“Não há uma história para contar” — disse o homem depois de olhar nos olhos os amigos que o rodeavam. “Lá em cima é frio e solitário, não há nada para ver e aquele vento que vem não te traz nenhuma sensação além do desespero. Não há nenhuma sensação mística, nenhuma experiência espiritual.”
E desceu, ainda com as botinas molhadas de orvalho, carregando nas costas a enorme mochila de acampamento. Os demais permaneceram ao pé do monte observando o acúmulo de nuvens brancas em torno do pico, temendo e ansiando pelo desafio de tocar com as mãos a ponta de pedra que diziam haver ali, oculta por aquela névoa sobrenatural que nunca desaparecia.
“Vento? De que diabos ele estará falando? Não pode haver vento lá em cima, ou não haveria aquelas nuvens”. O líder da expedição parecia confiante, embora algo ainda o fizesse hesitar: a lembrança dos gritos que ouvira logo que o guia atingira o cume para fixar as garras de metal.
“Esse homem só pode ser mesmo um louco” — disse um outro, um jovem de cabelos crespos e olhar luminoso.
Então todos concordaram em ir e fixaram-se à corda que bamboleava, seduzindo e assustando, saindo como uma serpente vermelha de dentro da névoa branca.
“Os últimos passos sempre são os mais difíceis… — pensou o líder — O ar falta, as pernas já não querem obedecer e ainda nos vem esta sensação estranha de que algo está acabando dentro de nós e que já devíamos voltar.”
A três mil metros de altitude falar torna-se penoso. Exaurida a última dose de tenacidade, todos lamentavam o excesso de ambição. Talvez tivesse sido bastante contentarem-se com a vista deslumbrante da planície verde pontilhada de coisinhas brancas e fitas de prata que pareciam rios serpenteando em meio às arvores.
“Estamos chegando.”
E a névoa aos poucos foi se abrindo, como braços. Deixando atrás deles uma luz cada vez mais difusa e fazendo as moitas de capim parecerem negras línguas emitidas pela terra raramente tocada pelo sol.
Ou pelo som de vozes, que pareciam amortecidas pela neblina.
Talvez aquelas pedras fossem a parte mais traiçoeira da subida, difícil enxergá-las em meio à brancura densa e úmida que se apegava a tudo e trazia para perto o limite da visão. Em qual delas pisar, de qual desconfiar.
Subitamente tudo parecia lindo, “como peixes nadando num aquário de leite”. Os homens subiam respirando com pulmões mais limpos, de tantos dias longe da humanidade, ali naquele lugar em que todos somos estrangeiros.
Então viram.
Veio como um murmúrio surdo, talvez de… não. Não podia ser. Assobiava como a ventania de agosto nas folhas finas do capim-navalha. Um assobio de fantasmas mesmo, algo como você ouviria se estivesse sonhando estar em uma montanha distante, sem nenhum telefone e sem a lembrança de deuses. Eles o sentiram contra suas barbas e cabelos, um frio mais fundo os tocou, um frio desses de alma, desses que a pele não sente, apenas pelo arrepio da nuca.
Subia e rodopiava, rápido o bastante para agitar seus cabelos, para fazer aquele assobio tenebroso nas folhas do capim. Lento, porém, para afastar aquela névoa dura que partia-os do mundo.
“Lugar feio mesmo” — concordou alguém.
“A partir dali parece que já é plano, não vamos precisar de corda nos últimos metros”.
“Ainda bem, porque a que temos precisamos deixar presa para usarmos como guia na volta, ou nos perdemos nessa neblina do c…”
A frase foi cortada pelo recrudescer do vento.
“Como se a montanha não gostasse de nós.”
“Você não devia ficar lendo estes livros malucos, eles ficam pirando sua cabeça com essas idéias místicas.”
Mas de repente era inegável que estavam sós em um platô desnudo, junto ao último lance de subida daquele pico sempre oculto pela névoa, que ninguém sabia quanto alto era e nem se estava em nosso lado da fronteira.
“As bússolas não estão funcionando.”
“Esta rocha em que estamos deve ser quase pura magnetita, um verdadeira ímã natural gigantesco!”
“O GPS também está estranho.”
“Interferencia magnética. Deus sabe em cima do que nós estamos!”
Os últimos metros de subida não foram os mais fáceis, talvez pelo ar tão ralo, aquele vento estranho e aquela neblina que não parecia pertencer ali. Tiveram de apoiar-se muito, escorregavam e por sorte havia aquela muralha de pedra tão perto da superfície lisa da encosta.
“Liso demais isso aqui. E frio como… vidro?”
“Sílica vitrificada pela ação do calor, e talvez da pressão. Este lugar parece ter sido mais interessante.”
Então chegaram ao topo e ali viram. Viram o que não queriam e não podiam ver. Viram o que viram e acabaram por esquecer: ali havia nada mais que uma rocha nua, de formato mais ou menos triangular. E sobre ela, em ângulo de quase 45°, uma lisa haste de material escuro terminando em um globo. Firmemente fixada. Inquestionavalmente ali.
Justo ali onde as nuvens chegavam ao seu teto e eles podiam ver o céu violáceo estendido acima, como um pergaminho místico.
“Não, ele tinha razão. Não há nenhuma experiência mística nisso.”
E desceriam, calados e temerosos, retornando às suas vidas normais, não sendo mais eles normais como antes. Mas enquanto se recompunham para a longa jornada de volta, o líder, fatidicamente, lembrou-se de dizer: “Vale a pena voltar aqui”.
Os demais o encararam, surpresos. Tinha sido tão difícil subir e tão difícil a experiência de contemplar a cena em que estavam. Pensar em retornar era até desagradável.
Mas à mera sugestão de que valia a pena voltar, a ideia começou a tomar forma em cada um. E todos perceberam, desde aquele momento, que fatalmente voltariam.