Escrito originalmente em 1999 ou 2000, este texto foi um de meus primeiros experimentos em prosa e é por este motivo que o preservo.
Em sua calma sensualidade, a mão sobre o peito e a inocência no rosto, ela balbucia uns segredos inconclusos. Bela Adormecida tão recentemente apresentada à ingratidão do mundo, murmura festividades verbais inconsequentes que flutuam sem compor ordem na confusão improvisada de seus pensamentos. Ela não sabe, mas sente, que as palavras são armadilhas em que sempre caímos.
Há tão pouco tempo ela atingira a feminilidade que ansiosamente desejava, há tão pouco tempo o seu corpo luminoso adquirira a opacidade necessária à presença e a tangibilidade requerida pelo afeto mundano… Os seus dons quase perfeitos de inábil sedutora ainda eram tão felizes imprevistos em sua polidez de quem mal adquiriu o controle de si mesma… A manhã finalmente escancarada pelos passos dos vizinhos e pelo sol no corredor, Catarina insiste fechando os olhos à luz que a agride, à luz que bem algum lhe faz. Mas não há como fechar-se ao amanhecer, ainda que nenhum galo habite a germinação do novo dia, os cabelos desfeitos não são suficiente proteção contra a realidade que teima em existir, apesar do arrependimento, desprovida de afeto ou preocupação. A aridez das cortinas brancas não a socorre com qualquer consolo, o seu aceno seco a fustiga ainda mais com a luz ardente e as sombras projetadas nelas não trazem da realidade mais que a lembrança, porque o apartamento está vedado a estranhos e Catarina quer saborear sua derrota na paz de seu lugar.
E faz a cama mantendo sua classe, despe o pijama estampado de ursinhos e elefantinhos e, não se importando se o chão resfria os seus pés, ela segue o caminho de seu dia: um banho quente de chuveiro, um gole de oração e um café com pão e ei-la pronta. Quando ainda está vindo nua do banheiro, a sua nudez fragmentária ao sol, os cabelos transformados numa auréola esvoaçante, a ligeira intumescência do abdômen… Lembra-se das noites a beber sozinha, o príncipe montara seu cavalo branco e se fora, talvez até fosse um sapo… O cavalo branco era tão bonito que Catarina não percebeu inteiramente quem era quem o montava. Perdida agora no mundo, sem príncipe, sem mãos agudas capazes de lhe dar destino. Pesada, foi achada em falta. Um gosto cítrico desmancha o hálito nauseabundo do jejum e o gosto de sangue, incômodo e grosso.
Aprendiz de feiticeira, queimara a mão quando brincava e agora está sozinha em uma casa menos amiga. É a sua casa, mas isto implica em solidão. No banheiro, firma a mão na pia e olha no rosto as marcas da noite, enquanto o crucifixo negro pendeu no ar casualmente livre e sem outro significado. Apagara do rosto, com água fria, e indiferença, a brasa restante da beleza e cuspira na pia a saliva espessa de um sono pesado. As dores dos novos dias estão chegando, Catarina quer aproveitar a sombra, enquanto não vem o vento estrondando portas e rasgando cortinas. Ainda há alívio no urso de pelúcia, mas não houve nunca salvação, agora há alívio nas pílulas paliativas, mas não haverá mais. Sente o vento entrar por alguma fresta e sabe que uma chuva vem. Fecha os olhos. Não há mais mundo. Não há mais dor.