Tenho levado uma vida normal, terrivelmente normal até. Meus dezoito anos têm sido pontuados por experiências bem comuns e eu jamais fui à praia. Desde que nasci tenho sido uma típica criatura do interior, com uma vida que ressoa a árvores e regatos. Mas mudei-me para a Cidade Grande com meus pais há uns cinco anos e desde então muito rolou.
Meu jeito tranquilo tem sido sacudido e aos poucos, suavizado pelas experiências comuns de um adolescente de minha idade e minha época: estudo, trabalho e vou às festas nos fins de semana. Não fumo, mando uma cervejinha para dentro de vez em quando e amo, comportada e casualmente, a Maria Eduarda — que não me quer nem me nota.
Tenho, porém, minha gota de sonhos. Minha vida um dia será grande. Tenho vontade de ir aonde jamais foi alguém. Desejo de fazer uma obra que fique para a posteridade. Trazer a felicidade àlguém.
A Cidade é ruim para alguém que tem sonhos assim como os meus. É um lugar perdido longe do mar, longe de metrópoles e longe dos momentos em que a vida se revolve e os desejos tornam-se realidade. Vivem aqui milhares de pessoas tristes, feias, apressadas, desprovidas de gosto e de saudades verdadeiras. Gente que anda corretamente dentro dos velhos limites e não conhece nenhuma poesia. Gente que trabalha na Fábrica e vai à missa.
Nesse imenso amontoado de prédios feios circundados por uma floresta de casinhas baixas e feias e de palafitas debruçadas sobre o Rio Amarelo a minha vida escorre preguiçosamente enquanto meus sonhos vão lentamente desbotando.
Vivo em uma casa comum, nem perto nem longe do centro. Todos as manhãs sou acordado pelo ronco do ônibus que tenta subir a íngreme encosta e, com os meus sonhos cortados ao meio, desço para a minha vida. Isso é frustrante, às vezes, pois nunca consigo beijar e nem me enriquecer a tempo de gozar disso antes de acordar.
Desde que Fábrica fechou as portas e despediu alguns milhares a cidade está pior de ânimo, embora se respire melhor. O pessimismo tomou conta e o clima em geral acabou voltando a ser irrespirável. Os bailes de sábado estão menos vazios e as mentes menos dispostas a sorrir. A minha geração é infeliz. Os belos sonhos estão desbotados pelo confronto rude com a vida real e com a ditadura dos Generais. O que sobrou de planos desfeitos sobrevoando as cabeças dos jovens agora produz músicas fúnebres e revoltadas; que não trazem solução, mas alívio.
Onde Sílvia entra nisso? Nos conhecemos desde o primeiro ano da faculdade. Sílvia era já feita aos dezenove anos, eu era um menino ao seu lado, mesmo sendo só seis meses mais jovem. Mas eu era um menino ambicioso. Sentia-me atraído pela expressão vaga que havia no seu rosto, pela sua beleza agressiva e o jeito despojado de se vestir. Sabia que a olhavam quando passava, que era mais que simplesmente uma moça comum como as outras. Isso era o que me excitava, mas também o que me desanimava.
Até que um dia ousei. Convidei-a para ir ao show e ela surpreendentemente aceitou. Voltei para casa com os pés pisando nuvens e a cabeça cheia de sonhos. Foi a semana mais longa de toda a minha vida, enquanto me preparava.
Na entrada do Clube, todos pareciam não dar a mínima. Só eu me sentia especial e imenso. Olhava para Sílvia como se ela fosse um troféu que eu jamais merecera. Como se ela fosse algo que os outros talvez achassem que eu não devesse ter.
Quando digo troféu, gostaria de deixar claro que sabia que ela não era exatamente a nora que minha mãe teria sonhado. Sabia da sua fama. Quando me aproximei de Luísa, não fiz isso imaginando que fosse uma virgem inocente. Sabia que ela estava mais perto de ser uma puta que qualquer outra menina que eu conhecesse. Mas isso tem o seu fascínio. Ela era uma mulher livre. Ela tinha uma ousadia e uma beleza que atraíam.
Mas não era isso que me incomodava. Eu podia conviver bem, ou pelo menos achava que podia, com todo o passado que ela arrastava consigo. O que me incomodava era que todos me olhassem com ela e pensassem que comigo era diferente.
Todos os outros com que ela havia estado haviam ficado com ela quase que unicamente pensando em sexo. Mas eu achava que ela podia ser levada a sério por um namoro. Eu tinha medo que os outros não entendessem meus motivos e me achassem um banana.
Mas, pelo menos no começo, todos cuidavam de suas vidas e ela mantinha uma certa posição que não causava terremotos demais.
Gostei de ver que ela parece ter entendido desde o começo que havia algo de diferente em mim. Gostei de ver que ela apreciou isso. A minha esperança era que ela empregasse a sua ousadia de um modo diferente do que ela havia feito até então. Em vez de ousar ficar com muitos caras, ousar fazer muitas coisas… Se é que você me entende.
Por isso a sensação estranha de viver uma irrealidade me perseguiu ao longo daquela primeira noite. E por isso a noite saiu do controle, pois sonhos não têm amanhã. E foi por isso que deu tudo certo, pois o amor não nasce quando estamos pensando no futuro.