Há alguns dias eu escrevi sobre o método de desenvolvimento de texto que desenvolvi inicialmente, após alguns anos tentando virar escritor. Aquele a que chamei de “método cebola” consistia em partir de um núcleo básico e aperfeiçoar a história através de revisões sucessivas, cada uma com um foco diferente. O método “cebola” é sintético: ele analisa a obra literária como um todo indivisível, que deve ser trabalhado de forma global, com objetivos globais.
O “método quebra-cabeças” (MQC, para simplificar) é o oposto disso: uma maneira analógica de desenvolver a obra, construindo-a em pedaços independentes, que são depois unidos na revisão final. Obras escritas por meio deste método tendem a ter maior variedade de estilos, personagens mais ricos e trama mais aprofundada. Estas características decorrem da facilidade que o MQC apresenta para trabalhar com obras de fôlego maior e a flexibilidade que ele oferece para separar e unir os pedaços como desejado.
O passo inicial do MQC é também a preparação de uma boa sinopse, mas ele precisa que esta seja mais rica em indicações narrativas. A sinopse será, então, dividida em uma série de “cenas” ou “capítulos”, de forma necessariamente cronológica. Se você estiver escrevendo no computador (ou seja, se estou sendo lido no século atual), é uma boa ideia que cada uma destas partes esteja em um arquivo independente.
A maneira ideal para trabalhar com esse método é um organograma. Transformando a sua sinopse em uma figura de balões e setas que representam a sequencia das ideias você consegue organizar espacialmente em seu cérebro como as coisas se encadeiam. Não sei como funciona o SEU cérebro, mas o meu cérebro gosta disso. Outra maneira, ainda melhor, para organizar sua sinopse é escrevendo-a como se fosse uma sucessão de datas e de lugares. Assim você não correrá o risco de fazer seu personagem noivar depois de já ter casado ou perder de novo a virgindade depois que já é mãe. Ajuda também para evitar que sua avó vire tia e depois acabe se casando com o filho de sua cunhada.
Você não precisa começar a escrever imediatamente após traçar a sua sinopse. Se fizer isso certamente a sua obra ficará “quadrada”, ou seja, excessivamente sequencial e previsível — e ninguém mais tem paciência para isso. Para evitar esse efeito, você deve refletir antes de escrever, procurando dar a cada parte um tratamento equivalente ao que você daria a um texto menor. Esta concentração permitirá que você conserve uma linguagem bem cuidada, ao mesmo tempo em que ter a sinopse em vista o ajudará a manter a coerência geral da obra.
Uma das maiores tentações que pode lhe acontecer nesse momento é mudar a história no meio do caminho. Isso é tecnicamente possível, mas você terá de retroceder e mudar todos os capítulos que já escreveu. Logo você perceberá que é melhor refletir longamente sobre o que deseja escrever ANTES de chegar a ter escrito mais que dois ou três capítulos. Mas em geral dois ou três capítulos já são suficientes para dar-lhe uma boa noção do que quer, e nesse ponto fazer as adaptações não será tão difícil.
À medida em que for escrevendo você perceberá que certos capítulos devem ocupar certas posições, que não dependem exatamente da ordem cronológica. Talvez seja interessante narrar um após o outro dois episódios separados por um longo intervalo de tempo, por exemplo. É possível também que você desista de escrever certas partes da história ou, como frequentemente eu faço, que escreva alguns parágrafos em vez de algumas dezenas de páginas. Nesse caso o que seria um capítulo pode virar uma recordação de um personagem ou as considerações iniciais de um episódio. Por fim, certamente surgirá a necessidade de escrever um ou dois capítulos adicionais, para preencher buracos que você inicialmente não tinha percebido ou que foram criados a partir dos detalhes que você acrescentou enquanto punha “carne” no esqueleto da história.
Para fazer todas estas mudanças, pode ser uma boa ideia trabalhar com fichas pautadas com resumos dos capítulos. Embaralhando-as, rasgando-as, refazendo-as ou criando novas você manipula física e visualmente a sua história, facilitando a percepção das conexões que ela possui. O organograma também pode ser impresso e pendurado na parede. Se você tem facilidade para isso, tenha um grande flanelógrafo, no qual você espetará com percevejos os cartões que representam a sua história. Tudo isso pode muito bem ser feito com o computador, mas eu suspeito que a manipulação física da história tenha valor mais que sentimental, mnemônico.
Quando tiver concluído todos os capítulos, ou pelo menos uma boa quantidade deles, suficiente para dar forma à sua história, pode ser o momento de fazer a revisão. Se está escrevendo um romance, esse momento não deverá chegar antes que tenha rompido a margem das duzentas laudas (que deverão ser calculadas em folhas de papel A4, com espaçamento duplo e uma fonte relativamente compacta). Na primeira revisão você fatalmente decidirá descartar, no todo ou em parte, algum dos capítulos que inicialmente escreveu — daí a necessidade de não dar a obra por terminada muito cedo.
Não se deve fazer um número excessivo de revisões porque elas são contraproducentes. Todo autor verá uma quantidade absurda de erros no que escreve e nunca estará satisfeito. O momento ideal para trabalhar a qualidade é durante a fase de conclusão dos capítulos, que deve ser a grande revisão estilística e gramatical feita pelo autor. Com todos os capítulos já montados na obra terminada, a revisão necessária é apenas para detectar e corrigir contradições ou erros gritantes demais.
Minha história com o MQC é bem recente: eu só o usei para escrever quatro obras até agora: o conto “Preço da Passagem”, o romance “Amores Mortos”, um ensaio sobre H. P. Lovecraft e uma novela chamada provisoriamente de “Serra da Estrela”, que pretende ser uma tentativa de dar uma face “pop” ao folclore brasileiro. Destas, somente as duas primeiras estão acabadas.
Mesmo assim, acredito que trabalhar desse modo é muito mais viável para textos longos do que pelo método cebola. Mas não adianta mudar de método se você não acabar com o excesso de perfeccionismo que o impede de liberar seu texto. Chega-se a um ponto, na revisão de um texto, em que você passa a destruir o que havia feito.