Augusta estava deitada quieta, nua, olhando para o teto, com o suor do corpo ainda evaporando após o amor, aquela sensação fresca, aquela preguiça, aquele formigamento…
— Venha morar comigo.
Assim, de repente, foi que Humberto pôs no ar a frase, solta e súbita. Mesmo a princípio se sentindo agredida, ela reagiu com moderação.
— Não é assim, Humberto. Não faz ainda nem cinco meses que a gente se conheceu.
— Por que não? Cinco meses me bastaram para querer você. Não devemos nada a ninguém. Tenho minha casa, minha vida. Você tem a sua vida, falta sua casa. Venha dividir a minha!
— Mas o que meus pais vão pensar? Minha família é daquelas que ainda espera que algum dia eu me case na igreja, com véu, grinalda e flor de laranjeira.
— Augusta, você não nasceu ontem! Você já sabe que o príncipe encantado não vai chegar em seu cavalo branco. Nem eu e nem você temos mais tempo para cumprir longos rituais. Seus pais já devem ter percebido há muito tempo que as coisas não vão ser do jeito que eles sempre sonharam. Está na hora de largar a barra da saia da mãe e correr atrás de seus sonhos.
— Seria mais fácil se a gente primeiro noivasse e depois se casasse.
— Você está realmente pensando que é uma boa ideia gastar milhares de reais em uma festa para pessoas que não nos amam ou até nos desprezam, fazer toda aquela pompa simplesmente porque queremos ver se podemos ser felizes juntos? E por que precisamos esperar meses fingindo que somos namorados?
— Não consigo aceitar com naturalidade a ideia de sair de minha casa e ir para a sua, assim simplesmente.
— Pois eu acho o contrário. Por que é que em tudo na vida temos de ter uma festa de inauguração? Não seria mais certo simplesmente fazer o que queremos?
Augusta riu sem nada dizer e se levantou da cama para ir tomar um banho quente, eram três e tanto da manhã, hora de ir embora. Humberto a acompanhou ao banheiro, também nu. Augusta espirrou-lhe água, reclamou que a droga do chuveiro não estava esquentando direito e que aquele sabonete tinha um cheirinho filho da mãe de ruim.
— Não se preocupe que amanhã o cheiro saiu. O tempo apaga tudo, até mesmo cheiro de sabonete de motel…
Augusta espirrou-lhe água outra vez enquanto se lavava e veio espiar, de brincadeira, enquanto Humberto urinava e retirava os restos de sêmen com o chuveirinho.
Um olhou para a cara do outro no intervalo de um suspiro e o relógio em algum canto do quarto soou a hora de voltarem para as respectivas casas.
No momento em que o carro cruzava o portão do motel em direção ao asfalto, começando o não tão longo caminho de volta, Humberto voltou ao assunto:
— Você não disse se aceita ou não.
— Por mim eu aceitava, não estou esperando um príncipe encantado que chegue num cavalo branco e me despose numa linda cerimônia para cinco mil convidados. Meu conto de fadas pode, de repente pode ser o do príncipe-sapo…
Humberto fingiu ofender-se. Sabia que não era nenhum deus grego, mas era evidente que ela não estava querendo dizer que fosse tão feio. E mesmo que estivesse, ele se sentia meio culpado pela rudeza com que introduzira o assunto e estava disposto a aceitar certos desaforos para compensar:
— Estou lendo uma pontinha de reprovação no que você disse. Falei alguma besteira grande hoje?
— Nada que a manhã não cure.
E o tempo passou. Como se ele nada tivesse dito. Continuaram se encontrando, continuaram bebendo, contando histórias e terminando as noites de sexta e sábado variando de motel.
Um belo dia o celular tocou na hora do almoço. Do outro lado alguém tentava aparentar descontração.
— Olá amor, como está?
— Melhor agora. E você, ’tá legal?
— Mais ou menos. Preciso de um favorzão seu.
— Quem eu tenho que matar?
Humberto ouviu uma risadinha presa, ou talvez um soluço. No momento era difícil distinguir.
— Posso te esperar na saída do trabalho hoje? Precisamos ter uma conversa.
— Tudo bem, saio às cinco.
Despediram-se e Humberto tomou o caminho do trabalho pensando consigo: “Mulheres! Por que ela não deixou, então, para ligar às quinze para as cinco? Vai me fazer passar a tarde inteira pensando o que, diabos, pode ser?”
E às cinco horas Augusta lhe contou que havia tido uma discussão em casa. Não é fácil uma mulher ter trinta anos e uma vida sexual ativa ainda vivendo com pais conservadores e irmãos adolescentes, especialmente sem ter emprego fixo. Um bom salário moraliza muitas atitudes de outro maneira indesculpáveis, mesmo em famílias católicas bicentenárias.
Mas como lhe faltava essa bênção do destino, Augusta acabou ficando sem defesas quando os irmãos resolveram lhe atingir com adjetivos mal-educados. Tentou o apoio dos pais e sentiu aquele gelo que caracteriza muito bem o desprezo. Por isso decidira jogar tudo para o alto e tentar na loteria do amor o sucesso que as muitas escolhas erradas lhe haviam negado em oportunidades de independência e profissão.
Humberto leu em seus olhos uma mágoa, e um sentimento de desencanto que ela não estava nem tentando reprimir.
— Como você está? — perguntou numa tentativa desajeitada de simpatia.
— Não muito bem. Minha vida virou de cabeça para baixo de uma hora para outra. Aquilo tudo perdeu um pouco do sentido. Tudo em que eu acreditava mais por querer sonhar do que por realmente crer…
Ele concordou num movimento de olhos, guardou um silêncio oportuno, disse-lhe palavras amáveis e depois aproveitou para adicionar um comentário que ela já provavelmente já previa ou — ou tentava provocar:
— O convite está de pé. Venha morar comigo.
Começou a longa e lacônica negociação. De um lado Humberto argumentando as vantagens de trazê-la para dividir seu lar. De outro Augusta resistindo, ele não sabia se por sinceridade ou se apenas para salvar restos de aparências. Não quis arriscar o clima impondo um ultimato. Deixou que as negociações seguissem no ritmo proposto por ela até que, finalmente, ela disse que voltaria em casa para fazer as malas.
Humberto disse neutramente:
— Posso buscá-la quando?
E Augusta o abraçou com a sinceridade de um náufrago que se agarra ao mastro da jangada no meio da tempestade.
Naquela mesma tarde ventosa Humberto estacionou a velha picape vermelha à porta da casa dos pais de Augusta e a ajudou a retirar as bolsas e mochilas que continham os poucos bens e direitos que acumulara.
Ao fim de tudo, ela fechou a porta, pôs a chave sob o capacho, sorriu e entrou na picape sem olhar para trás. E foi aí que Humberto, puxando a gola da camisa e limpando a poeira dos sapatos no estribo para assumir seu lugar à direção, percebeu o peso que jogava sobre os ombros: “Eu não posso simplesmente mandar essa mulher embora um dia!”
A picape deslizou pela rua abaixo, silenciosa como um lagarto, e ganhou a larga avenida de onde já não havia mais como voltar.
Augusta não trouxe muito, não o suficiente para abarrotar o enorme e mal-cuidado apartamento em que Humberto vivia sozinho e que tinha ainda muito espaço sem uso, quartos meio vazios e paredes sem nenhum adorno a não ser manchas e mofo. Estabeleceu-se lá e começou a impor sua ordem feminina, sua presença limpa e perfumada naquele lugar tão carente de cuidados cujo dono passava dez horas por dia fora.
E assim, a ex-vendedora, ex-costureira e ex-tecelã vestiu seu papel de dona-de-casa e começou a engordar e a preparar-se para a maternidade. Cumprira o ciclo da mulher cataguasense de antigamente. Fora adolescente viçosa e enfeitara balcão de loja. Fora jovem fogosa e saudável e produzira nas fábricas seu ganho. Passada a plenitude do vigor, no momento logo antes de murchar-se a flor, deixara a População Economicamente Ativa para ser uma mulher à procura de marido, que no fim das contas achou tarde mas ainda teve sorte, apesar de nunca ter vestido o branco de seus sonhos.
Então um belo dia Humberto abriu os olhos e se surpreendeu com a calmaria instalada na manhã. Deitado ainda em sua cama, às sete horas e vinte e cinco minutos da sexta-feira, procurou as familiares manchas de umidade do teto e as conhecidas teias de aranhas que se acumulavam nos cantos e sentiu no ar um cheiro distante de lavanda. Seu corpo nu ainda estava estendido no colchão escandalosamente macio e sentia o calor penetrante das cobertas de lã.
De repente — surpresa! — eis que havia outro corpo ao lado do seu sobre aquela mesma cama! Frações de segundo depois reconectou os fios da memória e se repôs no controle de suas emoções. Ainda não havia se acostumado a não dormir mais sozinho.
Ao seu lado Augusta ainda estava imersa nos seus sonhos, relaxada e indefesa. Humberto sorriu de pensar que na semana anterior sonhava intensamente algo como aquilo. Todos os instantes vividos a dois desde o dia memorável em que a conhecera surgiram de volta à lembrança desbotados como se fossem fotografias do século XIX e de repente as certezas ficaram também nubladas como uma imagem em tons de sépia.
O desajeito do primeiro encontro, depois daquela troca de olhares. Humberto andara a esmo pelas ruas da cidade por muitos anos e muitas vezes encontra companhias temporárias de variadas durações. Naquela noite a seguira até o bar onde começou timidamente a primeira de muitas boas noites de conversa e sexo instintivo.
Então, por um momento, teve dentro de si o calor do desejo que o levara a formalizar, num instante de loucura, o convite fatal que mudara suas vidas. A febre do verão na alma, o cio do corpo cansado, a ânsia angustiada por paz e domingos tranquilos.
Enquanto contempla o rosto álgido e abrupto da mulher que escolheu para si, Humberto se pergunta quem é ela. Que sabe ele dessa vida que veio habitar junto da sua? Debaixo deste rosto não há muitas pistas — e ele às vezes acha melhor assim; ou descobriria verdades incômodas e saberia de coisas que só fariam sofrer.
Nessas horas em que a razão não tem respostas, as cavidades obscuras da alma regurgitam férteis em numerosas alternativas. Por um momento breve e árido a sombra do arrependimento agride suas emoções com dúvidas e medos.
Mas a curva dos trinta anos traz consigo preocupações capazes de vencer as precauções comuns. Não confiar no desconhecido se torna perigoso depois que os horizontes seguros já manifestaram sua completa e decepcionante esterilidade.
Ter receios de ser abandonado deixa de fazer sentido depois que a vida se revelou um abandono e sentimos uma vontade imensa de confiar. Não ter amor nem filhos para aliviar a solidão da meia-idade e ficar mofando em casa ao lado dos progenitores é algo que definitivamente não soava como uma promessa de felicidade para o futuro e tampouco é doce olhar para as paredes nuas de um apartamento cavernoso onde a voz de um solitário parece o grito de um alpinista nas montanhas.
Homens ou mulheres, todos estamos propensos a derrapagens abalroamentos quando sentimos pulsar o desejo de ir rápido e além. Quando aceitamos e até desejamos fazer o que não faríamos ainda aos vinte e seis. O ser humano confia porque a confiança tem sentido para quem ama, porque amar é uma espécie de espírito que nos traduz em credulidade e paciência.
Augusta lhe faz bem. Cozinha e mantém em bom estado o apartamento que antes parecia um chiqueiro. Humberto já não precisa comer no restaurante barato do centro da cidade e aos poucos está descobrindo o prazer de fazer compras e organizar um belo almoço de domingo para depois ir passear no parque. Dentro de algumas semanas os choques iniciais terão sido superados e a família de Augusta talvez queira aparecer para o almoço. Principalmente porque já aceitaram que o casamento, que ocorrerá dentro de três meses, será apenas civil, mas será suficiente para que a sua filha seja esposa e não amásia.
Augusta lhe dá amor sem culpa e sem preço, aceita sua atenção cansada quando chega do trabalho, já pela noitinha, magoado e triste. Vivem um amor sem pressa e vazio de aventura.
Ela se sente melhor, apesar das manchas de umidade do teto. Há mais espaço para distribuir suas coisas, as que já tem e as que vai começando a comprar. Tem com quem conversar de noite na cama enquanto o sono não vem. Como sai menos, usa menos roupas novas e sobra mais dinheiro para comprar melhores, e também para outros luxos antes menos frequentes.
Para Humberto o apartamento parece ter ganhado vida. Já não existe mais aquela opressão dos cômodos vazios e das paredes nuas ao voltar para casa no final da tarde, já não há o aterrorizante fogão frio nas manhãs de domingo.
Quando chega e toma seu banho quente para ver o Jornal Nacional, Augusta vem sentar ao seu lado, terna e morna. Ela parece gostar de tê-lo. Deixa-se levar por seu carinho paciente, habilita-se a discutir as notícias do dia e juntos têm uma opinião formada sobre os melhores programas humorísticos. Compartilham o gosto pela música de antigamente e colecionam discos e livros fora de moda.
Augusta parece haver se conformado ainda mais rapidamente que ele. Quando saiu de casa, diante da reprovação dos pais e da inveja das irmãs, sabia que não devia almejar a muito. Estava saindo de uma vida desértica que conduzia a lugar nenhum, levando consigo algumas bolsas e a roupa do corpo.
A única exigência, o respeito de não ser posta na rua de uma hora para outra sem tempo de buscar um rumo. Mas sabe que será melhor depois de uns anos, especialmente se vierem filhos. Não se engana querendo enxergar além de cada dia, embora às vezes se surpreenda numa ternura quase boba, numa vontade desesperada de que seja para sempre.
Ser acordada com beijos, adormecer ao seu lado a cada noite. Tudo se reveste de símbolo. São manias que se transformam em maneiras de tentar agrilhoar o presente na eternidade. Passar as tardes de sábado juntos ouvindo música deitados nus na cama e fitando o teto é um modo de se rebelar contra o tempo e o destino — na pior das hipóteses faz o domingo ser melhor.
Se Augusta se perguntará em algum momento pela tal felicidade, palavra cruel que às vezes nos leva a desistir do que faz bem para ir em busca do indefinível impossível, isso é algo que nem importa agora. Humberto faz questão de evitar a qualquer custo esta e outras das palavras que tiram o sono. À medida em que o tempo passa, toma consciência do abismo entre sua vida e a dela, essa estranha que aportou em seu futuro. É inútil ter ciúmes de alguém assim. Que a vida seja um fato consumado e a felicidade, um estado provisório.
Então as divagações terminam. Ela acorda um pouco assustada, com olhos de preguiça perguntando por que. Sem que palavras ditas sejam, os dois se levantam, se banham, se vestem.
À mesa para o café, Humberto a observa com uma ternura entediada e estende a mão para brincar com seus cabelos. O cachorro do vizinho late invisível, a tênue neblina matinal se dissipa rapidamente e já se pode ver a torre de televisão no horizonte. Sempre é assim. Augusta aceita o carinho e depois o vê partir sentindo dentro um conforto impreciso e inseguro. Sabia que ele voltará pela tarde com o mesmo jeito doce e previsível — e por um momento se pergunta onde foi que deixou-se perder da estrada reta que leva aonde todos vão. Ou se finalmente a encontrou.
Reduzida a ser feliz, afastou essas ideias perigosas lavando as vasilhas do café e preparando-se para sair também.