Amaralina tinha sido uma cidadezinha qualquer, com casas entre bananeiras, mulheres entre laranjeiras, pomares e amores para quem quer que soubesse vivê-los. Seguia sua vida besta bem devagar, entre montanhas bem altas, rios suficientemente traiçoeiros e solo providencialmente pobre de qualquer coisa que o bicho-homem pudesse querer arrancar à força de máquinas e dor.
A gente de lá era arredia e desconfiada de estranhos. Colonos tricentenários, muito pouco acostumados a quem não tivesse o falar líquido que eles tinham aprendido com os índios e os escravos, muito antes das modas de esses e erres que hoje impregnam todos os lugares. Mas mesmo assim eles não deixavam de ser pessoas calorosas, que sabiam aceitar os forasteiros, desde que mostrassem ser de confiança.
Um desses homens foi o professor Gualberto Silva. Ninguém lá nunca soube de onde ele veio, nem precisamente quando chegou. Uma localidade onde quase todos são analfabetos, onde não há jornal e mal há escola — não é surpresa que não tenham feito registro de quando ele apareceu. Por isso eu apenas sei que um belo dia deram por sua presença e ele foi ficando, ficando, ficou até morrer de velho e ninguém nunca soube de onde veio.
Gualberto era professor de música. Não se explica como ou porque uma criatura dessas foi pedir pouso lá em Amaralina, onde mal havia escola e ninguém nunca tinha ouvido falar de Bach. Alguns habitantes mais maliciosos do lugar sugerem que ele seria um criminoso fugido, outros que ele seria simplesmente um louco, mas outros, de coração mais puro, juram que ele apenas se encantou pelo silêncio, e pelas ancas morenas de Firmina das Neves. Firmina apenas sorri quando lhe perguntam, dizendo entre dentes que “não senhor, nunca soube de nada”. Mas todos sempre souberam que ela lhe cozinhava de dia e lhe aquecia a cama de noite e que eram dele os dois filhos clarinhos que teve solteira, ela que tinha não tinha na pele nenhuma herança que não fosse de índios ou de negros. Em Amaralina as pessoas não tinham esses escrúpulos: havia os comentários das comadres, mas ninguém a censurava porque até padre era coisa que raramente se via por lá, e viver amigado era tão normal que quando ouviam falar de alguém casado os habitantes diziam que era “casado como filho de coronel”.
Gualberto se tornou mestre-escola e ensinava aos moleques matutos coisas que surpreendiam. Até hoje quem passa por aquelas bandas fica besta de ver negros velhos de pé no chão que retiram de seus guarda-roupas rústicas rabecas cortadas ao estilo de violinos — e que executam nelas músicas que não se imagina que alguém nos cafundós de Minas Gerais possa ter aprendido. Como o velho Heitor dos Santos, que me trouxe lágrimas aos olhos com uma execução agreste e extraordinária dos Concertos de Brandenburgo.
Mas um dia Amaralina foi tomada de assalto pelo rádio. Inicialmente ninguém notou muita diferença, porque o rádio era, no começo, meio inocente dos terrores que traria. Basicamente ele trouxe música, um tipo diferente de barulho a que o povo de lá não estava acostumado. Claro, eles conheciam viola, pandeiro e outros objetos que produzem ruídos organizados, mas isso não é música, música é o que toca no rádio, e precisa ser gravado no Rio de Janeiro para ser “de verdade”. O rádio e o toca-fitas desempregaram os violeiros e fizeram as aulas de música artesanal do professor Gualberto saírem de moda.
Gualberto tinha especial predileção por instrumentos de sopro. Era um flautista folclórico, que fazia firulas e vozes no instrumento, flertando com melodias fugidias, mas nunca fúteis. Costumava passar pelas estradas à noite com o seu frágil flautim de bambu, e as notas das cantatas de Haydn flutuavam naquele sertão perdido, como almas penadas. Ele era o único que não tinha medo de fantasmas e nem de mulas sem cabeça — e nisso conseguiu convencer a Firmina, que muita vez saiu com ele pelas trevas silenciosas fazendo indecências nas moitas. Gualberto era um homem excêntrico, mas querido. Junto com o coração de Firmina tinha conquistado a amizade de muita gente — e a sua música era parte disso: humildemente aceitava tocar nas festas dos santos e nas festas improvisadas de “amigamento”.
A chegada da “música” não o desempregou, apenas lhe fez ficar melancólico. Antes as crianças paravam para ouvi-lo imitar pios de pássaros na flauta. Com a chegada da música as pessoas nem querem mais ouvir os próprios pássaros. Foi ficando perigoso andar de noite, especialmente a fazer indecências nas moitas, porque mais gente também andava, indo e vindo de bailes aqui e ali, nem sempre com boas intenções.
Preso em casa com sua cabocla e seus dois meninos, Gualberto se sentiu de novo como um pássaro. Nunca disse a ninguém quando tinha se sentido antes do mesmo jeito, mas as más línguas inventaram hipóteses que envolviam sempre sangue. Com o tempo foi definhando, ficando afastado das pessoas, enfadado do flautim. Ele sempre fora um solitário, desde que sua mulher morrera de parto antes mesmo que ele fosse para Amarelinha. Tinha Firmina, mas não tinha amigos. A companhia das pessoas nas festas eram todos os amigos que tinha. A flauta lhe abria portas, que o rádio e sua música fecharam. Ele deixara de ser o homem que enfeitiçava a todos com seus floreios e restou o magro e esquisito forasteiro, com seu jeito diferente e suas manias. Até a Firmina, um dia, achou-se aflita com tudo e, insuflada por um intrigante, saiu de casa e foi viver com Valentino Silva, o valentão local, na casa que ele ganhara de um coronel, pagamento de mortes, segundo diziam.
Aposentou-se da escola o Gualberto. O governo do Estado lhe deu uma pensão, devidamente miserável, como convém ao pagamento digno. No lugar da velha escola de terra batida, ergueram um colégio, onde pedagogos formados ensinavam muitas coisas, mas nenhum tocava flauta nem conhecia os pássaros.
Gualberto passava as tardes no alpendre da velha casa, sozinho com sua flauta, sofrendo a saudade de Firmina e a catarata que lentamente vinha. Não aceitou nunca ter sido abandonado, sempre repetiu que ela lhe fora tirada à força. Muita gente acreditou nisso quando Valentino, num instante de desespero, a matou a foiçadas. Estranhamente a morte ocorreu na estrada da Fonte, que seguia até a casinha de Gualberto.
Pela primeira em muitas décadas deu polícia no lugar. Vieram doze soldados com um mandado e um oficial, para prender o Valentino, que diziam procurado em outro estado. Nunca o acharam, dizem que se matou na Represa da Onça, ou ali o mataram, para que nunca falasse. Mas os soldados trouxeram terror a Gualberto, não se sabe o porquê. De saber que andavam por perto perguntando às pessoas por pistas do pistoleiro ele ficou afônico e afinal, definhado como estava, falhou-lhe no peito o ventrículo esquerdo, segundo disse o doutor que o enterrou.
Morto Gualberto, morta Firmina, os meninos sumidos no mundo, não sobrou ninguém que lhe fizesse velório. Apenas a Domingas, irmã da Firmina, chorou o seu corpo quando o puseram na cova.
Isso foi tudo há umas três décadas, e ninguém mais fala em Firmina nem meninos e nem Gualberto. O flautista está esquecido, não lhe sabem sequer o nome. Dizem que foi um perdedor apenas, que ficou sem nada no fim. Eu acho que foi o mundo que perdeu, que somos nós que nada mais temos.