Aparentemente, os jovens, especificamente os que gostam de escrever, possuem um fascínio pela morte digno de nota. Nove em dez jovens autores já escreveram algum texto contemplando a ideia do suicídio (eu mesmo fiz isso nos meus vinte anos), dez em dez fizeram da morte de alguém (real ou imaginário) o tema de algum texto que julgam significativo.
Nada disso é novo, no entanto: morrer sempre foi fashion. Nos tempos românticos de antanho, quando as pessoas ainda levavam literatura a sério e a palavra “antanho” ainda não era ridícula, morrer cedo era o que o poeta poderia fazer de mais chique. A modalidade da morte variava de acordo com a escola literária: os ultra-românticos preferiam a tuberculose ou o suicídio, os byronianos sonhavam morrer na guerra e os simbolistas foram os pioneiros da overdose.
A morte está sempre presente no quotidiano do homem, apesar de nossa teimosia em enxergar flores rosadas e céus azuis no horizonte. Isto explica porque os jovens sensíveis que se sentem atraídos pela literatura se sintam igualmente atraídos por ela que teve mil nomes nos versos dos poetas mortos, quase tantos quanto Satanás tem no xingatório popular. Sua presença é ainda mais intensa em nossa sociedade injusta, bruta, estúpida e desigual, baseada na força do dinheiro, que compra todos os ideais e esmaga todos os que são puros. Isto explica porque a morte virou uma estética?
Talvez não. A estética da morte não é nossa, é importada de fora. Reflete ideais e presságios de outras culturas, que enfrentam dilemas que podem até ser parecidos, mas não idênticos. A estética do assassino em série, da descrição minuciosa da tortura, da execução milimétrica do crime… nada disso deriva de nossa violência atávica, mas de uma estranha estetização, ou talvez até erotização, da morte em contraposição ao sexo. A estética da morte é cristã, por isso ressoa no católico quieto que existe dentro de cada um de nós.
Nós que admirávamos os santos loucos e suas sete chagas. Nós choramos com Marcelino Pão e Vinho, morto aos doze. Nós que aceitamos como exemplo Santa Teresinha do Menino Jesus, com sua biografia de criança submetida a maus tratos e morta precocemente por desnutrição e exposição aos elementos. Nós que rezávamos para os mártires com admiração.
A vítima do crime literário é um mártir moderno. Não importa se a morte é real ou apenas uma narrativa inventada. Os martirológios não eram tampouco factuais: não tinham o objetivo de ensinar histórias, mas de trazer ao cristão a experiência do sagrado. E não há experiência mais sagrada do que morrer.
Só que o cristianismo mudou. Ficou luminoso, deixou a cripta e a catacumba, fugiu da catedral tumular de granito, saiu da basílica cavernosa. Quase que não notamos a morte quando vamos às igrejas floridas de hoje, mas ainda queremos experimentar a morte, precisamos dela.
Então a religião, atenuada por uma tentativa de fugir ao mórbido, perde espaço para formas não-religiosas de experiência do sagrado. Se não posso me martirizar lutando contra sarracenos, então faço uma tatuagem. Se não posso me encher de cicatrizes de auto-flagelação, então ponho piercing. Se não posso ser morto em nome da fé, me mato em nome do vazio que me engloba e me comprime em uma célula de nada da qual sou apenas o núcleo flácido.
E tudo isso que não faço ainda, ou em que ainda não penso, realizo imaginariamente na escrita. Meus personagens são mártires nos quais me ensaio a morrer (talvez na esperança de que eu mesmo não me mate amanhã). Não escrevo por estar vivo, mas por ansiar não estar mais.
Isto explica o fervor dos fãs de certos personagens, de certas séries: são paliativos para a dor da falta de morte na religião. Se ao menos houvesse uma Pirâmide do Sol e se houvesse sacrifícios humanos…
Não. Não há. Nossa sociedade não admite mais a violência pública. Prefere admitir a violência privada, que a lei não pune. Nossa violência se está aculturando. E nós a cultuamos. E nós a transformamos em literatura.
Houve um tempo em que os jornais estavam cheios de humoristas. Hoje eles estão vazios até de notícias. Pouca gente leva humoristas a sério se eles não se parecerem com jornalistas. E o pior: os jovens de hoje parecem não saber rir mais. Ande pela rua e confira as caras, amarradas. Ser feliz não está na moda. Está na moda é a morte.