Vocês que acompanham este blog devem ter notado que iniciei um projeto de tradução do romance “The House on the Borderland”, a que intitulei “A Casa no Fim do Mundo” (o título significaria, literalmente, “A Casa Sobre a Fronteira”, mas isto faria pouco sentido para o leitor, razão porque preferi mudar). Como a obra é desconhecida no Brasil (apesar de ter sido escrita no início do século XX e até já estar, inclusive, em domínio público), alguns podem estar perguntando o que motivou a minha decisão de traduzi-la — e qual a relevância literária de um tal trabalho. Este artigo pretende responder, ao menos em parte, este tipo de questionamento.
Antes de mais nada devo dizer que não devemos nos limitar unicamente a fazer aquilo que é grande e que é relevante. Não devemos ler somente o que é clássico, nem devemos ouvir apenas a música que faz mais sucesso atualmente. É na diversidade que se acha o prazer da vida, como diz um sábio ditado: o que seria do azul se todos gostassem do amarelo. Minha decisão de traduzir a obra de William Hope Hodgson; ainda inédita em português, pelo que me consta; motiva-se principalmente pelo desejo de trazer o autor ao conhecimento de um público maior. Seria tolice minha afirmar que Hodgson é um clássico esquecido ou um gênio incompreendido da literatura: não tenho gabarito para tais afirmações. O que afirmo é que se trata de um autor que vale a pena ler, mas que quase ninguém no Brasil já leu, pelo simples fato de não ter acesso à sua obra em nossa língua. Traduzindo-a, permitirei que mais pessoas a conheçam e possam achar motivos próprios para gostar dela.
Um segundo motivo importante é a relevância deste autor para um gênero literário que está em voga atualmente: a literatura “fantástica” (aqui um rótulo abrangente para incluir ficção científica, fantasia, terror, mitologia, ficção histórica e outros temas que se cruzam facilmente na obra de seus maiores expoentes). Hodgson foi um pioneiro do gênero que hoje é chamado de “new weird”, que consiste em justamente empregar com liberdade os temas acima mencionados, e outros inclusive. Há cem anos, este inglês (aparentado com irlandeses) mesclava reencarnação, piratas do Caribe, cosmologia, histórias de marinheiro, romances platônicos, literatura gótica, lendas célticas, arquétipos mitológicos, teorias de psicologia e outras coisas, resultando em um universo caótico e rico.
Hodgson foi autor de uma obra extensa, caracterizada pela virilidade e autoconfiança de seus personagens, que no entanto não são sempre meros homens de ação. De sua obra, dois romances saltam à vista, pela grande qualidade de sua concepção e por estarem intimamente relacionados pelo tema: “A Terra Noturna” (The Night Land) e “A Casa no Fim do Mundo” (The House on the Borderland). Embora, à uma primeira vista, ambos sejam muito diferente (quanto à linguagem e à construção dos personagens, principalmente), os dois se complementares no aspecto da cosmogonia envolvida: uma cosmogonia pessimista que reflete muito o estado de espírito dos homens da Belle Époque.
“A Casa no Fim do Mundo” narra a história de um nobre irlandês, o nome nunca é dito, que se isola em uma antiga e estranha mansão, no extremo oeste do país, o chamado Gaeltacht — região onde todo mundo falava (pelo menos na época em que a história se passa) apenas a língua irlandesa céltica. A casa, ele comprara por um preço irrisório, devido à fama de mal-assombrada, que lhe havia deixado sem morador por quase um século.
Nesta casa encontramos o narrador, cuja história nos chega através do “manuscrito” achado pelos senhores Tonnison e Berreggnog (uma estranha dupla de ingleses que, sabe-se lá por que motivo, resolveu acampar bem no meio do nada, em uma região da Irlanda cujo povo nem sabia inglês). Ele está diante de um mistério: a aparição de misteriosas criaturas de aparência suína, que passaram a atacá-lo desde que teve um transe que durara um dia inteiro, durante o qual obteve um vislumbre do universo. Acompanhamos este irlandês sem nome, que ali vive sozinho com uma irmã mais velha, chamada somente de “Mary”, enquanto enfrenta os tais caras de porco. Depois o seguimos em suas explorações do terreno, juntamente com ele fazemos interessantes descobertas sobre sua casa até, por fim, mergulharmos com ele em um gigantesco pesadelo cósmico que vai além de tudo quanto podemos imaginar e cujas consequências fogem não apenas às leis básicas da ciência, como vão até contra os princípios mais comuns da lógica narrativa. Tão poderosa e estranha é a narrativa da segunda parte do romance, cujo tom quase psicodélico deixa o leitor quase todo o tempo “sem chão”, que não são poucos os leitores que a rejeitam, não são poucos os que dizem que o romance “teria sido melhor” caso tivesse somente a primeira parte.
Gosto é gosto, uma afirmação tautológica até inútil, mas é verdade que sem a segunda parte “A Casa no Fim do Mundo” mereceria menos atenção, seria apenas uma história de horror bem material, sobre um esquisitão recluso enfrentando porcos espertos (ou algo assim). Certamente menos interessante do que o redemoinho de ideias a que a segunda parte tenta nos levar. Mas é justamente nesse redemoinho que está a parte que mais interessa a respeito de Hodgson: ali está sua singular concepção de um universo fantástico que mescla cosmologia clássica (pré-relativística) com elementos da mitologia grega, teorias de reencarnação, engenharia militar, ideais esportivos (fisiculturismo) e ideologia nacionalista. Uma senhora barafunda, que resulta em um universo fantástico original, muito diferente do padrão tolkieniano de elfos, dragões, feiticeiros e frágeis civilizações perdidas ambientadas numa idade média imaginária. Apenas para atiçar a curiosidade dos leitores, a inspiração de Hodgson não é um passado decadente, mas um futuro inevitável.
Hodgson não é um autor habilidoso com as palavras. Sua narrativa nunca soa redonda, devido à frequência irritante com que repete expressões e palavras, devido à pouca variedade da sintaxe e asperezas diversas. Os seus defeitos ainda foram exacerbados por sua tentativa de ir além dos limites de sua cultura, imitando canhestramente a linguagem de autores barrocos e neoclássicos sem ter vocabulário ou conhecimento filológico para isso. Tais defeitos são bem menos pronunciados em “A Casa no Fim do Mundo”, que está vazada numa linguagem mais chã e quase estudantil, mas prejudicam de modo terrível o seu melhor e mais relevante romance, “Terra Noturna”, a ponto de muitos críticos recomendarem que capítulos inteiros sejam saltados durante a leitura, ou que seja lido em versões resumidas. No entanto, uma tradução cuidadosa, enxugando um pouco dos defeitos da prosa de um autor que pouco interagia com a crítica ou com outros autores, revela a força imaginativa de um homem à frente de seu tempo em uma variedade de aspectos, que, porém, ainda assim, de outras maneiras, era preso a convenções e ideais do passado, como a castidade pré-nupcial, o romance cortês, os valores cavalheirescos e a força de uma religiosidade heterodoxa (Hodgson era espiritualista) que parecia, naquela era de fascínio pela ciência, uma sombra do medievo a repousar sobre seu caráter.
E tal tradução nos permitirá apreciar, em Hodgson, um gênero literário que estava ainda em sua infância, uma época em que ainda não havia se fixado na repetitividade que o caracterizou depois.