Há um verso de profundo desencanto no [hoje maldito] hino dos “Anos Rebeldes” brasileiros. Ao criticar de forma velada o movimento hippie (e outros movimentos de paz e amor), Geraldo Vandré constatou: “pelas ruas marchando indecisos cordões que ainda fazem da flor seu mais forte refrão, e acreditam nas flores vencendo o canhão.”
Há uma poesia profunda no gesto de entregar flores aos agentes mandados pelo governo para matar você. Rende lindas imagens para os canais de notícias, rende heróis que serão lembrados por décadas ou séculos, mas raramente rende progressos reais — a menos que as flores sejam entregues dentro de um contexto favorável a flores. Há momentos históricos favoráveis ao canhão, e eles são a maioria. Na verdade é apenas por exceção que a flor adquire algum poder.
No seu romance “infantil” intitulado “O Menino e o Presidente”, o escritor Wilson Rio Apa imaginou um perfume, inventado por acaso por um grupo de crianças, a partir de um laboratório de química deixado por seu falecido avô. Esse perfume tornava as pessoas “legais”, tornava-as empáticas, bem intencionadas, bondosas. Ao perceberem o efeito, as crianças resolvem dar o perfume, embebido em um buquê de rosas, ao Presidente da República. Deve ter custado muita coragem ao autor para escrever isso nos anos 70, plena época de ditadura e torturas. Ainda mais que no livro as crianças, identificadas como perigosos subversivos, são presas, separadas dos pais e mandadas para lugares diferentes do mundo (com a leve sugestão de que elas seriam, na verdade, mortas ou abandonadas para morrer). Linda história infantil, linda lição de moral. Cresci com o trauma de ter lido esse livro. Mas acredito que traumas assim fazem falta, ajudam as crianças e entenderem uma certa noção de valores, que é preciso ser “legal” nesse mundo.
Mas a história do livro, tal como na música, reflete a perplexidade daqueles que esperam vencer com botões de rosa o poder do canhão. Daqueles que acreditam que poder emana do povo e que os soldados são patriotas e não matarão aqueles a quem juram defender. Há momentos em que isso parece dar certo, há momentos em que decididamente isto dá errado. Para cada Gandhi comemorado em selos e idolatrado internacionalmente, há centenas de caras como o anônimo chinesinho de calça preta e camisa branca que enfrentou os canhões na Praça da Paz Celestial, em vão.
O poder do canhão é o de destruir sonhos, é o de implodir ideias. É graças ao canhão que as elites impõem sua vontade. Ninguém imagine que seria vontade do povo fazer certas coisas polêmicas, se o povo hoje internalizou “querer” certas coisas, foi a custa de muito canhão no passado. Como no filme famoso de Stanley Kubrick, chega um momento em que paramos de nos preocupar e começamos a gostar da bomba. É melhor amar à bomba do que ser morto por ela. Ditadores tem seguidores porque os mortos já não seguem ninguém.
Então um belo dia um lindo conto de fadas começa no Oriente: o povo nas ruas, com faixas e cartazes e gritos de guerra. O exército não atira, o governo acaba renunciando. Cria-se um exemplo, logo surge outro. Mas o canhão está lá, dormente. Cedo ou tarde alguém descobre que, afinal, os espinhos das rosas não são temíveis. Então vêm os tanques. Pode ser inútil desespero, como queria Gandhi, mas a violência pelo menos tem o poder de estragar a utopia. O canhão pode, a longo prazo, ser silenciado, mas ele tem pelo menos o poder de destruir o mundo novo que se sonhava e obrigar os sonhadores sobreviventes a uma realidade diferente da que esperavam: uma na qual muitos amigos morreram, muito prejuízo aconteceu e a expectativa de prosperidade evapora deixando atrás de si ruínas, dívidas e solidões.
Em homenagem às vítimas de todas as revoluções, principalmente daquelas que deram errado. Em especial aos mártires da Líbia, primeira classe de rebeldes a enfrentar de mãos nuas a Força Aérea de seu próprio país. Bons tempos aqueles em que se achava absurdo o opressor chamar a cavalaria contra os estudantes.