Face aos protestos recebidos de nossos leitores quanto ao excesso de conteúdo pornográfico e blasfemo de nossa tradução da obra infantil “Sweet Old Lady”, a que intitulamos “Doce Velhinha”, tivemos de efetuar uma revisão do trabalho realizado pelo tradutor contratado para este fim.
O escrutínio revelou algumas falhas de tradução, que foram as causadoras das passagens controversas que andaram circulando pela imprensa e pelas quais nos desculpamos.
Logo no primeiro parágrafo, é preciso notar que a Senhora Barnes não era “dependente de uma cana”, pois em nenhum momento no livro ela se embriaga de cachaça, bebida aliás muito incomum na Grã Bretanha do terceiro quarto do século XX. Que fique bem claro que ela “se apoiava em uma bengala”.
Não existe nenhum racismo no terceiro parágrafo, pois o melhor amigo da Senhora Barnes, o motorista de táxi jamaicano Jonathon Peters, não andava “sorrateiro como um macaco”. Em vez disso esse simpático e paternal cavalheiro, que tanto ajudou os netinhos da Senhora Barnes a construírem o aeromodelo, se caracterizava por “caminhar com uma suavidade de monge” .
Outro trecho de suposto racismo contra Peters, na página 92, também se deve a um mal entendido. As crianças não voltam da casa de Peters, trazendo o aeromodelo, cobertas de “sujeira de negro”, mas sim de “poeira preta” (black soot). Quem leu o livro com atenção terá percebido que o trabalho de construção do aeromodelo foi feito no quintal, que estava seco e empoeirado. Uma poeira obviamente escura devido à composição do solo local.
Não procedem tampouco as acusações de pedofilia que foram feitas ao professor Williamson: ele não disse que queria ver o traseiro da Senhorita Mandelson (que tinha somente onze anos), ele apenas disse que queria vê-la de volta (I wish to see you back). Considerando que Williamson era um professor de piano clássico e que a família da Senhorita Mandelson não apreciava a música, era natural que ele expressasse tal sentimento.
Tampouco procede que a Senhorita Mandelson teria ficado excitada em ouvir o inexistente convite a um ato libidinoso, pois ela não respondeu que “mostraria a parte de cima, bem rapidinho”, mas que reapareceria dentro em breve (I’ll show up soon).
Causou-nos espécie o ódio dirigido ao professor de educação física, o Senhor Crane, até notarmos a necessidade de esclarecer que ele não obrigava as alunas a correr mostrando os peitos, mas apenas as fazia correr lado a lado (abreast), para que as mais velozes estimulassem as mais lentas.
A propósito, na página 176, o trocadilho que o Sr. Crane faz com o seu nome explora as pernas compridas de uma ave chamado “grou” (crane), e não com o tamanho de seu pênis (_I am not called “Crane” for being a shorty”). Quem ouviu tal trocadilho não foram “professoras gatas”, mas colegas professores (fellow teachers) que dançavam com ele em um bar (pub), em vez de dançarem sobre a sua púbis.
Crane certamente era um professor rigoroso e é um dos antagonistas da história, mas não por suas atividades docentes. É um erro supor que ele estuprou Peter Wordsworth durante os treinamentos de ciclismo. Na verdade Wordsworth gostava tanto de pedalar que comentou, ao sair de seu primeiro treinamento de ciclismo que se sentira “arrebatado” (raptured) e não arrebentado (ruptured). Não há nenhum cunho sexual no contexto.
Embora muita gente tenha protestado contra o baixo calão da afirmação da Senhora McAllister, na página 38. A professora de inglês jamais disse às crianças que gostaria de ver um pinto outra vez. De fato ela só estava com saudade de seu povo, pois “picto” é o apelido dos habitantes das regiões costeiras da Escócia, onde ela nasceu e aonde fazia vinte anos que não ia, devido a ter se radicado em Essex, onde se passa a história.
A mesma professora protagoniza outro episódio espúrio, na página 60, quando as crianças a veem padecendo de uma paixão não correspondida por Crane. As crianças não disseram que parecia uma “vadia bonita”, mas que parecia “bem distraída” (pretty vacant).
Por outro lado, é desastroso que tenha sido traduzido que o estudante japonês de intercâmbio, Seiji Hamashita, se “realizava” quando brincava com um “cacete”. Ao ler o livro, você perceberá que era exímio jogador de beisebol e que, portanto, o percebeu (realised) que poderia utilizar seu talento no críquete, jogando como rebatedor (batsman) e não como Batman lutando contra o Coringa.
O que a bondosa senhora Atwood promete dar ao Senhor Crane, quando ele está convalescendo no hospital é “carinho em um momento difícil” (caress under duress) e não uma “acariciada na coisa dura lá embaixo”.
Outros trechos menos ofensivos à moral (mas certamente à inteligência) ocorrem em outros locais e também merecem atenção.
O filho do Diretor Johnson se chama Damien (equivalente a “Damião”). Portanto, quando o Senhor Johnson o ouve chegar da escola chorando ele apenas diz “é Damien” e não “é o demônio”.
Ted Kelly “fraturou a tíbia” (shin) e não “quebrou a cara” (chin) em um acidente inesperado quando ia ao encontro de Daisy Wells.
Aparentemente o tradutor desconhece que Chinaman (termo arcaico e ofensivo para “chinês”) e “cinnamon” (canela) não são apenas variações de uma mesma palavra. O restaurante aonde a Senhora McAllister se encontrava com o seu namorado em segredo era tomado pelo “cheiro exótico de canela e especiarias”, não tinha um “cheiro esquisito de chineses espiões”.
Os leitores devem ficar advertidos, por exemplo, que não foi o “inferno” (hell) que caiu sobre a escola na antevéspera da Páscoa, mas granizo (hail). Inferno é o que os nossos advogados farão cair sobre a cabeça do tradutor.
P.S. Agradeceríamos a ajuda de alguém plenamente fluente em polonês para refazer nossa tradução das famosas “Memórias Achadas Numa Banheira”, de Stanislaw Lem. Notamos algumas incômodas inconsistências com a tradução portuguesa antiga que comparamos.