Nunca tive a oportunidade de ler obras que ensinassem como escrever. Não era fácil quando comecei, na era anterior à Internet: havia pouca difusão do conhecimento pelo interior do Brasil e tudo ficava mais difícil para nós, que não tínhamos acesso às bibliotecas e círculos literários. Sem nenhuma orientação, acabei improvisando e desenvolvendo meus próprios métodos de produção de textos, reinventado a roda de maneiras nem sempre eficientes.
Um desses é o “método cebola”, que consiste em estender e aprofundar um texto através de revisões sucessivas do todo. Como você deve supor, funciona melhor para textos curtos, mas foi o que usei para esta novela — e isto explica a demora para terminar.
Não é um método muito bom para textos longos, mas permite manter o foco na totalidade da obra, assim evitando que surjam discrepâncias grandes de estilo. O lado negativo é que se torna muito mais trabalhoso terminar à medida que o texto cresce. Ao empregar este método para escrever o romance “Praia do Sossego”, demorei nove anos para terminar. Em outro romance meu, “O Reino Esquecido”, levei onze anos para chegar à forma final.
O uso do “método cebola” decorre da falta de planejamento no início do processo criativo. Por esse método, o romance evolui a partir de uma série de elementos menores, ou de um só. A dificuldade para alinhavar o texto final surge quando, após sucessivas revisões, o original cresceu e se desdobrou, adquirindo mais personagens e ficando mais complexo.
Você se descobre usando o “método cebola” quando percebeque inverteu a ordem normal da produção textual. Em vezde planejamento, desenvolvimento e revisão, você partede um original planejado para ser curto e ele se desenvolveatravés das revisões, o que exige que retorne muitas vezesao planejamento. Por exemplo, para criar uma linha do tempo eda ação para apontar os desvios e pensar em correções.
A principal razão do nome é que o texto vai aumentando conforme trabalhado, como a cebola cresce de dentro, empurrando as camadas externas para fora. Uma razão secundária é que a manipulação do texto, em todas as fases, tende a causar crises de choro…
Se, porém, está pensando em usar deliberadamente o “método cebola” porque o texto será curto e não faz sentido um planejamento detalhado, então basta criar a sinopse de trabalho e a partir dela fazer a versão inicial. Esta “sinopse de trabalho” um parágrafo de no máximo dez frases em ordem direta que apresenta as ideias centrais do texto. Não é das que se põe em capa de livro e não deve ser mostrada a ninguém.
A primeira versão (“rascunho”) precisa narrar toda a ação e mencionar o papel de todos os personagens principais. O que ela não precisa é de detalhes. Os personagens não têm de ser desenvolvidos ainda, somente a ação. O objetivo é narrar de modo certeiro, mas é possível, também dar uma ideia do tom e da linguagem. Se a história for complexa demais para duas ou três páginas, mesmo com todas essas economias que citei, isto é um sinal forte de que não deve usar o “método cebola” para escrevê-la. Fiz isso e tive muito mais trabalho do que precisaria ter. Não me siga pelos buracos onde tropecei.
Concluído o rascunho, a primeira camada da cebola, você deverá revisitar a história, do começo ao fim, fazendo as mudanças e correções que julgar necessárias. Sua preocupação deverá ser o aperfeiçoamento do texto em três eixos: personagens, trama e linguagem.
Isto pode envolver até mesmo reescrever trechos inteiros, inserir personagens, apagar cenas, inverter a ordem (cronológica ou de apresentação) das cenas narradas, etc. Esta segunda camada da cebola é o momento no qual você vai dar atenção aos personagens e notar as relações cronológicas das cenas (evitando, por exemplo, que alguém não entrou na sala saia dela ou que alguém morra pela segunda vez).
A preocupação com personagens estará em acrescentar elementos através das quais estabelecer suas motivações e características. Dependendo do tamanho do texto, o personagem pode ser simples, até esquemático, mas não pode agir gratuitamente, tem de ser “crível”, mesmo de maneira superficial. Desenvolver bons personagens é demorado e doloroso, então, se o texto não pode crescer até o tamanho de um romance épico de oitocentas páginas, prefiro ter poucos com algum desenvolvimento do que muitos com pouco ou nenhum.
A trama dos fatos é sempre importante e marca a qualidade do texto literário até quando a ideia é subverter a linearidade. Nos textos mais longos, a sequência dos fatos ajuda o leitor a interpretar a história quando de uma segunda leitura, dando significado à obra. Nos mais curtos, a sequência não pode falhar para que o texto tenha coerência já na primeira leitura.
Finalmente a linguagem, que deve ser trabalhada em todo o processo, é que permite ao leitor ter o acesso ao conteúdo. O texto deve ser adequado ao público e ao objetivo, mas deve, em primeiro lugar, ser adequado à personalidade e intenções do autor. De nada adianta você se tornar um autor publicado se os seus livros forem iguais a muitos outros de maneira deliberada.
A terceira, e idealmente última, das camadas da cebola é a revisão estilística, momento em que você darpa aos personagens suas falas características e inserirá na boca do narrador as frases de efeito (que você deverá colecionar enquanto escreve). Também pode sera hora de detalhar as descrições do ambiente ou inserir sugestões sutis do que virá a seguir. Flashbacks ou premonições são interessantes em alguns tipos de histórias, e é nesse ponto que eu acho que devem ser escritos.
Durante a aplicação as sucessivas revisões da “cebola”, haverá pontos que deverá alterar, gerando inconsistências que reverberarão por toda a narrativa. Cada mudança em uma parte requer uma revisão do todo, para que ninguém saia de onde nunca entrou, nem morra duas vezes. Lembranças e premonições, quando não são parte integrante da história, podem soar como emendas e consertos de uma ação fragmentada. Esse conteúdo fica para o fim.
Após a terceira camada, você ainda pode fazer a quarta revisão, para remover arestas. Esta revisão final deve ser focada exclusivamente na gramática ou, talvez, na linguagem dos personagens, harmonizando-a com o seu conceito deles. Quando se chega nesse ponto, é hora de dar por terminada a obra e parar de caçar chifre em cabeça de cavalo: sempre haverá imperfeições a corrigir, e se ficar sempre caçando, nunca deixará de achar. Os últimos erros, deixe para o revisor, se algum dia publicar.