Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Dadaísmo Para Todos: O Apocalipse da Literatura Vem Aí

Publicado em: 15/09/2010

Talvez você nunca tenha ouvido falar da Máquina Dadá (“The Dada Engine”), mas este curioso software feito por um grupo de adolescentes americanos é uma das coisas mais revolucionárias em termos de literatura nos últimos cinquenta anos. O impacto de sua existência ainda não foi percebido porque ele ainda é relativamente difícil de configurar e de usar, mas no dia em que se escrever uma gramática e um dicionário para um programa análogo à Máquina Dadá, metade da produção literária e musical do século XX deixará de ter valor, milhões de livros não serão mais que bonitos calços de móveis.

Vamos recapitular as coisas para vocês acompanharem meu raciocínio, porque a inspiração dessa conclusão me “eletrificou” de uma forma que eu ainda nem acabei de pôr minhas ideias em ordem.

Em 1917 um poeta romeno chamado Tristan Tzara vivia exilado em Zurique. Um dia, enquanto penosamente estudava francês com a ajuda de um dicionário, teve uma “ideia” para uma nova forma de fazer literatura: recortou palavras a esmo em um exemplar do Le Figaro e as misturou em uma tigela, sorteando-as ao acaso. Aos “textos” assim obtidos ele chamou “dadaístas”. Há muitas lendas sobre a origem da palavra “dadá”, que significaria “cavalinho de pau” em francês ou que seria uma brincadeira com o hábito dos exilados romenos pontuarem sua conversa com a exclamação “Da, da!” (“Sim, claro que sim”). O fato é que muita gente embarcou na onda da livre-associação, acreditando que essa nova literatura, que buscava ter acesso a insights interessantes da psique humana a partir da contemplação de palavras aleatórias. Carl Jung, o psicólogo, não deu-lhe muita importância: “É idiota demais para sequer ser doentio.”

Um pouco mais tarde surgiram os surrealistas, que acreditavam no poder da imaginação desenfreada para criar obras livres das amarras do academicismo. Os concretistas, que negavam toda forma de inspiração não-racional e produziam obras mais para sere vistas do que lidas, etc.

Quase todos estes estilos tiveram em comum o ataque à coerência do discurso da palavra, da intencionalidade. E é justamente aqui que a Máquina Dadá desfere seu golpe devastador na arte que se construiu sobre estas premissas, especificamente falando da arte literária construída desta forma. A Máquina Dadá é um software que gera textos.

Sim, textos. O nome não é casual. Os autor Andrew C. Bulhak (o site “Null Device” não indica o autor, mas seu nome é conhecido) quis intencionalmente referir-se a Tristan Tzara recortando palavras de jornal e sorteando-as de forma a produzir “textos”. Só que a Máquina Dadá faz melhor do que ele: ela produz textos sempre legíveis, sem a necessidade de adição de quaisquer artifícios, embora normalmente tais textos sejam absurdos.

Existem poucas aplicações práticas da Máquina Dadá porque programá-la para obter bons resultados é algo bem difícil. Requer um arquivo de “dicionário” no qual as palavras estejam devidamente identificadas com sua função e um arquivo “gramática” no qual as regras de formação e pontuação de frases estão fixadas. Tendo os dois, a Máquina Dadá sorteará palavras a partir de um conjunto de textos, segundo as regras dadas, e cuspirá de volta novos textos que refletirão de alguma forma a “inspiração” do original.

Vocês estão entendendo as implicações disso? Se um software é capaz de produzir textos legíveis a partir de um conjunto de arquivos de referência, então QUAL O VALOR ARTÍSTICO DE UMA OBRA QUE, no fim das contas, NADA MAIS É DO QUE UM TEXTO PRODUZIDO ALEATORIAMENTE? Qual é o caráter artístico de um texto que não se diferencie de outro produzido por uma máquina? Vejamos alguns exemplos de aplicações da Máquina Dadá para deixar as coisas um pouco mais claras.

O primeiro exemplo de Máquina Dadá que eu encontrei foi o “Gerador de Ensaios Pós-Modernos”, hospedado no blog Communications from Elsewhere. Esta máquina dadá gera artigos de “Ciências Sociais” sobre temas como metalinguística, sociologia, semiologia, etc. Os autores tiveram o cuidado de usar referências fictícias para evitar processos dos autores satirizados (Husserl, Rossett, Eco, Foucault, Jakobsen, etc.) ou de suas famílias, mas aos olhos do leigo, os textos do gerador de pós-modernismo não são distinguíveis dos legítimos ensaios produzidos pelos mais famosos autores destas áreas. Isso diz muito sobre a qualidade do Gerador e dos leigos.

O físico americano Alan Sokal foi bem-sucedido em publicar em uma revista, a “Social Text”, um ensaio absurdamente idiota produzido pelo gerador de pós-modernismo, com algumas modificações nas referências, na introdução e na conclusão. O evento ficou famoso como o “Caso Sokal”, e gerou graves discussões no meio acadêmico.

Americanos satirizam algumas universidades que consideram “de terceira linha” obtendo pós-graduações nelas usando textos gerados eletronicamente por uma versão da “Máquina Dadá” que circula entre a comunidade hacker americana como um quase segredo de estado. Estima-se que até 30% das pós-graduações em algumas universidades americanas são obtidas de forma fraudulenta e agora já se sabe que parte dos ensaios submetidos para obtenção dessas graduações podem ter sido feitos por máquinas dadá. O mais impactante é que esses ensaios não estão entre os que seriam rejeitados imediatamente por plágio. Uma máquina dadá não comete plágio, ela produz textos originais, mas absurdos, que poderiam, com algumas modificações, obter uma nota mínima de um professor preguiçoso, e resultar numa aprovação. Se os estudantes brasileiros aprenderem a programar uma máquina dadá só Deus sabe aonde isso vai parar.

A versão mais popular da Máquina Dadá é conhecida como “Gerador de Nomes de Grupos de Rock”. É um dos “Geradores” hospedados no site Generator Land. Trata-se de uma aplicação bastante simples, de gramática fácil de programar: baseia-se na seleção de uma determinada quantidade de termos (um, dois ou três; fora os artigos e preposições) que são pescados de uma lista de nomes de grupos musicais que realmente existem ou existiram. Brincando com essa máquina em alguns minutos eu produzi nomes hilários e interessantes, como “the Small Mice” (os Ratinhos), “the Plague of Fingers” (A Peste dos Dedos), “Invisible Clowns” (Palhaços Invisíveis), “The Kamikaze Peace Makers” (Os Pacificadores Kamikazes), “Bag of Hogs” (Saco de Porcos), “Unholy Bone” (Osso Sacrílego), “Ganja Market” (Mercado de Maconha), “A Pool of Devils” ““(Uma Piscina de Diabos), etc.

Outras aplicações mais complexas da “Máquina Dadá” que podem ser interessantes são o Gerador de manifestos políticos, o Gerador de textos criacionistas, o Gerador de papo de advogado e o Gerador de xingamentos e Todas estas estão hospedadas no site Herbert, The Little Red Haired Girl (atualmente parece haver um problema de configuração com estes scripts, que não estão funcionando).

As aplicações a seguir não são máquinas Dadá, mas se inspiram nela ou seguem os mesmos princípios:

Este último produz textos romantiquinhos melosos e convencionais do tipo que “poetas” adolescentes escrevem, a partir de uma série de palavras informadas em um formulário: fruta preferida, adjetivo em que você está pensando, flor mais bonita, instrumento musical, nome de mamífero, nome de ave, peça de roupa, um nome, uma parte do corpo, um tipo de barulho, uma outra peça de roupa, outro substantivo, uma bebida, etc.

Utilizei o Poem Generator e obtive o seguinte texto:

Your skin glows like the Orange,
blossoms Purple as the Rose in the purest hope of spring.
My heart follows your Guitar voice
and leaps like a Jaguar at the whisper of your name.
The evening floats in on a great Hawk wing.
I am comforted by your Socks
that I carry into the twilight of Moonbeams
and hold next to my Leg.
I am filled with hope
that I may dry your tears of Wine.
As my Eye falls from my Face,
it reminds me of your Strangeness.
In the quiet, I listen for the last Rap of the day.
My heated Ear frets my Jacket.
I wait your coming in the moonlight through your secret Stairway
so that we may Share as one, Ear to Ear,
in search of the magnificent Red and mystical Madness of love.

Uma tradução, para benefício de quem não fala inglês:

Sua pele reluz como a laranja,
floresce roxa como uma rosa na mais pura esperança de primavera.
Meu coração segue sua voz de guitarra
e salta como uma onça ao ouvir o seu nome.
A noite flutua até mim nas grandes asas de um falcão.
Estou confortável entre suas meias
que me levam ao crepúsculo banhado em luar
que tenho junto às pernas.
Estou preenchido com a esperança
de que secarei o vinho de suas lágrimas.
Enquanto meu olho cai de minha face,
ele me lembra sua estranheza.
Na quietude, eu ouço a última batida do dia.
Minha orelha quente se esfrega em meu paletó.
Eu espero você vir à luz da lua, por sua escadaria secreta
para que compartilhemos, como um só, orelha a orelha,
a busca da magnífica loucura do amor, vermelha e mística.

Não ficou grande coisa, mas desconfio que se alguém postasse isso em um blogue acharia quem gostasse.1

Por fim, não custa lembrar os produtos nacionais equivalentes. Da comunidade brasileira de usuários de Linux surgiu no início do milênio o Fabuloso Gerador de Lero-Lero, que produzia ensaios filosóficos. Embora o site original que o hospedava não exista mais, ele está preservado no GitHub e agora tem até um plug-in para o WordPress, tendo sido adaptado para gerar diversos tipos de “conteúdo”, como:

Inspirado pelo Gerador de Lero-Lero, mas empregando uma gramática mais simples, baseada em substituições, Aurélio Marinho Jargas criou o engraçadíssimo “tradutor online” de português a miguxês, que serviria para “tiozões” paquerarem adolescentes no Orkut. Atualmente o “miguxeitor” serve como um interessante registro dos hábitos de escrita nos primórdios da internet no Brasil.

A conclusão de tudo isso, que se formou em minha mente, é a de que não haverá mais como enxergar valor em obras de arte literária, a menos que contenham “algo” que não pode ser produzido por um programa de computador. Debatamos em que consiste esse algo, mas vamos deixar de lado a ilusão de que podemos criar valor sem usar nossa humanidade, nossa sofisticação.


  1. Pelo menos um dos poemas publicados no Letras Elétricas entre 2010 e 2012 foi em parte baseado em um poema gerado em inglês pelo “Poem Generator”.↩︎

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