Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Alguns Clichês

Publicado em: 27/08/2010

Este texto foi escrito nos tempos em que eu ainda não era persona non grata em certos círculos pseudo literários do Orkut, numa época em que ainda havia quem achasse que eu tinha conselhos a dar. Como nunca fui de bancar o padre e nem de fazer análise do sonho alheio, eu costumava usar de bom humor para provocar as reflexões que me interessavam. E de quebra, para justificar que lessem, eu botava de entremeio algum conhecimento extraído de minhas leituras ao longo da vida. Assim eu fiz esse pequeno guia sobre as convenções mais comuns da literatura.

“Clichês” eram peças de metal gravadas com figuras usadas para ilustrar os livros impressos nos primórdios da tipografia. Um artista entalhava no metal os contornos da figura, que era umedecida com a mesma tinta utilizada para imprimir o corpo do texto, resultando em ilustrações monocromáticas e econômicas. Assim eram os livros até bem recentemente, antes da invenção dessas modernas impressoras de alta tecnologia, que requerem tão pouco artesanato.

Produzir um clichê representava um investimento: se o livro vendesse mal, as ilustrações criadas para ele se tornavam num trabalho perdido. Por esta razão somente livros muito populares recebiam o privilégio de ter ilustrações. Livros menos populares costumavam ser enfeitados apenas com “ornamentos tipográficos” (antepassados dos “dingbats”). Uma opção muito menos nobre e mais desagradável era a utilização de ilustrações “genéricas”, que podiam ser facilmente inseridas em vários livros diferentes. Tais ilustrações “básicas”, de tanto serem reaproveitadas em várias obras, acabavam ficando mais gastas que os tipos de texto ao redor, deixando claro, mesmo ao leitor que não as reconhecesse, que se tratava de uma edição barata e descuidada.

Se o termo perdeu a ofensa original, isto é porque a maior parte das obras literárias e cinematográficas de cem anos ou menos para cá se baseia exclusivamente na reaplicação de clichês. Quem quiser, que os evite na tentativa de ser “artístico”, quem pensa no dinheiro, corra a enfiar o maior número possível deles em seu livro para agradar o “gosto do povo”. No fundo, os clichês se baseiam em arquétipos, e por isso se tornam tão facilmente simbólicos. Desta forma, o uso bem dosado de clichês, em vez de ser uma pobreza, é uma maneira de encontrar raízes psicológicas profundas para seus personagens.

A seguir vai uma lista de alguns clichês que eu reconheço, com alguns comentários engraçadinhos, totalmente sem graça.

Garota Branca e Indefesa em Apuros
A mulher que está em perigo e que o herói tenta salvar é sempre excepcionalmente bela e normalmente branca. Raramente ela tem alguma iniciativa na história, é apenas uma abobalhada que espera seu príncipe encantado. Exemplos clássicos: as princesas dos contos de fadas, como a Branca de Neve.
Puta de Coração de Ouro
Um dos tipos básicos de personagem prostituída que aparece nos livros é o da puta de coração de ouro, que se sacrifica pelo herói ou que, “inesperadamente”, tem um gesto de bondade em um momento chave da história. Já no século XIX os satiristas ingleses já faziam troças com Dickens e outros autores por empregarem como recurso literário uma “tart with a heart”. Ao contrário da Mulher Branca em Perigo, que está sempre no fio da navalha mas não morre, a Puta de Coração de Ouro é “escolada” em se livrar de perigos, mas sempre acaba assassinada, morta em acidente ou definhando até a morte de uma doença horrível. Exemplo clássico: a Dama das Camélias.
Macho Alfa de Peito Desnudo Marcando Território
O termo “macho alfa” é usado em Etologia para descrever padrões sociais em animais gregários — como lobos, hienas, elefantes, gorilas etc. Transpondo para o universo da ficção, você consegue imaginar que Rambo, Chuck Norris (na sua fase áurea) ou os personagens de Marcos Pasquim nas novelas do Carlos Lombardi sejam outra coisa que não machos-alfa se exibindo para as fêmeas?
Mulher Valente Que Salva o Herói Orgulhoso
Os filmes de Hollywood, numa tentativa de agradar as feministas, estão cheios disso de uns vinte anos para cá. Todo grande filme de ação tem pelo menos uma mulher de temperamento e pulso firmes fazendo coisas heroicas, sem nenhum respeito à coerência histórica ou à lógica interna da trama: o importante é humilhar o macho e mostrar a força feminina. Em geral essas mulheres arranjam um jeito de não conseguir esconder seus fartos seios, suas belas pernas ou até outras coisas, porque elas podem ser duronas, mas precisam ainda agradar aos machos.
Guerreiros que Morrem como Cartas de Baralho
Muito comum no cinema, este clichê consiste, basicamente, em não levar em conta que soldados manejam espadas melhor do que camponeses, que bandidos atiram melhor que fazendeiros, que metralhadoras matam melhor que fuzis etc. O herói desconhece todo obstáculo e perigo e mata todo mundo, pois todo antagonista é uma primata antropoide com cérebro de lesma e os seus capangas atacam um de cada vez (como nos filmes do Bruce Lee). No seriado “Buffy, a Caça-Vampiros” a personagem-título consegue não apenas sovar as malditas criaturas das trevas usando golpes de karatê como ainda as mata usando qualquer coisa de madeira. Em certo episódio, matou o vampiro fincando um lápis em seu coração!
Mudança de Lado Anunciada
Quantas vezes você não detecta, logo de cara, que certo personagem “bom”, na verdade é mau ou que certo personagem “mau” na verdade é bom? Isto acontece porque personagens clichê são imutáveis: eles não são de uma opinião e depois passam para outra, eles apenas fingem ser uma coisa mas na verdade são outra. Sacaram? Personagens clichê não tem conflitos, eles nasceram sabendo o que queriam ser. A mudança de lado está anunciada pela cor da roupa, pela expressão facial, pelo tom de voz, por uma série de coisas que diferenciam um personagem “bom” de um “mau” e só o herói não percebe. Se você algum dia cair dentro de um filme clichê, sempre saberá em quem confiar.
O Filho Pródigo Vingativo
Ele passa a vida inteira desobedecendo e fazendo de tudo para matar o velho do coração. Daí ele morre mesmo e o filho se debulha em lágrimas. Se for um personagem “macho” (o que não exige necessariamente o sexo masculino) a solução para isso é ir em busca de vingança e matar alguém. Se for uma personagem “fêmea” (idem) ela vai arranjar um macho que faça o serviço.
O Zé-Ninguém que Descobre Ser Importante
Todo personagem-clichê que é ao mesmo tempo protagonista e pobre, invariavelmente fica rico ou poderoso no decorrer da história. Isto geralmente acontece quando ele recebe uma visita de um desconhecido, o que geralmente ocorre em uma fase de transição em sua vida, que pode ser da infância para a adolescência ou da adolescência para a idade adulta.1
O Poderoso com uma Fraqueza
Todo monstro poderoso será derrotado por uma fraqueza absolutamente ridícula. Tolkien cometeu esse clichê (ou o inventou) duas vezes: Smaug morre porque tinha uma pequena falha em sua armadura, bem junto ao coração, que foi explorada por Bilbo, e que ele não podia ver porque era hipermetrope. Mais tarde, na Saga do Anel, um dos Nazgûl — que tinha uma proteção mágica que impedia que ele fosse morto por qualquer homem — é morto por Éowyn, uma mulher. E não podemos esquecer do Mega-Besta Sauron, que atou sua vida a um anel de ouro e morreu quando destruíram o seu anel. E nem foi por empalamento.
A maldição curada pelo amor
Qualquer coisa que apareçoa numa história como “Branca de Neve e os Sete Anões” deve ser usada com extrema cautela em sua história. Mesmo assim, o amor segue ressuscitando casais apaixonados em todo tipo de obra de ficção, de novelas da Globo a filmes de suspense. A ressurreição costuma ser disfarçada: “ele não estava morto, só desacordado, e despertou com o beijo” (mas esta é quase a explicação dada pelo conto da Branca de Neve, que não estava morta, mas inanimada pelo feitiço).
O retorno do amante
Sempre que uma história começa com uma mulher infeliz no casamento, invariavelmente aparecerá um amor do passado para tentá-la (ou consegui-la). O amante sempre estará mais bem conservado que o marido ou, no mínimo, mais magro, e terá de sobra exatamente a principal qualidade que a mulher vê faltando no seu cônjuge. Existem, porém, dois tipos de amantes: os ricos e os pobres. Os primeiros costumam ser pobres disfarçados e os segundos costumam se rricos disfarçados.

Da próxima vez que for escrever uma história eu vou tentar escapar desses clichês mais óbvios. Mas se não conseguir, pelo menos terei o consolo de que muita gente vai gostar.


  1. Inacreditavelmente, eu escrevi isso sem nunca ter ouvido falar, até então, na famigerada “Jornada do Herói”.↩︎

Arquivado em: reflexões
Assuntos: escrever humor