Letras Elétricas
Textões e ficções sem compromisso
by J. G. Gouvêa Atualizado em 2021-05-05

Memórias de um Cafajeste

Publicado em: 04/08/2010

Eu tinha doze ou treze anos e era mais um menino pobre que estudava na escola pública do bairro. Levava uma vida tranquila, em que as emoções maiores eram ver o Supercine nas noites de sábado na televisão, folhear revistas pornográficas, raras e difíceis de conseguir e ir aos bailes de domingo no clube quando minha mãe deixava.

Admirava os mais velhos, achava-os sortudos porque iam nas exposições e traziam histórias de grandes shows e grandes paqueras. Quando me contavam essas coisas eu sentia mais que uma ponta de inveja. Eu queria merecer isso também.

Um dia qualquer de abril uma novata chegou à nossa classe transferida de outra escola. Uma morena bonita, de idade quase a nossa, de cabelos muito negros e ondulados, olhos brilhantes, jeito desenxabido e uma eterna vontade de sorrir. Seu nome era Júlia, e a primeira coisa que notamos foram os cadernos que tinha: não eram de uma garota pobre como nós. Havia nela, porém, algo que nos desarmou logo de início, causando uma estranheza e desconforto: aos quatorze anos, ela era mãe solteira.

Para nós, meninos recém-entrados na adolescência, palavrões e rock’n’roll eram as transgressões que conhecíamos e ela chegava trazendo a vida real que era bem mais transgressora que nossas tolices. De repente nossa falsa rebeldia juvenil não fazia mais nenhum sentido porque não tinha a menor graça sonhar bobagens na hora do intervalo enquanto ela amamentava a pequena Flávia.

Ela era uma boa pessoa. Sincera, honesta, boa de conversa, boa em ciências, ótima em Geometria. Estava sempre disposta a nos ajudar a entender a matéria.

Mas ainda assim, pelas costas lhe chamávamos de nomes feios. Na verdade, buscávamos uma categoria para incluí-la. Houve até uma discussão a esse respeito certo dia quando a turma se reuniu para jogar adedanha. Tudo começou quando o Vágner se referiu a ela como “a putinha da 6ª C”.

— Não, não. Ela não é uma “puta”, é só uma piranha — afirmou o Adílson.

— Não — discordou o Flávio — ela não dá para todo mundo, então não pode ser uma piranha.

— Também não é vadia, nem vagabunda, porque tem família — adicionou o Carlos Augusto.

Mas preconceitos são duros. Não se pode quebrá-los de uma vez só. Apesar da falta de acordo, ainda saímos sem chamá-la simplesmente de “Júlia, nossa colega da 6ªC”. Todos compartilhávamos de um mesmo medo: o de nos deixarmos fascinar por ela, que era bela e estava só.

Quando estava com a filha, a situação era ainda mais estranha: uma menina com outra nos braços. Uma menina que brincava conosco, conversava sobre os mesmos programas de televisão, que gostava dos mesmos grupos de rock mas que era mãe na hora do intervalo como se isso fosse

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