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Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Sobre Cães e Esses Bichos Esquisitos, Seus Donos

Publicado em: 16/08/2010
Original escrito e publicacado em dezembro de 2003

Estávamos bebendo cerveja e jogando conversa fora. Assunto vai e assunto vem, acabamos chegando a falar sobre a dubiedade do caráter humano. Aí algum humorista presente à mesa em dia de péssimo humor atalhou:

— O ser humano também devia ter cauda. Assim ficaria mais fácil identificar o prazer, a alegria, a dor, a contrariedade ou o cansaço. Não ia ser tão frequente esse sofrimento de decepcionar ao outro por não saber como reagir.

— Quem tem cauda é cachorro, ó João. Deixe de ser besta porque o único rabudo aqui é você!

— E você quer um animal mais afetuoso que o cão? Pare para observar esta pequena maravilha que é a raça canina. O cão de um homem lhe traz mais alegrias que seus filhos!

— Sai dessa! Cão é cão, filho é filho!

— Concordo com você: cães nunca tiram notas baixas na escola, nunca fazem birra na hora do almoço porque não querem carne ou não gostaram dos legumes, não insistem pedindo sorvete quando os levamos para passear mesmo que não tenhamos dinheiro, não precisam ouvir historinhas para dormir, não precisam ganhar presentes caros no Natal, não pedem carro emprestado para sair no fim-de-semana, não chegam de madrugada cheirando a álcool, não usam drogas, não nos dão desgosto quando adotam uma opção sexual diferente, não causam desgosto em ninguém quando tiram a virgindade da filha do vizinho, quando engravidam vagabundas não há problema de pensão alimentícia, etc. e etc.

— Mas cachorro é um bicho. E ainda por cima um bicho fedorento. Você não pode beijar cachorro…

— Mas se beijar seu filho pode dar sapinho ou cáries.

— Cachorro não sabe seu nome…

— Mas não se ofende quando você esquece o dele.

— Cachorro nunca vai ser nada na vida e te dar orgulho…

— Mas também não vai virar nem maconheiro nem puta.

— Ah, João, assim não dá para conversar com você!

— Mas o João aqui tem razão num ponto — entrou na conversa o Frederico, que andava quieto só escutando — cachorro é um bicho que sabe fazer companhia ao dono. Vira-latas principalmente. Nunca vi nada que se compare a um.

— Mas o sentimento que se tem por um cachorro é um sentimento meio mercenário, meio seco demais. Eu não conheço ninguém que dê a vida por seu cachorro…

— Alto lá que eu conheço! — atalhou o João.

— Algum demente, só pode ser!

— Nem tão demente assim. Um sujeito perfeitamente normal até o dia em que tudo aconteceu. Quer ouvir a história?

— Que história?

— Eu já contei essa história numa crônica que escrevi faz uns dois anos para o Correio da Cidade. Você vai me dizer que não leu na época?

— Não tenho o hábito de ler os jornais daqui. Eles não são jornais com J maiúsculo. Se juntar os oito não dá um.

— Discordo! — interveio outra vez Frederico — você está sendo injusto. Não se pode querer que exista aqui um jornal como O Globo ou o Jornal do Brasil. Aliás, aqui nesta cidade quase não acontece nada. De que ia adiantar querer fazer um Jornal com jota maiúsculo, como diz você?

— Estamos saindo do assunto — relembrou o João.

— Então conta logo a tal história do sujeito que morreu por causa de um cachorro — pedimos.

— Bem, ele não morreu exatamente por causa de um cachorro. Foi mais ou menos assim…

“O sujeito era empregado de uma fazenda e levava uma vida normal de tudo. Ele tinha um cachorro vira-latas meio-perdigueiro e meio-terrier que lhe acompanhava para cima e para baixo. Um belo animal, manso como só ele.

“Um bicho amoroso que até parecia meio gente também: brincava com os filhos do cara sem nunca machucar nenhum. Como era grande, as crianças menores costumavam tentar cavalgá-lo. Ele sempre saía de baixo com cuidado e nunca nem rosnou.

“Até o dia ficou doente. Não se sabe qual doença. O animal foi ficando tristonho e arredio e todo mundo achou que houvesse algum problema. Parecia ser vermes, caso que poderia ser facilmente resolvido com meio comprimido de Ascaridil dissolvido no leite. ’Mas eu não vou dar remédio a meu cão sem a opinião de um doutor — disse ele.

“Ele gostava muito do cachorro e resolveu procurar ajuda.

“Claro que foi difícil encontrar. Naquela época, idos de 1970 pouco mais ou menos, não havia veterinário na região a não ser os que trabalhavam junto às cooperativas de produtores de leite. Mas é claro que estes estavam interessados em vacas ou, na melhor das hipóteses, em cavalos, porcos, bodes, ovelhas, etc.

“E é claro também que estes veterinários atendiam somente ao particular ou então por conta das cooperativas. O nosso amigo estava numa situação difícil porque não podia pagar a consulta, e ninguém se importava com a doença do seu cachorro.

“À medida em que o tempo foi passando e o animal foi piorando, o cara foi ficando cada vez mais alterado. Até que um dia chegou no consultório de um veterinário e atirou sobre a mesa o cachorro já meio lambuzado de fezes — porque havia um pouco de diarreia também — e um maço de notas de pequeno valor, pouca coisa, na verdade. Ele olhou fixamente nos olhos do homenzinho careca e deixou sair de uma só vez:”O doutor vai curar o Baruio ou não vai?”

“E disse isso com tanta convicção que o veterinário até se assustou. Mas aí veio a crueldade. Em vez de mandar que o enxotassem do consultório com aquele animal fedido e sujo. O veterinário quis divertir-se com o sofrimento alheio.

“Mandou que lavasse o cachorro num tanque dos fundos e só depois o trouxesse de volta. Com o cachorro lavado e esticado sobre a mesa de trabalho, o veterinário tomou uma injeção de vermífugo das mais potentes e aplicou no bicho. Vermífugo para boi, vejam vocês. E para complementar o mal feito, ainda pegou um vidro de azeite de mamona…

— Azeite de quê? — perguntou o Frederico, que era carioca e não conhecia muito das coisas da terra.

— De mamona. Antigamente se usava isso para dar purgante em animais, e às vezes até em gente.

— Cruz-credo!

— Mas deixe eu continuar.

“Ele tacou todo o azeite pela boca abaixo do cão usando um funil de plástico. Como o vidro estava sem rótulo, foi só na hora em que o líquido já estava descendo viscoso pelo esôfago do animal que seu dono percebeu o que estava acontecendo.

“Indignado ele interpelou:”Doutor, o senhor não devia estar dando purgante pro meu cão, ele já ’tá com caganeira demais.”

— Você está enganado, este purgante vai ajudar a limpá-lo por dentro.

— Que revoltante — inclui Frederico.

“O cara também não gostou nem um pouquinho e começou a discutir com o veterinário e a falar muitas palavras duras com ele. Até que o veterinário perdeu a paciência e resolveu mandar o cara ir plantar batatas.

— Não é justo! — adicionei.

— Cale a boca que comunista não entende de justiça, e me deixe terminar:

“Foi preciso chamar a polícia para tirar o cara de lá. E os policiais, como era costume na época, aproveitaram para dar uma surra de cassetete no pobre coitado. Tiveram o requinte de dar umas bordoadas no cachorro também.

“Nosso ar de desaprovação já estava a ponto de nos fazer declarar amor aos cães, contrariamente às coisas que havíamos estado dizendo minutos antes.

“Aquela noite ele passou ao relento na cidade porque já era muito tarde para voltar para casa. Passou-a ao lado de seu cão, afagando-lhe a cabeça e lavando-o continuamente a cada jato de fezes misturadas com lombrigas que o animal expelia.

“Milagrosamente, ou talvez porque o veterinário tivesse — sem querer — feito a coisa certa, o cão sobreviveu.

“Quando o dia amanheceu ele se pôs a caminho de casa. Chegou ali pela hora do almoço, cerca de meio-dia e meia, mais ou menos. Infelizmente o seu sofrimento mal havia acabado de começar…

“Sua mulher o esperava à porta quando ele chegou. Ela estava impaciente e não aceitou desculpas e nem explicações. Xingou-o de todos os nomes que você conhece e mais alguns que inventou na hora. Botou o marido para fora de casa dizendo que era um absurdo que um sujeito passasse três dias fora de casa atrás de remédio para um cachorro inútil que nem doente estava.

“Ele então procurou seu patrão para perguntar se podia construir para si outra casinha de pau-a-pique — já conformado em procurar outra cara-metade. Mas a sorte madrasta ainda não tinha terminado. Nos três dias em que estivera fora, o patrão havia decidido despedi-lo e já havia outro trabalhando em seu lugar. Tamanhos eram os requintes de crueldade do destino que o seu substituto no serviço havia também passado a substitui-lo na cama da esposa.

“Não havia para onde ir e nem o que fazer. Tinha de deixar o próprio filho nos braços da mãe adúltera porque não tinha como conseguir ainda um lugar para dormir a noite.

“Daquele dia em diante ele não foi mais o mesmo. Mas ainda queria consertar a vida. Passou a andar pelas estradas em companhia do cachorro pedindo emprego nas fazendas por que passava e, se não davam o emprego, pelo menos um prato de comida e uma caneca de leite.

“Isso não o ajudou em nada a melhorar a sorte. Ninguém achava boa ideia contratar um homem tão estranho; sujo e usando sempre a mesma roupa porque era apenas uma muda de roupa que possuía — já que nada pudera retirar de casa.

“O cachorro era outra razão de desconfiança.”Por que alguém andará pelas estradas levando um animal desses?” — a gente se perguntava.

“Quando o dono estava dormindo, o cão lhe montava guarda com fidelidade extrema. Atacava com toda ferocidade qualquer um que tentasse se aproximar. Com o tempo circulou a notícia de que havia um mendigo louco vagando pelas estradas com um cachorro zangado. Logo se disse que o próprio mendigo teria contraído a hidrofobia. Definitivamente as portas da vida se fecharam para o pobre coitado.

“Um dia um fazendeiro local se cansou da história e mandou chamarem o hospital psiquiátrico do município vizinho. Internaram o mendigo louco sob seus raivosos protestos, em que insistia que não era louco, que tinha mulher e filho, que queria um emprego para ganhar a vida e que não era crime ter um animal de estimação.

“Sob os protestos também do cão. Foi preciso dar tiro para tudo quanto é lado para afugentá-lo. Mas não o mataram porque ele era esperto: estava acostumado a caçar e sabia o que eram espingardas.

“No hospício lhe deram o tratamento-padrão da época: eletrochoques, barbitúricos, sedativos e surras. Sua revolta contra o fato de o estarem tratando como um louco só fez com que mais ainda lhe dessem o chamado”sossega-leão”. Até que finalmente ele deve mesmo ter perdido o juízo.

“Depois que ele se acalmou e se conformou com a sua situação, as coisas ficaram mais fáceis e dentro de poucos meses já o estavam pondo de volta no mundo.

— Mas para quê? — perguntei — o cara não tinha mais família, não tinha emprego, todo mundo o chamava de doido. Que vida o coitado podia ainda ter?

— Nenhuma. E foi exatamente assim que aconteceu.

“Pelo menos lhe deram uma muda de roupas nova e alguns trocados”para recomeçar a vida, agora que está curado”. Ele voltou à mesma região onde antes vivera. Queria reecontrar o filho que deixara nos braços da mãe com menos de dois anos de idade e queria também procurar pelo seu cão.

“As coisas começaram, então, a ficar ainda mais tristes para ele. Imaginem vocês qual foi a reação da ex-mulher ao vê-lo chegar, ainda de cabeça raspada?

— Foi ao portão recebê-lo rindo? — disse Frederico.

— Não. Não acredito nisso — disse eu. Esse tipo de história nunca tem final feliz.

— Não tem mesmo.

“Ela trancou-se em casa. Trancou-se com o filho e mandou que pedissem socorro ao patrão porque o louco de seu ex-marido estava perambulando em torno da casa querendo roubar-lhe o filho.

“Alguns empregados da fazenda vieram e o expulsaram a chutes na bunda. E o pobre estava de novo jogado ao vento.

— Parece mesmo que o cachorro era o único amigo que ele tinha. Pobre diabo — disse eu.

— Tinha. Você disse bem. Porque já haviam encontrado uma maneira de acabar com a raça do Baruio.

“Mais ou menos nos mesmos dias em que o haviam levado ao hospício, algumas pessoas resolveram tomar o encargo de livrar a região do”cachorro do louco” e começaram a pôr-lhe armadilhas. Muitas falharam até que uma “bola” o pegou.

— O que é uma “bola” — interrompeu o Frederico.

— Xi, o carioca ’tá vendido outra vez… — disse o João.

— Uma “bola” — eu expliquei — é um pedaço de comida, geralmente carne, com veneno dentro. Se usava lá na roça antigamente para matar o cachorro dos outros quando ele se acostumava a vir comer nossas galinhas.

— Pois deram veneno assim?! Isso não se faz! Covardia!

— Muita covardia — disse João. Mas era uma coisa necessária quando o dono não tomava providências para impedir seu cão de alimentar-se no galinheiro do vizinho. Mesmo assim, muita covardia. E no nosso caso foi algo muito gratuito. O tal cachorro o que fazia era andar pelas estradas uivando de saudades do dono e caçado um animalzinho aqui e ali para comer: piriá, jacu, tatu, etc…

— Mas então deram uma bola ao cão… — insisti.

“A vida do pobre homem, a partir de então, passou a resumir-se à procura por seu cão. Ele nunca ficou sabendo que o haviam matado e nem como fora. Acredito que depois de um tempo ele começou a desconfiar, mas à medida em que essa desconfiança ia se formando ele ia perdendo a noção das coisas e se perdendo nos labirintos de si mesmo.

— Mas não morreu por causa do cão.

— Ah, foi mais ou menos.

— Um dia alguém, de gaiato ou querendo vingar-se, disse-lhe que o cão estava preso na propriedade de um certo Antônio Alves. Isso parece que renovou as energias do coitado. Achando que sabia do paradeiro do querido animal ele passou a viver em função de fazer planos para ir buscá-lo.

— Chegava nas vendas, nos bares, nas esquinas, em todo lugar onde houvesse concentração de pessoas e propunha: “Quem quer me arranjar uma arma para eu ir matar o Tõe Arve e pegar meu cão?”

— Um dia lhe deram a arma. Satanás sabe como escrever torto por linhas tortas. Apareceu um louco mais louco que o louco e lhe deu uma arma de fogo. E, de garrucha à mão, ele se dirigiu à fazenda do tal “Tõe Arve”.

— E o tal “Tõe Arve” tinha alguma culpa na história? — perguntamos os três.

— Provavelmente nenhuma porque era um sujeito do tipo que não se metia na vida dos outros por nada. E sua fazenda era uma das fazendas aonde o pobre “louco” nunca fora nem buscando emprego e nem pedindo comida, já que ficava num canto ainda pouco desenvolvido perto de um mato.

“Logo a notícia correu de que o louco estava indo armado à fazenda do Antônio Alves para matá-lo e roubar seu cão. Chamaram a polícia e o”louco” foi perseguido por um batalhão de soldados com fuzis em punho.

“Quando ficou sabendo o que estava acontecendo ele ficou apavorado. Odiava policiais, mas não gostava de se meter em encrenca. Ou talvez tivesse lhe passado pela cabeça um raio de serenidade e lucidez no meio da tempestade de loucura em que vivera por meses.

“Decidiu abandonar a sua busca e ir render-se. Foi em direção ao lugar onde, lhe disseram, os soldados estavam procurando.

“Quando os viu, gritou-lhes:”Ei, estou aqui!” e visivelmente mostrou-lhes a arma que pretendia deixar cair ao chão. Mais tarde se soube que ele sempre morrera de medo da polícia, mesmo antes de ter tomado a surra do começo da história.

“Mas antes que tentasse qualquer coisa já o haviam enchido com uma rajada de tiros de fuzil que não lhe deixou nenhuma parte do corpo intacta.

— Que revoltante — disse Frederico. Mas como você sabe que ele pretendia largar a arma?

— Por que eu era um dos soldados naquele dia. Quando eu olhei para o homenzinho que apareceu no alto de uma elevação mostrando uma garrucha eu entendi imediatamente que aquilo não era um gesto de ameaça, mas de rendição.

— Essa é a sua opinião.

— Ele poderia ter chegado atirando.

— Isso é verdade.

Então nos demos conta de que toda a alegria inicial havia se dissipado à medida em que a história fora desfiada pelo João.

— Alguém sabe o nome do pobre coitado?

— Dizem que ele se chamava Pedro.

— Pedro de quê?

— Sei lá. Talvez Pedro Silva, mais um dos muitos que há.

— Vamos erguer um brinde em memória desse cara. E desejar que na próxima encarnação ele não nasça para viver outra “vida de cachorro” como essa.

— Não, meu amigo — disse o João — não dá para levantar um brinde ao homem e esquecer a história. Ela está queimando dentro de mim faz quinze anos e nada a apaga.

— Você atirou também?

— Sim.

— Por quê?

— Depois que eu vi que todos haviam atirado e ele ia morrer mesmo de tanta bala, achei melhor dar um tiro porque o sargento estava me olhando feio.

— Solidariedade no crime — observei.

— Se algum de nós não atirasse poderia depois recriminar aos outros, especialmente porque quase que imediatamente todo mundo percebeu a inutilidade e o absurdo daqueles tiros.

— Então você abdicou do direito de apontar o erro alheio, errando de propósito junto com eles? — disse Frederico.

— João — eu acrescentei — você é pior que os seus companheiros. Eles erraram, você calculou.

— Vocês vejam se vão à merda! — disse João e se levantou da mesa e foi embora.

Troquei um rápido olhar com Frederico.

“Merda de mundo esse em que gente de bem às vezes se vê obrigada a fazer maldades para continuar vivendo!”

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