano. Talvez assim aquela cena maldita não tivesse acontecido — ou talvez não, porque sua amnésia alcoólica era suficiente para que com dificuldade conseguisse lembrar alguma coisa da cena. Nem sabia quem tinha começado a brincadeira, talvez tivesse sido uma dessas merdas espontâneas que a gente faz na vida sem imaginar que pode haver uma câmera por perto…
Paula tentava ser forte, mas era claro que estava arrasada. Não era nem difícil imaginar porque: certamente vivia em apartamento alugado e gastava uma boa grana com o táxi para estudar. Mesmo arranjando um outro emprego, dificilmente teria salário equivalente — e emprego, bem, sabemos que emprego não dá em árvore.
— Se quiser, pode ficar aqui por uns tempos — nem acreditava na oferta que estava fazendo — o apartamento é grande e fica perto da faculdade.
— Não me faça essa oferta para se arrepender depois, na minha atual situação eu sou do tipo de mulher que aceita essas ofertas.
— E na minha atual situação eu sou do tipo de homem que as faz. Aceite logo e vamos tocar a vida para a frente, ou vamos deixar que o puto do Baltazar acabe conosco.
— Tem razão.
— Eu não pago aluguel e aqui no centro você não vai quase precisar de ônibus. O dinheiro da recisão só vai ficar mesmo para a comida e para o condomínio. Até um de nós conseguir outro jeito de ganhar a vida isso vai ser mais que o suficiente.
— E vamos ter que arranjar alguma coisa rápido. Não vamos ter muito com que viver, já que ambos nos demitimos.
— A propósito, eu não lhe dei um recado hoje, porque fui demitido antes que você voltasse do almoço: o Super quer falar com você amanhã, às oito.
— Ele que vá se foder com uma lanterna para achar que é vaga-lume.
Os dois riram, no meio da desgraça, sinalizando pelo menos com esperança. Paulinha ficou naquela noite e Geraldo dormiu no sofá. Apesar de tudo, ainda via nela a gerente de contas a que servira fielmente por dois anos e meio. Demoraria meses até ambos se darem conta de que haviam, de verdade, não de brincadeirinha, jogado pela janela duas promissoras carreiras de consultores financeiros.
Mas quando sentavam à mesa para comer com parcimônia frutas e vegetais de estação os dois se entreolhavam, cúmplices, com todo o passado perdoado. Com o tempo surgiu até uma sensação de sacralidade na figura dela: não mais a vadia da internet, mas outra vez a mulher adorável que era, sem papel nenhum a cumprir. Amou essa mulher, mesmo ela sendo quatro anos mais velha, mesmo ela não sendo tão bonita sem toda a maquiagem profissional que as gerentes de contas põem pela manhã.
Logo acabaram por perdoar-se também pelo que haviam feito um ao outro. Mas um dia a faculdade acaba, outra carreira vem e finalmente se arranjam na vida, com outras carreiras e prioridades. Nesse dia ficou mais claro do que nunca que “era apenas amizade”, claro nas palavras exatas de Paula.