Algumas pessoas que andaram lendo meu já antigo post sobre construção de página usando a medida áurea (que sempre está entre os favoritos do blob, mesmo não sendo uma obra literária) me perguntaram qual a finalidade de tal trabalho. Como toda pergunta inocente, merece uma boa resposta.
Eu já tinha sinalizado no artigo que em nosso país as pessoas estão mais acostumadas a tentar economizar papel do que a pensar na página de texto como algo que será lido. Mas tem algo ainda pior, as famigeradas “normas da ABNT” descendem das arcaicas “laudas” em papel ofício, do tempo em que os documentos penosamente datilografados eram encadernados em arame ou perfurados para arquivamento em pasta-fichário. Por isso temos essa obsessão com margens esquerdas mais largas (para deixar lugar para a perfuração!) e estranhamos uma página tipograficamente construída.
Mas este post não é sobre o que se faz, mas sobre como se fazia, e como se deveria voltar a fazer.
Um livro organizado segundo os cânones da construção de página tem margens mais largas nas bordas externa (em vez da interna) e inferior (em vez da superior). Isto é exatamente o contrário da prática usual no Brasil. Isto é assim porque livros são feitos para serem lidos.
Quando você pega um livro para ler, por onde o segura? Certamente não é pela borda interna da folha (isso é ridículo), mas pela externa. A margem externa é mais larga porque é geralmente sobre ela que repousará o seu polegar enquanto você lê. É em nome do conforto de poder pegar o livro na mão para ler que as páginas de formato tradicional possuem essas medidas. Imagino que você muitas vezes, ao ler, já se praguejou pela dificuldade de fazê-lo sem ter uma mesa para apoio. Livros são feitos para leitura em qualquer lugar, não precisa esperar onde tenha uma mesa. Livros baseados nos cânones de construção de página (medidas áureas) são feitos para leitura confortável mesmo ao ar livre ou fora da biblioteca. São livros feitos para quem gosta de ler. São livros para leitura sem ritual.
A margem inferior é um pouco mais difícil de explicar, mas faz tanto sentido quanto a externa. Os livros são geralmente postos de pé na estante. Se a estante não for suficientemente seca, é possível que a umidade corroa a parte inferior da página. A razão da margeminferior mais larga é preservar a integridade da mancha de texto caso a estante seja afetada por mofo ou umidade. Antigamente havia ainda duas razões adicionais para a margem inferior: o hábito de tomar notas no rodapé e a presença de ilustrações. Em obras de texto denso, não ilustradas, era comum que os leitores tomassem suas notas no rodapé (parte inferior da página). Esta tradição está meio perdida, visto que hoje associamos “notas de rodapé” com trechos de texto presentes dentro da própria mancha de texto da página, e não como comentários feitos pelo dono do livro. Nos antigos volumes era comum que as ilustrações ficassem fora da mancha de texto porque elas precisavam ser feitas em um processo separado. Em geral se imprimia a figura primeiro (geralmente usando xilogravura) e somente depois a página era impressa por cima em tipografia. As iluminuras medievais também tinham ilustrações à margem, especialmente os textos religiosos, como uma forma de desestimular a anotação pelo leitor (entre outras razões mil).
Espero que esta informação lhe faça refletir sobre a possibilidade de utilizar medidas “áureas” em seus próximos livros ou manuscritos. Certamente gastará mais papel, mas produzirá livros muito bonitos.