Eduardo Galeano — jornalista, cartunista e escritor uruguaio — publicou uma série de coisas que sonhava acontecessem no mundo após a virada do século. Considerando a natureza da prosa deste autor, o tipo de coisa que ele sonhava não é inesperado; mas para muitos soará estranho, pois há os que pensam que este autor se limitou às Veias Abertas da América Latina, obra que a esquerda toma como bíblia e a direita renega como se fosse um grimório satânico. Por causa do peso deste livro (que tinha a intenção de realmente pesar) o resto da obra onírica de Galeano às vezes passa despercebida, ao meu ver imerecidamente.
No texto em questão, publicado ainda quando este século era distante, o autor uruguaio tentou nos pintar um mundo onde os sinais estivessem trocados, e de uma forma estranha o texto nos deixa com a sensação de que uma inversão total de valores nos faria mais felizes. Da impossibilidade de tal feito ter lugar, surge-nos a dúvida filosófica: afinal, somos felizes como somos?
O texto original de Galeano pode ser conferido aqui. De minha parte, resolvi fazer um aparte ao que ele escreveu, e adicionar alguns itens, remover outros, reescrever alguns, resultando no seguinte:
No meu mundo ideal os automóveis seriam atropelados pelas pessoas e teriam de refugiar-se, temerosos, nas ruas afogadas por calçadas que cada vez se alargam mais. O ar seria poluído apenas pelo perfume das árvores e pelo cheiro das moças. As pessoas não seriam possuídas por seus bens, nem programadas por seus computadores, nem compradas pelos mercados nem observadas pela televisão. Que, aliás, seria tão importante nas casas quanto o ferro de passar ou a lavadora de roupas. As pessoas não trabalhariam para ganhar o seu sustento, mas para sustentar os seus sonhos. Não se prenderia nunca aos que recusassem servir às Forças Armadas, mas aos que sonhassem servir. Prostitutos seriam apenas os que sentissem prazer na promiscuidade. Seria incompreensível mencionar que certos conceitos seriam incompreensíveis para certos povos. Loucos seriam chamados aqueles que negassem aos outros o direito de viver suas loucuras. Nenhuma pessoa teria crédito por dizer-se representante de Deus, a ponto de dizer aos outros o que fazer e o que não fazer. As pessoas sentiriam saudades apenas de coisas e seres que conheceram, e não de animais e seres extintos pela ganância humana. A polícia serviria para proteger ao povo, e não para proteger o governo do povo. E todos viveríamos cada dia como se fosse simultaneamente o primeiro e último.